Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Geografia

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  Quando ela tremulou, em forma de leque, todas as passagens, dizendo topa sem ser interrogativa, da mesma maneira que diria, Eu quero comer um pedaço de céu tendo as estrelas como sobremesa, já sabendo de antemão o sim, pois como eu sei que ela somente vai se for comigo, eu, aonde quer que vá, somente vou se for acompanhado pela família; serelepe, ela enfiou as passagens no bolso e me puxando pela mão disse, Vamos! Eu sem me atentar se o Cravo e a Rosa não nos acompanhava, lhe disse, Mas já vamos viajar? Ela respondeu, Não tolinho, as crianças cresceram, precisam de malas; não importa se o Cravo e a Rosa, crescidos, frutos dêem, para mim, os meus filhos nunca deixarão de ser botões; com pés pisados pelos paulistanos desvairados que acham que todos os espaços da cidade de São Paulo são seus e portanto devem ocupá-los, não obstante se para isso for preciso transpassar pelos outros, nós chegamos com as malas, ansiosos para pô-las na estrada, porém, antes disso, era necessário fazê-las; tentei colocar o livro de José Saramago, O evangelho segundo Jesus Cristo, para a leitura, mas ela me disse que aonde íamos, as histórias teriam de ser vivenciadas e não lidas, da mesma forma ela retirou as folhas para a escrita, dizendo-me que se houvesse alguma história a ser escrita, eu a significaria nas pétalas da Rosa, ou nas folhas do Cravo e se as mesmas não me bastasse, haveria a sua pele para eu deixar grafada com as minhas digitais; então ela colocou na mala o que tínhamos de melhor, não sei se foi muito, mas era o suficiente; e assim eu percebi e entendi que não precisava de régua e compasso, pois a minha geografia é traçada pelos passos que a família dá... Vem!
   
Os mesmos passos que me leva ao longe trar-me-ão de volta. Até mais.

Feliz Natal em comunhão familiar e um Ano Novo onde os valores cristãos sejam praticados por todos.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Educação sexual - Parte final

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   Rubicunda, ar glacial germânico, maneirismo europeizados, aparência militar no vestir, um corpo ligeiramente arredondado, e, principalmente, um par de coxa metricamente perfeita no diâmetro desde a junção dos joelhos até o vinco que a separa da bunda, como se tivesse sido projetado por da Vinci antes do seu feitio, a nova empregada, sisuda, me fez lembrar a minha professora de matemática, cujo rosto carregava dois aros de bicicleta que ela chamava de óculos. Batendo um dos pés no assoalho da sala de aula e com a palmatória na mão esquerda, ela perguntava quanto era dois mais dois. Respondendo que é quatro, ela avançava sobre as minhas mãos, dava dois bolos, ou seja, palmatoadas e dizia, são quatro energúmeno, como se a ortografia tornasse a matemática mais exata do que já era. Talvez seja por isso que durante muito tempo eu associei o canhoto ao diabo. 
   Não demorou muito para ela perder o ar glacial, o maneirismo europeu, desnudar do uniforme militar, mostrando o que trazia por baixo do mesmo, um vestido trapézio curto, florido, decotado e apesar do seu corpo arredondado, revelou uma simetria que eu nunca mais veria em outra mulher. Meus pés não precisaram ganhar asas para aproximar dela, quando dei por mim, estava envolvido pelo calor do seu corpo, sentindo os seus seios túmidos arder sobre o meu tórax. Minhas mãos foram levadas à sua bunda, depois conduzida até a sua cintura, desnudando-a de vez. Sem nenhuma peça íntima sob o vestido, sua pele abrasou minha concupiscência. Se eu pudesse parar o tempo naquele momento, eu poderia dizer que fui a pessoa mais feliz. Mas não podia. Irrompeu no ar a campainha estridente, anunciando que não estávamos mais sós.
   Perto dele eu me sentia como a formiga diante do elefante. Seus mais de dois metros de altura imperavam diante de qualquer pessoa. Seu corpo musculoso lhe dava uma dimensão maior do que ele tinha. Sua sobrancelha caída não lhe dava apenas uma aparência entristecedora, mas também, isto sim, ameaçadora. O que estava, ali na porta, diante de mim não era um ser humano, mas algo belígero pronto para aniquilar. Sua aparência nazista era demasiadamente letal.
   Para o baiano, todo baiano é rei, os outros são vassalos; para o alemão, todo alemão é deus, os outros são judeus. E foi assim, de judeuzinho, ao perguntar se sua esposa se encontrava que ele me chamou.
   Pudibunda, ela surgiu atrás de mim dentro do seu uniforme militar. Recatada, ela o beijou, primeiro na mão, depois no rosto, reverenciando-o humildemente. Nunca mais a tive como neste dia. No outro dia com hematomas pelo rosto, ela se demitiu. No dia anterior, ela se esquecera de colocar as peças íntimas ao acompanhar o marido à sua casa, e numa revista minuciosa, com exagerada minudência, ele sentiu cheiro de traição, literalmente, pois quando revistava usava o olfato, além do tato, também e tão bem. Eles não foram felizes para sempre.
   Eu poderia terminar a história aqui, com reticências, deixando no ar a probabilidade da felicidade do tarado infanto-juvenil envolto em coxas feminina. Mas não posso, a história continua.

   Está decidido. De hoje em diante eu só contratarei empregado doméstico. Assim minha mãe falou, dando ênfase ao “o” de empregado.
   Com aquele avental branco até o tornozelo, partido no meio até a altura da cintura, ele estava mais para médico ou enfermeiro, mas infelizmente ele era o novo empregado. O cheiro da comida era bom, salivava a boca. Eu me aproximei e percebi ele jogar o talher no chão, propositalmente, sem disfarçar a sua teatralidade; abaixou sem dobrar os joelhos, jogando o corpo para frente de costas para mim. Quando cada parte do avental foi para o lado, a tanga que ele estava usando mal dava para cobrir o risco, deixando à mostra uma boa parte do “o”. Tal a lagarta ao sair do casulo para se significar como borboleta batendo as asas, lucilando todas as suas cores e indo direto ao pistilo da flor para sugar o seu néctar, ele também tentou fazer isso se dirigindo a mim, mas antes me perguntou se eu não queria experimentar o seu “edi”, pois se assim fizesse, eu ia esquecer as coxas de todas as “mapoas”. Além disso, me chamou de “bofe” lindo e me pediu para despreocupar, pois a “mona” não estava coma a “tia”. Saí dali correndo e ouvindo-o dizer, “ainda aquendo este bofe”.
   Como já estava trabalhando, eu resolvi almoçar no restaurante frango frito próximo da minha casa. Degustei muitas coxas suculentas, a saber, de galinhas. Início de carreira, salário aquém das expectativas, o dinheiro não era o suficiente para a ceia. Eu fui obrigado, à noite, comer em casa...
   Toda a carne servida pelas empregadas domésticas, seja maminha ou coxas, peito ou lombo, pernil ou rabada, sem exceção, eram apetitosas; porém nenhuma delas superava o cozido do empregado doméstico, tanto é que além de comer a noite, eu passei a comê-lo no almoço, e para não levantar suspeita da família passei a ir à cozinha pela porta do fundo, e não havia parte do dia que eu não ia lá experimentar o seu dote culinário. Quantas saudades eu tenho do seu cozido.             
 

domingo, 5 de dezembro de 2010

Educação sexual - Parte II

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   Dor maior eu tive ainda menino queimado por água fervente. Nós tínhamos duas empregadas na época. Uma para os afazeres domésticos, a outra, a babá, para os cuidados. As duas com o mesmo nome, Vanjú. Porém com características completamente diferentes. Uma preta, a outra, a babá, branca. As lembranças de como a babá era são poucas, somente as suas longas pernas esquálidas sem o torneamento característico das pernas de uma mulher. Retilínea dos dedos dos pés até o último fio do cabelo, ela causava-me mais comiseração do que desejo. A outra, por ter uma constituição física africana, e uma psique baiana, ou seja, corpo sado-safo e maneiras também. Porém, com comedimento, provocava-me entontecimento constante. Era uma obra grega, feita por mãos gregas e eternizada por um dos deuses grego para admiração e delírio de todos nós mortais, mas que cabia somente a mim o prazer de tê-la, platonicamente, em meus olhos, apenas nos meus olhos. Talvez seja por isso que hoje eu não me lembro da outra, a branca. A beldade negra a sobrepujou. Certamente é devido a sua beleza que minha infância foi passada muito mais na cozinha do que em qualquer outro cômodo da casa.
   A água fervente. Sim, a água. Tínhamos um fogão com abas laterais, e eu sempre me escondia ali embaixo, atrás do botijão de gás, com ou sem conhecimento dela eu não sei. Meus olhos se perderam nas curvas de suas coxas, no roçar de uma na outra, elevando os meus olhos ao requebrar dos seus quadris, e cada banda da bunda soletrando a palavra de-se-jo, fez-me homem quando menino. Tudo nela era safo, tudo nela era afro, tudo nela era baiano, e somente o era plausível sexualmente. Apimentada, cálida, cremosa, estonteante; eu precisaria de um dicionário para que eu pudesse significá-la adjetivamente. Se houve alguém que significou a tara por coxas e empregadas doméstica em mim foi ela. Então, eu estava embaixo do fogão com abas laterais, atrás do botijão de gás, olhando suas belas coxas – durante muito tempo meu conhecimento de mundo se deu ali, admirando aquele par de coxas roliças e negras, e terminou neste dia. A água fervente. Sim, a água. Nunca mais eu vi o mundo do mesmo modo -, quando senti, entre as minhas pernas, um comichão, levantei assustado, bati a cabeça na aba lateral e a água fervente do café caiu um cima de mim. Os meus gritos de dor a desesperou, ela, nervosa, arrancou de uma vez o short que eu estava usando. Vi nos seus olhos culpa e medo. Ela ficou estupefata, não por estar o meu corpo em carne viva – ao desnudar-me, ela fez de uma forma tão abruta que a pele veio junto -, mas sim pelo comichão entre as minhas pernas ter sido fruto da concupiscência provocada por ela. Não sei se devido ao mensurável comichão, ou pela dimensão da concupiscência, agora dela também, ou ainda pela dor de consciência, afinal eu era uma criança, ela saiu correndo sem pedir ajuda. O remorso lhe roeu um pouco de pudor que ainda tinha, mas foi tarde demais. Por muitos anos a única troca que tínhamos era de olhares. Ironia do destino, até hoje trago comigo a marca da queimadura, na coxa.



... ai de mim, a história ainda continua, e nem queira saber o que me aguarda no final

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Educação sexual - Parte I

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   Quando a empregada doméstica da minha mãe pediu as contas, eu compreendi o seu desespero, pois, na cozinha, ela malmente sabia fazer o trivial; além disso, as dores na coluna não lhe permitiam muito esforço nos afazeres domésticos. Abateu-me um remorso desmesurado, pois eu fora o causador da demissão, sem ela saber.
   A franguinha cheirava a alho e cebola queimados em gordura reutilizada, o rosto símile ao abacaxi estuporava de acne, os dentes tinham a cor do maxixe maduro, os cabelos untuosos cheiravam a óleo de cozinha; mas – sempre tem um mas para justificar os nossos gostos, a visão paradoxal que temos do outro, e mesmo assim o desejarmos - , em compensação, tinha duas coxas roliças cor de canela, sedosas e sem nenhum penugem. Devia ser um ano ou dois mais nova do que eu, entre dezesseis e dezessetes anos. Apesar da baixa estatura, ela tinha as pernas longas, não tão desproporcionais ao corpo, e nem tampouco proporcionais. Amiudados olhos de cor inefável e inolvidável por trazer em si mistérios inextricáveis. Olhava sempre de soslaio, cabisbaixa, sem reparar em quem estivesse ao seu redor, como se não existisse, ou mais apropriado dizer, como se ela não existisse. Porém, o que mais excitável nela sobressaía era a sua timidez brejeira com ares de menina interiorana envelhecida sem deixar de perder o que lhe era imberbe. Devido a isso, eu não sentia os seus eflúvios característicos, permanecendo o cheiro de terra molhada, das flores orvalhadas pela madrugada, das frutas maduras ainda no pé, provocando concupiscência inaudita.
   Imbuído de um samaritanismo perverso, ou seja, ajudar com o intuito de tirar algum proveito, eu fui ajudá-la com a escada para a limpeza dos móveis nas partes altas. Sempre de vestido até os joelhos, alguns cinco dedos acima, como o que estava usando, ela subiu os degraus da escada, porém, por mais alta que fosse a escada, tinha-se a impressão de que não alcançaria os móveis em seu topo, por isso ela sempre esticava os braços para alcançá-los, assim o vestido subia tantos dedos mais, deixando à mostra o ninho e a coruja. Por mais cego que eu fosse – e era, pois usava lentes de correção -, meus olhos não deixariam de ser atingido por aquela obra michelangeliana, cuja feitura foi a quatro mãos, dele, o artista e de Deus. Minhas mãos, até então, segurando firmemente as pernas da escada, foi espetada pela agulha diabólica da tentação e se viu na obrigação de se ater as outras pernas, as dela; mais precisamente as coxas; as mãos como se fossem dotadas de asas voou, aninhando-se no ninho na tentativa de ouvir o pio da coruja. Seriam, com certeza, uivos de prazer.

   Meu pai sempre atendera os desejos da família, desde que os fossem dele também. Todo final de ano reuníamos parentes e aparentados para assar um porco no rolete e depois degustá-lo. Era uma cerimônia tribal, e cada um executava uma tarefa, a mim, de pouca idade, cabia a admiração de vê-los preparando, e, lógico, depois, comer. Minha mãe achou por bem que deveríamos, no outro ano, assar um bode, assim também desejou o meu pai. Bode comprado, antecipadamente, para a engorda, eu fui, talmente Dom Quixote, montá-lo para desbravar o mundo numa epopéia cavalariça, não para deleite de uma Dulcinéia qualquer, mas, sim, para o meu mesmo. Tal qual o herói do livro de Miguel de Cervantes em suas desventuras, eu estatelei no chão levando coices e chifradas. Na outra semana, o corpo ainda em dores, eu, juntamente com toda a família, comemos o bode.

   Pois bem, minhas mãos, até então, segurando firmemente as pernas da escada, serelepe, voou às coxas da empregada, e subiu diabolicamente às pastagens ainda virgens. Quando o seu pé voou em minha direção, não tive tempo de me desviar. O meu peito absorveu o impacto do seu coice. Caí com a escada sobre mim, e ela despencou sobre a escada. Não deu tempo de sentir a dor, pois, lestamente, ela se desvencilhou da escada e desferiu um chute entre as minhas pernas. Eu vi as constelações do céu, todos os astros e quantos mundos havidos e não havidos. Doeu-me mais do que as chifradas e coices do bode. Com uma única diferença, o bode eu comi.
   Não demorou uma semana para minha mãe contratar outra empregada. Eu ainda me virava com as dores.

... e a história continua

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

física

 


estou gelo sem ser sólido
o calor que me chega
chegam pai e mãe
tias, vô, vó, irmãos e primos
por fim chegam sobrinhos
deixo de estar

estou gasoso
o que me sopra é brisa perfumada
chega aroma de rosa
aroma de cravo chega também
são dos filhos que chegam
e neles permaneço para ser
deixo de estar

estou líquido
que me chegam os amigos
em todos os estados sou família
e que caiba quem chega
estou feliz, deixo de estar
sou, sólido
 

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Química

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   Felicidade, substantivo de vários significados; uma estação: verão; um desejo: viajar; uma instituição: a família; várias pessoas: mãe, esposa, filhos e amigos, não necessariamente nesta ordem, a ordem é amá-los por igual; um estado: Bahia; um lugar: não, não é Pasárgada, mas lá todos são amigos do rei dos reis. Lá rezarei na gruta pedindo a Jesus que me guie pelo caminho, certo de que serei um bom menino.
   Felicidade. Esticar braços e pernas para ter em mãos o inalcançável; bocejos matinais; algazarra de crianças miúdas e grandes; o sol enquadrado tendo a janela como moldura. Verão, felicidade é uma estação.
   Felicidade. Pele morena exsudando; chupar picolé no palito ou na casquinha; sentir a brisa percorrer a geografia do corpo e encontrar o físico anímico. Desejo, felicidade é uma viagem.
   Felicidade. Pai, mãe, irmãos, café na mesa nas manhãs de sábado; esposa e filhos, café na cama nas manhãs de domingo; tios e tias, primos e primas, avós e avôs, almoços e ceias na mesa todos os dias possíveis; amigos, amigas e afins, chope com pastéis na happy hour. Uma instituição, felicidade é reunião de família.
   Felicidade. Percorrer os dedos pelos vincos do rosto da vó Amélia e ouvi-la dizer: “Caminhos da vida, Eder”; colocar o tamborete na calçada, sentar e ouvir tio Fábio contar mais uma história do meu vô Pedro: “Lembra dessa, Eder...”, adentrar a cozinha da tia Valmeci e furtar os ginetes e petas ainda assando no forno a lenha: “Sai daí diabinho. Ô Eder, você é uma peste”. Várias pessoas, felicidade é amá-las por inteiro e igual.
   Felicidade. Pôr pés e mãos no chão e compreender-se terra; sentir o ar adentrando os poros e saber-se pássaro; água molhando os pés e antes de atingir todo corpo se ver peixe; mesmo com os pés no chão ter o céu aos pés e sentir-se universo. Um estado, felicidade é a eterna Bahia.
   Felicidade é banhar-se nas águas barrentas do velho Chico e ser nascente, perceber-se H2O contrariando qualquer ciência. Mas que me importa a fórmula química, na Bahia, eu me decomponho em um único significado:
   - Sou átomo de felicidade.
  
  

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Psicologia

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     Quando jovem sempre me inquietou a formação do ser. Nunca achei a resposta e sei que sempre seguirei com esta inquietação. Somos tão dispares por ser cada um forjado por tudo que o cerca e geralmente cada um tem uma visão diferente de tudo que está em sua volta, por isso acho que não existe uma fórmula definitiva para o ser ser formado.
     Meus pais tiveram oito filhos e todos eles tiveram a mesma educação, foram todos forjados no amor. Pessoas sem vícios, tanto ele como ela, sofreram quando um dos filhos se envolveu com as drogas. Meu pai se fechou e não entendeu o que aconteceu, e nos momentos que se encontrava só, chorou e se culpou, mas nunca disse nada. Minha mãe, mulher de sorriso vasto, onde quer que esteja sempre traz alegria, sofreu como eu nunca tinha visto. A tristeza invadiu seu rosto, penetrou em sua alma e dali não saiu. Numa batalha diária lutou o bom combate, jamais se vergou, passou noites em claro, discutiu, aconselhou, mas nunca esmoreceu. Tinha dentro de si a certeza que venceria.
     Entendo que a imagem fala por si mesmo, às vezes aquilo que você faz diz mais do que aquilo que você fala. As imagens que tenho dos meus velhos são pessoas feitas para a doação, pessoas que se dão aos outros por terem neles a bondade como modo de vida. Pessoas que faziam questão de ver todos os filhos em volta da mesa na hora do café da manhã, do almoço e do jantar. Coisas essas que perdemos devido à velocidade dos dias de hoje, e esquecemos que temos o final de semana para praticar o que chamo a essência da família, e por desuso não fazemos.
     Com tudo isso em sua volta e vendo todas as imagens que meus velhos passavam, um dos filhos usuário de drogas de uma hora para outra se trancou em nosso quarto e só saía dali para as refeições e banho. Foi assim durante um ano, queria se curar. O que mais me impressionou foi o fato dele por vontade própria tentar sair do seu vício. Família do lado para cobrá-lo, impô-lo o modo de vida achado correto, mas também para apoiá-lo na sua decisão, foi essencial para ele sair do vício. Após esse filho viver um ano em dezesseis metros quadrados, meus pais resolveu mudar para o interior, abdicando de tudo que havia construído na capital. Seria uma nova vida, mas só a satisfação de não ter perdido um filho para as drogas já teria valido a pena. O sorriso de minha mãe voltou, sinal de que vencemos.
     Ontem, minha esposa nos estudos e eu nas escritas, minha filha me chamou na cozinha. Chegando lá ela me perguntou o que eu achava. Com cinco anos e três meses vivendo no seu mundo lúdico, ela simplesmente havia lavado toda a louça e limpado a pia. E assim ela vai se moldando de acordo com as imagens que ela ver. Se ela, sem nós lha pedir, lavou a louça por vontade própria é sinal que a imagem que ela ver é da ajuda. É dessa forma que o ser é forjado?

domingo, 24 de outubro de 2010

Educação artística

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   Eu não saberia transpor para o papel a sensação do artista ao ver a sua obra pronta, nem a sua satisfação ao sê-la admirada, mormente se entre o artista e a obra não há um parto, e mesmo se separados, muito de um há no outro.
   Minha mãe e eu estamos tão ligados a ponto de pensar não ter havido um parto, apesar de, em carnes diferentes, sermos, senão a mesma alma, feito da essência da mesma alma. Na minha incompletude, sei que muito dela me completa. E se a história é sobre mim, ela, além de personagem, é autora.
   Houve tempo que os carnavais não tinham as impudicícias de hoje, nem os foliões afloravam as suas concupiscências descaradamente e a olhos vistos; não havia, também, a necessidade de algum tóxico para se ter alegria. Era o que se chamava de carnaval familiar, e entenda-se família não apenas como os do mesmo sangue, mas também os amigos. Era outra época.
   Iam todos arrancar argila nos barrancos da margem do – se me lembro bem – Rio Grande, Rio São Francisco e, sem muita certeza, Rio Preto para fazer o molde da mascara carnavalesca. Molde cozido, banhava-se jornais na bacia de água, colocava-os sobre o molde em camadas entremeadas por goma, cola feita com farinha de trigo cozida na água. Sem tremores e com mãos de artista, eles pintavam as mascara secas.
   Bloco na rua, todos, parentes e aparentados tentavam adivinhar quem era o folião fantasiado e mascarado. Era época de talco, serpentina e banho de cheiro. Eu conhecia a mão da artista, as cores tinham uma alacridade que dizia muito da sua personalidade; por isso as viam lucilar em meus olhos, dizendo-me que quem estava atrás daquela mascara não era a minha mãe, mas a própria alegria.
   Talvez seja por isso que o carnaval dura apenas quatro dias, pois o restante dos dias do ano está mais para cinzas. Eu viria saber disso oito anos depois.
   Falido meu pai, eu me uni a minha mãe; apesar de não demonstrar tristeza, senti que ela sofria não somente as dores da perda, mas dores da derrota de meu pai, e, também, as dores das desilusões dos filhos. Com catorze anos, eu tinha a constituição física de um garoto de dez; se houve uma vantagem minha sobre o tempo foi essa, de não aparentar a idade que tenho. Meu pai, malsucedido, perambulou pelas ruas de São Paulo a procura de emprego; enquanto a minha mãe pedalava a velha Singer, costurando e bordando. Alguns meses depois, com esforço e muita economia, ela deu entrada em uma máquina industrial de bordar usada.
   Acostumada com o sistema mecânico da Singer, pedalar para acioná-la mecanicamente e movimentar o bastidor - dois anéis com dezoito centímetros de diâmetro, um exterior e outro interior com bordo para garantir maior tensão no tecido – com as mãos para preencher o desenho com a linha, foi-lhe sacrificante passar a acionar o acelerador da máquina industrial para lhe dar a velocidade desejada e com os joelhos acionar uma alavanca movimentando a agulha para a direita e esquerda e esticando o pano com as mãos movimentava-o de acordo com o desenho. Diuturnamente por não se adaptar ao sistema eletromecânico, ela se desmanchava em lágrimas, exasperando-me. Eu a acompanhei durante meses nas aulas ministradas por uma amiga sua, mas não houve progresso. Quando a agulha quebrou ao atingir o seu dedo, eu resolvi agir.
   Ouvi passos vindos da escada caracol, somente me dei conta que ela era ao abraçar-me. Seus olhos deitados sobre a rosa que eu acabara de bordar ficaram estupefatos. Senti o calor do seu corpo ao abraçar-me mais forte, seus lábios encostaram-se ao meu cabelo. Com o queixo na minha cabeça, seus olhos se perderam no infinito. A rosa bordada por mim umedeceu com as suas lágrimas, não agüentei e chorei também. Anos mais tarde eu viria saber que o mesmo sal das suas lágrimas é também o das minhas.
   Novamente as cores entraram em nossas vidas trazendo alegria, porém eram cores diferentes, matizadas em novelos de linha. Nem na quarta de carnaval o dia era de cinzas.
  

    

domingo, 17 de outubro de 2010

Ciências

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   Sou obrigado a confessar, eu nunca gostei de ciências, muito menos de matemática, quanto mais se eu a associava a profissão do meu pai, comerciante; visto por ele como, futuramente, a minha. Se havia algo que eu queria fazer era seguir os meus próprios passos, não os quistos por ele.
   Confesso, enfim, eu odeio ciências, e não morro de amores por português, quanto mais se suas regras e pontuações me lembravam o meu pai que não me deixava desviar uma vírgula sequer da sua regra, e quando eu ameaçava desviar, as palmatoadas e cintadas eram uma lição sem ponto final, permanecendo em mim uma dor reticente, apesar das interrogações da minha mãe e das exclamações de espanto dos meus tios.
   Confesso, para surpresa de muitos, eu nunca caí de paixão por ciências, tampouco por química ou física, quanto mais se as duas me remetiam a uma fase da vida do meu pai, cuja investida para abrir um estabelecimento comercial oscilava entre o sucesso momentâneo e o fracasso sempiterno, e na eminência de um, o fracasso, ele inventava uma fórmula, como se tivesse reinventado a pólvora, para novamente alcançar o outro, o sucesso. A química que ele tinha, tanto para um como para o outro, era genuinamente iguais e comicamente trágicas.
   Do que eu sei sobre ciências, a sua existência somente é factível em função da experimentação. Posto isso, o que é a vida senão um encadeamento de experimentação, cujo embate com a morte é a experimentação final, e mesmo ela, a morte, saindo vencedora não quer dizer que chegamos ao fim, que fomos reprovados; afinal, no decorrer da vida é o que fizemos com nossas experimentações que permanecerá para os nossos entes queridos, e este será o nosso legado. Então, desta forma, o fim em si não é factível, é as experimentações que tivemos, ou seja, a ciência praticada no dia-a-dia que nos eterniza, e cabe a cada um praticar a boa ciência.
   Portanto do que me cabe de experimentação, eu adoro a boa ciência, e tive um excelente mestre, o meu pai, cuja escola ele, como ninguém, soube valorizar, a família. 

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Por cinco dias

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   Um tapa. Apenas um tapa. Blaft. Pronto. Só isso. Um tapa.
   Passional, você quer algo mais forte. Não, um tapa não. A dor será só na superfície. A marca, um vermelhidão que sumirá em poucas horas. Um tapa, decididamente não. A dor tem que ser mais profunda, mesmo esmaecendo depois, volta tal o fogo à brasa ao ser atiçada. O tapa é um gesto supérfluo que se esvai como o ar ao ser consumido pelo fogo. Porém, a dor que atinge o âmago é ferida incicatrizável. Ah! Essa dor somente nos atinge por palavras. As palavras, você as sabe usar muito bem.
   Um tapa. Apenas um tapa. Blaft. Pronto. Só isso. Se fosse um tapa... Até que seria perdoável, mas as palavras...

   Umazinha uma vez na semana e você se acha homem... Ah, não quer que eu grite... Danem-se os vizinhos. Eu grito e bem alto: Você não é homem! Quem sabe assim, todos sabendo, não cai um na minha horta... Você não quer que eu bata nas minhas coxas. Como você é patético. Acha que trocar uma lâmpada, o botijão de gás, o pneu do carro te faz homem. Muitos fazem isso e aquilo melhor que você, e digo mais, até uma mulher faz, e aquilo também... Não se faz de desentendido, você sabe muito bem o que quero dizer com “aquilo”... Vai tomar você... Eu seria se fosse filha da sua mãe... Já estamos nela, querido... Agora você é homem, quer me bater. Nem para isso você presta. Você é um covarde. Tá mudo agora. Queixas e mais queixas é o teu mantra diário. Cadê os gestos de carinho, o “Oi, meu bem! Como foi o seu dia?”... Ah, eu não faço isso também. Você quer tudo à base de troca. Lavar, passar e cozinhar. Não mereço nem um “Obrigado querida”... Ah, eu não faço isso só para você. Ok, de hoje em diante eu faço a minha parte e você faz a sua... Como você ousa dizer isso. Então vá atrás de suas putas. Pensa que sou uma máquina que liga e desliga quando você bem entender. È só chegar, apertar o botão e fuck me... Você rir desgraçado, debocha. Você pensa que isso aqui é um liquidificador para espremer o sumo da fruta sem triturá-la. E o liquidificador como fica se nem prazer têm... Grito sim, afinal sou a Rô Barraqueira... Pode ir para o seu boteco. Vai lá me pintar com as tintas que carrega... É assim que você me ver, como uma bruxa. Vocês homens são todos iguais, só muda o manequim e o endereço. Aqui para você.

   Ela apontou para mim as mãos espalmadas e aos poucos foi curvando o dedo polegar, indicador, anelar e mínimo.
   Passei uma água no rosto antes de sair e vi na lixeira um pacote pequeno contendo um líquido pastoso, absorvido no algodão, na cor vermelho enegrecido. Por cinco dias viveremos um inferno, contudo, durante os outros vinte cinco estaremos entre flores, amando. 

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Partidas e chegadas... O que faz você feliz?

   - Vamos?

   Não sei precisar a idade que eu tinha. Era muito pequeno, inexperiente. Sei que a bola de capotão ainda rolava colada aos meus pés, abrindo trilhas, desbravando caminhos.

   - Vamos? – Insistiu na pergunta.

   Talvez a imprecisão da idade seja por, na época, ter pouca idade; ou, mais precisamente, por, agora, ter muita idade, as reminiscências vir como um filme em preto e branco mofado pelo tempo, e ao assisti-lo, as imagens no écran mostram-se distorcidas.

   - Vamos? – A insistência não me enfadava.

   Parti para a vida com um apelido enervante: Pelé, e ao meu nome acrescentaram um sobrenome que não era meu: Eder Jofre. O peso do apelido e sobrenome abalava a minha constituição física, e a alma imberbe ainda não estava preparada – realmente nunca esteve – para chutes e socos. Precisava beber em outra fonte para a ignorância não tomar conta de pés e mãos.

   - Vamos? – A fonte, insistente, não desistia de mim.

   Retirei a poeira dos pés com as mãos, e as esfregando uma na outra me desfiz dos socos.
   Não houve mais a necessidade do chamamento. Peguei-o pela capa, abri-o folheando as suas páginas, desatei os nós que freava os pés e os enfiei na primeira página. Parti para a viagem tropeçando em algumas palavras. Dos pontos fiz parada para o descanso, em alguns pontos de exclamação encostei por pura admiração, das vírgulas fiz chapéu, travessões serviram de cama e muitos pontos de interrogações deixei para trás por não me servir como bengala. Quando, enfim, cheguei ao último ponto, o ponto final, abaixo dele havia a felicidade. E não teve mais fim. Vamos?

   Em uma das entrevistas concedida por José Saramago, perguntaram-lhe se não gostava de viajar. Ele respondeu que não precisava, pois tinha os livros.
   Qual de nós nunca intentou encontrar um escritor, que ao lermos, nos falasse à alma. Eu encontrei três, a saber, Célia de Lima, Deia e José Saramago.
   A Deia faz da sua escrita a possibilidade da felicidade realizável. Por isso os convido a clicar aqui. Conheça-a
   É dela o selo “Partidas e chegadas... O que faz você feliz?” Um presente embrulhado em papel de seda. Porém, presentes, a Deia me dá ao publicar os seus textos. E isso me faz feliz: lê-la. Vamos?


   Partidas e chegadas... O que faz você feliz? , tem regras bem fáceis:

1 - Copie e cole o selinho na sua postagem;
2 - Conte-nos o que lhe faz feliz, entre partidas e chegadas, simples assim!; 
3 - Conte quem lhe presenteou, se possível adicionando o link para o blog;
4 - Indique ao menos 5 blogs para receberem o carinho e avise-os, para que eles possam continuar a brincadeira. Podem ser mais, claro, o importante é provocar a ideia naqueles que lhe visitam!
5 - Volte aqui e avise se já está participando, nesse mesmo post.

   Eu passo o presente para amigos viajantes. Hei-los:
Pedras Nuas: Sei_Lá
Lua Nova: Poetizando

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

A caverna

                                              imagem aqui

   De repente, num átimo – desses que a vida nos diz muito mais do que se precisássemos de uma vida toda para nos dizer pelas experiências vividas -, ela pensou que o amor fugidio da juventude estivesse morto, ou então perdido nos contornos que a alma dá durante a vida para se livrar das intempéries.
   Quando ela soube que a esposa dele estava entre a vida e a morte, pendendo mais para a morte, não demonstrou nenhum sentimento; como da mesma forma recebera a notícia, há trinta anos atrás, que ele havia casado e tido dois filhos, e anos mais tarde havia separado, casado novamente e tido três filhos. Saiu de todos estes episódios incólumes, mas bastou alguns dias para a mesma notícia ser dito de outra maneira para ela se abalar, como se o amor fugidio da juventude tivesse fugido de entre os mortos, driblado os contornos que a alma deu para dele se livrar, e depois de trinta e dois anos quisesse reverdecer. Em uma tarde fria de maio, não se sabe se trazida pelos ventos outonais, ela recebeu a notícia, não que a esposa dele havia morrido, mas que ele havia enviuvado. E isso fez uma enorme diferença, abalando-a. A caverna estava aberta para toda possibilidade de experimentação, e a luz adentrando fazia do amor por ele jazido no passado, revivo.
   Ela foi despertada na madrugada pelos sonhos febris de desejos irrealizáveis na juventude. A garganta estava seca, os olhos em lágrimas carregavam uma culpa de um pecado não cometido. Pôs a mão sobre o tórax do marido, este murmurou frases inaudíveis, em resposta ao pedido de perdão ciciado por ela entre os dentes cerrados em seu ouvido, virou-se e voltou a dormir. A sua caverna, como ela gostava de chamar carinhosamente a sua casa, estava em total penumbra. Dizia que não precisava de nenhum tipo de luz, artificial ou natural para enxergá-lo ou ele a ela, pois o amor que sentia um pelo outro era o lume que os bastavam para tanto. Foi à cozinha, bebeu uma jarra de água freneticamente e quando voltou ao quarto acendeu a luz sem perceber, quando percebeu sentiu que não era mais a mesma pessoa.
   Sempre nos falta alguma coisa mesmo tendo tudo, pois tudo que temos não é o suficiente para nos bastar, nem o será o que nos falta quando o tivermos.
   Quando ela casou com ele, não o amava, porém, passado dois anos, ela já considerava a possibilidade de está-lo amando. Foi necessário mais três anos para ela perceber que não viveria sem o aroma almiscarado do seu corpo, sem a pele cálida que a esquentava nas noites invernais e a fazia arder tanto nas noites como nos dias veranis, sem a delicadeza com que ele contornava as curvas do seu corpo com as mãos, símile ao pianista ao dedilhar as teclas do piano na intenção de obrar as notas musicais mais harmoniosas; e tanto era assim que se ele fosse eunuco, nenhum homem lhe daria mais prazer do que ele com a destreza das mãos.
   Se o seu amor por ele no início não tinha a beleza do maracujá quando verde, liso e brilhoso, o tinha por dentro, desenxabido. Porém, talmente a fruta precisa que o manto do tempo lhe caia sobre a pele, envelhecendo, para ganhar sabor, assim precisou o seu amor, contudo permanecendo, extrinsecamente, com a beleza e a textura do maracujá verde, e, intrinsecamente, com o sumo saboroso da fruta madura.
   Mas nem sempre nos contentamos com o que temos e nem valor damos. Bastou apenas uma fresta de luz, trazida pela notícia da viuvez do seu amor fugidio da juventude adentrar a sua caverna para abalar as suas certeza e incuti-la a possibilidade de concretizar um desejo já dado como morto, a saber, tê-lo.
   Como ela gostaria que ele se jogasse aos seus pés, impedindo-a de ir. Mas faltava-lhe esta característica latina, passional, de exacerbar em atos físicos os seus sentimentos. Ele permaneceu com os seus olhos sorridentes, magnânimo. A sua dor era silente e intrínseca. A partida foi dada com o sorriso vivaz em seus lábios, em contrapartida, os olhos dela estavam em lágrimas. E os dois não foram sinceros com os seus sentimentos.
   Bastou a cegueira momentânea causada pela luminosidade fora da caverna passar para ela abrir um sorriso. Cego de amor, ele prostrou na cama em posição fetal, esperando que ela ressurgisse, viesse à luz, trazendo luz para a sua vida. Em lágrimas intermitentes, ele escureceu.
   Ela o encontrou com um olhar sofrido, provavelmente pela perda da esposa querida, mas ela sabia que cada um tem o tempo certo para superar as intempéries causa pela dor da perda, por isso não se desanimou. Ele a viu como um alfarrábio que causou emoção no primeiro momento, mas que, depois de lido, é jogado esquecido em um cesto qualquer sem a esperança de lê-lo, novamente. Porém, ele precisava dela para amenizar a dor da perda. Seria preciso reescrever a história para lhe modificar o seu final, mesmo sabendo que reescrevê-la poderia causar sofrimento em dobro, contudo ela queria a mesma história, pois tinha idealizado o mesmo amor, e este amor não permitia outro final sem ser o feliz. Com tantos desencontros eles não se encontram.
   À luz artificial, mais do que iluminá-lo, o desnudou, mostrando como ela realmente deveria vê-lo. Ela o viu extrínseco, como um maracujá amadurecido de aroma mofado como se fosse uma casa que estivesse fechada por trinta e dois anos e ao abri-la exalava todo o estupor de coisa morta.  Ela o viu, também, intrínseco, como um maracujá verde, desenxabido, como se estes trinta e dois anos não o tivesse amadurecido. Foi aí que ela percebeu que o amor fugidio da juventude pertencia ao mundo das ideias, mundo este que ela não deveria ter posto os pés. Ela, ainda vestida, saiu trancando a porta deste mundo, e, mesmo com toda a claridade ali existente, percebeu que precisava da escuridão da caverna para enxergar. 
   Quando ela chegou a sua casa, encontrou-o nu na cama em posição fetal e com a lâmpada da mesma forma que a deixou quando saiu, acessa. Aproximou-se dele sussurrando em seus ouvidos que voltara. Ele fingiu não ouvi-la. Ela repetiu, amiúde. Ele virou a cabeça e lhe disse para ter, pelo menos, a decência de se lavar. Ela levantou da cama, apagou a luz, desnudou-se, deitou na cama o abraçando e lhe disse que não havia necessidade de se lavar. Ele entendeu.
   Após fazerem amor amiúde, em interlúdios intermitentes, eles permaneceram no escuro; porém, não deixaram de se ver, pois eles tinham o amor como lume.
  
      

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

BLOGAGEM COLETIVA: DEDIQUE UMA CANÇÃO A QUEM VOCÊ AMA!

Quando recebeu aquela notícia, ele demorou a acreditar. A carta tremulava em suas mãos, indo ao chão depois de lida. Ele a pegou de volta na esperança que na queda as palavras tivessem embaralhado e modificado o que estava escrito. As palavras quando ganham vida no papel não perdem mais o seu sentido, somente quem ler pode dá-las vários significados após várias leituras. Ele leu, releu, dobrou a carta, colocando-a no bolso traseiro da calça, retirou-a logo em seguida, desdobrou-a, e, mais uma vez, a leu, amiúde. O significado do que estava escrito não mudou:
“Estou morrendo. Vem me ver”

O amor deles não tinha pressa, era um amor de reconhecimento, necessitava muito de saberem das coisas da alma e somente depois, muito depois mesmo, saberem-se pelo físico. Cientistas, eles tentavam decodificar o genoma da alma para quando chegassem, geograficamente, no corpo não se perdessem nas curvas do mapa físico. Foram anos de encontros e reencontros, de discussões e calmarias, de guerras e pazes para, enfim, encontrarem-se na convivência do dia-a-dia e perceberem que não havia uma fórmula mágica para a felicidade. Perceberam que foram feito um para o outro, descobriram o que há de mais sublime no amor, a intenção de fazer o outro feliz. Conjugaram nos dois corpos o mesmo verbo: amar; e as almas se entrelaçaram até se tornarem única.
Aqueles dois seres, tão iguais no amor, tinham uma diferença gritante. Muitos perguntaram como duas pessoas tão diferentes socialmente puderam se encontrar. Como se o caminho para amar somente se desse pelas ruas das razões. Se todos os caminhos fossem retos, o seu fim seria o precipício, por isso havia curvas. E eles a tomaram.
Menininha rica regada a croissant, escargô e salada de aspargos. Menininho pobre temperado a pão na chapa com pingado, zoião estrelado em óleo usado. Totalmente diferentes. Ela, Alphaville, bairro nobre de São Paulo; ele, o outro extremo, Brasilandia. Todas as projeções de futuro tanto para um quanto para o outro eram díspares. Ela, um casamento feliz, adornado a banhos de espumas aromatizadas com rosas e sais; viajem pela Europa; chás às cinco. Ele, aprisionado a uma mulher sempre a lhe cobrar o dinheiro da feira, discutindo apoiados no cansaço diário, conformando-se, enfim, com o destino miserável. Mas os dois pegaram a mesma curva e modificaram os seus destinos.
Os pais da menina rica quando soube da curva que a filha tomou, entraram em desespero. Os pais do menino pobre pouca importância deu ao fato, o que lhe importava era que qualquer caminho que ele tomasse não o levasse a prisão. Depois de saber quem a filha estava namorando, os seus pais lhe mandaram para a Europa com passagem só de ida, sem previsão de volta. Ele não saiu de onde estava, aprisionou-se em sua dor.

Ele colocou para fora, entre as grades, as mãos com a carta. Releu-a. O carcereiro as martelou por pura maldade com o cassetete para que ele as retornasse para dentro. A carta se perdeu no chão e aos poucos foi sendo levada para longe pelos pés infrenes dos policiais que passavam com alguns suspeitos. Enfim uma lufada de vento a levou para fora da cadeia onde ele estava aprisionado.
Absolvido por ter atacado um policial em um momento de fúria, ele saiu da cadeia após três meses do seu julgamento. Livre, ele virou na primeira curva em direção à Alphaville. Ao chegar ao condomínio fechado, em uma das avenidas do bairro no número 1308, ele se perguntou o que diferia a prisão dali. Talvez ali seja mais confortável, mas o encarceramento era o mesmo, pois era o medo que predominava. Riu de seus próprios pensamentos e anunciou-se no interfone. Ouviu o clique do destravamento da fechadura do portão, e assim que o mesmo se moveu, ele virou-se e entrou. Ia cumprimentar o porteiro, porém o vidro da guarita era espelhado, portanto, estaria cumprimentando a si mesmo. Assim que entrou no elevador, lá dentro já se encontrava cinco pessoas silentes, de óculos escuros, apesar de o tempo estar nublado e no elevador não ter tanta luminosidade para tanto. Todos estavam de nariz empinado, acima de suas cabeças, numa atitude de quem estava olhando o céu. Cumprimentou-os e não obteve respostas.
Ao tocar a campainha, a empregada abriu a porta lhe cumprimentando e o encaminhando ao quarto. Agradeceu-a gentilmente.
Ela estava deitada na cama com olhos sofridos e feição de comiseração por si mesmo. Ele agachou-se para lhe perguntar como havia passado estes vinte anos e como estava de saúde. Porém, ela levou os dois dedos à sua boca, pedindo-lhe silêncio. Entregou o CD que estava em cima do criado mudo.
- Você ainda tem este CD? – Disse-lhe.
- Era a trilha sonora de nosso amor.
As lágrimas vieram aos seus olhos e, ele, sem demora colocou o CD no aparelho de som.
“Vem cá, meu bem, que é bom lhe ver
O mundo anda tão complicado
Que hoje eu quero fazer tudo por você”
Após cantar a segunda estrofe da música “O mundo anda tão complicado” da Legião Urbana, ele a chamou para dançar, pegando em uma das suas mãos.
- Não posso. Estou debilitada. Dê a volta na cama e deita-se comigo. Quero sentir o calor do seu corpo nas minhas costas. – Ela disse carregando uma carência no olhar.
- Você não acha que está muito debilitada para isso. – Ele disse entre risos, fazendo gestos para ela entender o que quis dizer com “isso”.
- Deixa de ser bobo. Eu quero é sentir novamente a sua alma entrelaçada a minha.
- E quem lhe disse que nestes vinte anos passados o enlace foi quebrado. – Ele disse se deitando.
Ela dobrou os joelhos quando ele encostou-se ao seu corpo. Os seus já dobrados encaixaram-se prontamente entre a panturrilha e as coxas dela. Fechados em concha, ele a abraçou colocando sua mão no seu ventre. Cantou no seu ouvido mais uma música da Legião Urbana e ela adormeceu com um sorriso de gratidão e felicidade no rosto.

domingo, 19 de setembro de 2010

Demência

              Para saber mais sobre o autor da foto click aqui

   “Você é entristecedor.
  
   Quando você ouve palavras soltas no ar, a primeira reação é olhar para todos os lados a procura da pessoa que as pronunciaram. Se você não a acha é sinal que alguma coisa pode estar errado com você.

   Você é entristecedor. A voz repetiu, assustando-me.

   A linha que separa os loucos dos sãos é tênue, e, você nunca sabe em qual lado ela está, mormente se loucos são sempre os outros.

   “Você é entristecedor. Insistente, a voz estava me dando nos nervos.

    Eu comecei a dar socos no ar na tentativa de acertar a pessoa imaginária que me atormentava com o seu mantra. Um transeunte passando naquele momento disse:
   “Este cara é louco”.
   Procurei-o entre a multidão e o vi enterrado em um boné, ouvindo Mano Brown no celular, andando símile ao primeiro macaco quando desceu da árvore para dar origem ao que chamamos hoje de humano. O sujeito tinha o escudo do time do Corinthians tatuado no braço e logo abaixo escrito:
   “Louco por ti”.
   E o louco sou eu. Deixamo-lo ir, certamente alguma árvore o espera, ou quiçá um manicômio, afinal, como já disse, loucos são os outros.

   “Você é entristecedor. Enfática, eu senti a voz reprovando o que acabará de dizer.

   “O que você quer de mim?”
   Gritei talmente o pastor na igreja para chamar a atenção de quem passa na rua para angariar ovelhas desgarradas, ou – é o que creio -, ele grita por estar longe de Deus. Como ia dizendo, gritei para ser ouvido, não por Deus – somente um louco acredita atingir Deus pela balbúrdia. A presença de Deus se faz pelo silêncio. -, mas para afugentar a voz.
   Repentinamente, eu não ouvi mais a voz, porém, eu senti uma mão grande e pesada nas minhas costas me empurrando para trás, e outra exercendo uma força desmesurável na minha cabeça, girando-a para os lados. Novamente a voz se fez ouvida.

   “Você só enxerga o próprio umbigo, não consegue ver o que está acontecendo à sua frente, do seu lado e nunca aprende ao olhar para trás. Você, realmente, é entristecedor. Olha! Enxerga!”

   Eu vi duas crianças brincando entre flores, mas não consegui enxergar quem elas eram. Notei que um homem as ensinava a pular corda. Vi quando ele amarrou a corda na árvore e começou a girá-la no ar. As crianças pulavam cada vez mais alto, e, perdidas entre nuvens de algodão doce, olhou para mim e disse:
   “Oi, pai!”
   Foi então que percebi que aquele homem um dia fora eu.
   A mão cada vez mais pesava sobre a minha cabeça, forçando a cura para a minha demência ao pôr os meus olhos sobre as minhas reminiscências
   O restaurante estava lotado, contudo um homem me chamou a atenção ao puxar a cadeira para a sua acompanhante sentar-se. Ele próprio serviu o vinho em cálices de cristal. Quando eles brindaram, no vidro dos cálices vi a imagem da felicidade refletida. Dei-me conta de quem eles eram quando no salão de dança, os passos dele se assemelhavam aos meus, e ao ver as costas de sua parceira, após tirar o xale, a tatuagem de um cravo entrelaçado em uma rosa, eu tive certeza, éramos nós. Eu e minha esposa em uma época de nossa vida em que a trilha sonora e o passo de dança eram únicos. Se houve um sinônimo para a felicidade, ele se deu por nossos passos de dança; se houve significado, ele se deu por essa trilha sonora. Era uma época que os apaixonados não tinham vergonha de demonstrar o seu amor.
   A mão forçou mais ainda a minha cabeça e a segurou em um ponto fixo.
   Uma bela senhora de cabelos argentados, rosto envelhecido, contudo jovial por trazer sorrisos nos olhos, encaminhou-se em minha direção de braços abertos. Confortado naqueles braços, não senti mais o peso das mãos da loucura e nem a sua voz. Senti os lábios úmidos da bela senhora no meu rosto e ao olhá-la, eu percebi ser a minha mãe. Abracei-a e nossas lágrimas se encontraram sem a salmoura das mágoas, pois nossos encontros se dão por doçura, até nas lágrimas.
   “Você voltou, meu filho! Estava com saudades”. Ela me disse como se me embalasse no colo.
   Olhei para o céu silente. Ele me sorriu de volta. Não precisei mais gritar, estava sendo ouvido e ouvindo:
   “Você voltou, meu filho! Graças”. Ele me disse.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

É ouro, é de Minas


              Recebi este premio do meu amigo Gilmar que ultimamente tem me divertido muito com seus causos, e me remete a meu avô que com suas "mentiras" (como ele chamava os seus causos)  enriqueceu muito a minha infância. Querido Gilmar, agradeço-lhe o mimo. Banhar-se em ouro dado por uma pessoa aurífera é de enriquecer.

              A regra de postagem deste selo é de indicar dez blogueiros em reconhecimento ao seu trabalho na blogosfera.

               Hei-los:

Ilaine: Ensaios
Angélica Lins: Vórtice
Angela: Entremeios
Dinigro Rocha: Negropoeta
Osvaldo: Menos mau!...

Se vocês estão aqui é porque vocês são ouro. Sintam-se à vontade.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Similitude

                                    imagem click aqui


  O padre comilão pensara que feito a luz, bastaria a feitura do homem para a criação está completa, assemelhando-se ao criador. Os homens sempre colocaram os olhos sobre a história relatando os acontecimentos de acordo com a visão que lhes convém. Eles nunca atentaram a quem realmente se assemelha, a quem lhes criaram. Não há nada mais demasiadamente humano do que a própria maldade. Não há inferno maior e melhor do que a mente do homem. Todos exteriorizam a minha casa, o meu reino e não atenta para o que é intrínseco ao homem, o próprio inferno. Dentre todos os animais, é no homem onde mais me exteriorizo perfeitamente. Posso assegurar que a mente humana é minha extensão, às vezes eu próprio me confundo sem saber onde eu começo e onde ela termina. Nenhum homem é suficientemente bom para nunca ter praticado a maldade, pois o mal é inato a todos. A bondade nada mais é do que um desvio, uma curva assimétrica ao longo do caminho da humanidade, e, para o meu deleite, de pouco uso. O meu maior medo é que o homem alcance a perfeição, assemelhando-se tanto a mim que eu não tenha mais serventia. Por isso eu peço à Morte moderação. Ela sabe que um humano vivo é mais útil do que morto, e, também, nunca sei quando o meu trono estará em perigo devido à quantidade de mortos habitando o inferno. Apesar de dizerem que o inferno está cheio de boas intenções, não há boa intenção quando há um homem próximo, esteja ele vivo ou morto.
   Antes, vocês me eram risíveis, principalmente ao sacrificarem um dos seus a algum deus em busca de salvação. Porém, agora, vocês são tão patéticos. Cometem o mal corriqueiramente, depois oram para o meu oponente pedindo perdão, noutro dia voltam a cometer o mal, ininterruptamente, sem se atentar que o perdão é a maneira que vocês acharam de estar bem com seu deus. Contudo, perdoar a si mesmo e não cair na tentação de praticar o mal novamente é uma tarefa inglória, cujo sacrifício é tão ou maior do que sacrificar um dos seus para um deus qualquer.
   Sabem, há época que eu peço a Morte que pare de matar vocês, pois há cada um que ela me envia, o meu oponente manda de volta o dobro. Ele é um tolo. Ainda acredita na salvação de vocês. O seu povo eleito, como ele gosta de dizer. Parece que não lhe bastou a morte do seu filho. Um sacrifício inútil, pois quanto mais o tempo passa mais próximo de mim vocês estão. Como tudo isso é patético. Pai, perdoa-os, eles não sabem o que fazem. Essas foram as palavras do seu filho, e lhes digo, vocês sabem sim. Sempre souberam, apenas ignoraram. O mal é o combustível para a vossa sobrevivência e isso vocês não ignoram.
   Houve um tempo que eu tive um prazer imensurável de aniquilar vocês, e quase consegui. Se não fosse a pretensão dele de querer ser perfeito a ponto de se igualar a meu oponente. E vou falar para vocês, ele me saiu esculpido em carrara, melhor do que a encomenda. Mas essa sua mania de superioridade me assustou. Antes que ele se achasse superior a mim e quisesse meu posto – a bem da verdade, o posto que ele almejava era o do meu oponente -, eu lhe enviei a Morte mais sedutora do que um dia ela poderia ser. Foi a única vez que a Morte teve um nome próprio: Eva Braun. E ela exterminou o mais perfeito dos homens mau, cujo único defeito foi ter ousado se comprar ao meu oponente. E com isso a humanidade pensou que o mal estava extinto. O mal em si só será extinto quando a raça humana desaparecer. E isso me reconforta, pois vocês não precisam mais de mim e nem tampouco da Morte. Se há algo que vocês fazem tão bem, e às vezes melhor do que a Morte é se matarem. E por falar nela, por onde ela anda. Ah! Lá vai ela atrás do padre comilão. Ela não perde a oportunidade de matar os mais malvados.
   O padre comilão ia a passos lerdos por achar que o perigo distava dele. Mal sabia que a Senhora soberana o perscrutava. O Cramulhão apreciava a cena de longe. Se havia algo que lhe dava prazer era ver um pastor do seu oponente morrer.
   Quando o padre comilão entrou na igreja foi direto a garrafa com o sangue de Cristo, como ele gostava de chamar o vinho. Sorveu a metade da garrafa pelo gargalo, encheu as mãos com algumas hóstias, levou-as a boca, e, antes que as mesmas se dissolvessem, as engoliu. Em seguida despejou o restante do vinho em uma caneca grande, e, sentando no banco da frente, defronte ao altar, ele bebeu o vinho como se tivesse numa taverna. Não percebeu quando a Senhora soberana entrou na igreja, cobriu a cabeça com o capuz, e deixou a gadanha na entrada, pois há muitas maneiras de se matar um homem. Seduzindo era uma delas.
   Quando ela sentou cruzando as pernas, deixando à mostra as coxas, o padre não sabia se a imagem era devido ao efeito do vinho, ou fruto da sua imaginação, ou ainda obra do cramulhão. Por mais que a razão buscasse uma explicação, nunca a acharia, pois a Senhora soberana levou as suas mãos cálidas às mãos do padre embaralhando os seus sentidos. Desvestido da batina, desnudo de pudor, o padre se entregou a ela. Mais do que o corpo, ele entregou foi a alma. A Morte o beijou na boca, mesmo sentindo a frieza de seus lábios, o padre gemeu de prazer. Afoito, ele pôs a língua dentro da boca da Morte, abrindo passagem para que ela a sugasse. Entremeado por gritos de prazer e dor, o padre quando percebeu o que estava acontecendo, não teve como reagir, era tarde demais. Sua vida foi aspirada pela boca. Regozijando por mais uma vida ter sido ceifada, a Morte se encontrou com o Cramulhão.
   Eles se misturaram a população dando risos cabruncos. Seus risos se confundiram com os risos dos transeuntes. A similitude entre eles e a população era divina, beirava a perfeição.
  

sábado, 4 de setembro de 2010

O riso cabrunco


   Pranteado por aqueles que ainda o queria entre os vivos, o desgraçado se agarrou a sua fé na esperança que a salvação viesse nas palavras de um padre. As vidas que ele havia ceifado brutalmente o tinha condenado, e não haveria como escapar de mim. Éramos demasiadamente iguais na pratica da maldade.
   As carpideiras vestidas de preto-tristeza arrumavam os lenços bordados com anjos em ponto e cruz, ainda sem os véus negros de tule na cabeça; elas, sisudas, presas aos seus próprios pensamentos, nutriam de uma tristeza inerente a cada uma, preparando as lágrimas que estavam por vir. Somente o desgraçado pensava em se salvar apegado a sua fé; elas não, necessitavam da morte para terem significado.
   Bela, a senhora soberana ia cadenciando os seus passos, sem pressa, pois sabia que chegando ao seu destino, não havia força, seja natural ou sobrenatural, que a demovia do seu intento. Sem o capuz sobre a cabeça, a dama de preto, troçando com a gadanha em mãos, ia requebrando, sensual, malemolente, sabedora de si, tal qual a descrita por Saramago em seu livro: As intermitências da morte; certa que as tentativas que ele fizesse para detê-la seriam infrutíferas.
   O padre, de hábito preto e estola no pescoço, estava mais preocupado com a boa comida tida e havida em toda casa cristã, assim como um bom vinho, do que propriamente salvar a alma do desgraçado, pois a carne do moribundo estava mais para a putrefação. Mas antes de começar a extrema-unção, afinal foi para isso que veio, ele correu até a cozinha, sem cerimônias, encheu as mãos de salgadinhos que havia em cima da mesa para as cerimônias – preparos já adiantados – do velório, pois o desgraçado – atrasado em morrer – agarrou-se a um fio de esperança que o retinha.
   Empanturrado, não encontrando um bom vinho, e por isso achando que ali não deveria ser uma casa cristã, bebeu uma cola mesmo, pois os salgadinhos pediam urgentemente qualquer líquido para melhor descer goela abaixo. Inferno, vociferou, isso é bebida dos infernos. Em pensamento, pediu perdão a deus pela blasfêmia dita.
   Prostrado na cama, o desgraçado, igual fusca com a bateria arriada, arranha, mas não pega, não ata, nem desata, não foge e nem sai de cima, e é foge mesmo, pois nem para foder serviu; enfim, não morre. Isso está me agoniando. Cadê a Morte? Então, como ia dizendo, prostrado na cama, o desgraçado do moribundo viu o desespero do padre comilão tentando se desentalar, com toda comicidade possível tida-havida nessa hora, e, depois, o alívio, carregado de dramaticidade, por ter conseguido.
   Adiposo, o padre comilão equilibrava mais com as mãos, apoiando no que encontrava pela frente, do que propriamente com os pés apoiados no chão. O comilão, ainda com a boca refestelada de salgadinhos, os cantos incrustados de migalhas dos mesmos e a cola escorrendo pelo queixo, passou os lábios na manga da batina na tentativa de se limpar e formigou, a passos lerdos, em direção à cadeira colocada ao lado do desgraçado moribundo. Este, ao ver o comilão se jogar sobre o assento da cadeira – que abriu as pernas soltando um uivo agudo e por pouco não o levou ao chão -, desesperou-se ao notar que o padre se preocupava mais na satisfação da sua gula do que salvar almas como a sua. A raiva lhe subiu aos olhos, inturgescendo-os muito mais ainda do que estavam devido aos prantos por a vida estar sendo lhe tomada. Quando o comilão, ao invés de rogar a sua salvação, deu-lhe a extrema-unção, os seus olhos saltaram do rosto. A força que lhe restava foi o suficiente para se atracar a sua estola, enforcando-o. O comilão, apesar do dia cálido e seco, sentiu uma leve brisa gélida lhe subir pela nuca, dar uma volta na sua cabeça e adentrá-lo pelos poros, possuindo a sua alma. Ele não lutou, nem tentou se desvencilhar das mãos do moribundo, se houvesse chegado a sua hora, aceitava-a se esse fosse os desígnios de deus, e não haveria melhor hora para se morrer do que aquela, de barriga cheia. Porém, o tolo comilão não sabia que a bela soberana, em sua manta negra, com a cabeça coberta pelo capuz e portando uma gadanha, espreitava-os. Sabendo que a hora do padre não havia chegado, desvencilhou-o das garras do moribundo, e deitando em sua cama, a Morte lhe expirou a vida.
   As carpideiras começaram a chorar, lamuriando, de uma maneira tão convincente, que não houve quem dissesse que era teatro.
   O padre comilão, a passos lestos, movido mais pelo medo do que pelas suas forças, achou equilíbrio e rumou em direções erráticas com a pele da cor da polpa da manga imatura.
   A Morte, eficiente ao laborar, trouxe-mo e partiu lestamente, pois cometera um erro – coisa rara -, a hora do padre também havia chegado.
   Eu pensara que ele relutaria em ficar aqui, mas, abnegado, um cansaço entristecedor nos olhos, talvez não tivesse forças para tanto; ou, quiçá, ele soubesse que o seu destino final era ter comigo, afinal, a maldade é sempre mãe, nunca madrasta, ensina a todos os malvados o caminho que leva a mim. Então nos servimos de um bom vinho tinto suave, porque assim a ocasião pedia, mormente se se brinda entre iguais. Sentamos no sofá, ele foi o primeiro e o único a falar.
   - Sabe qual a diferença daqui para a terra? – Disse isso sem saudades, tristeza ou quaisquer outros sentimentos; por não ser característica das pessoas más demonstrarem sentimentos. Aguardei a sua resposta, silente. Após alguns segundo – não que ele precisasse deste tempo para responder, mas é somente para degustar mais e ainda o vinho -, a serenidade lhe tomou os olhos, o cansaço rumou distante como se o efeito do vinho lhe tivesse atingido o ânimo, e ele, com os lábios acolhidos por um riso sarcástico, me disse:
   - Pelos menos aqui, no inferno, o vinho é melhor.
   Brindamos. Liguei a televisão no canal terrestre, sintonizei o noticiário, deitei os meus olhos nas notícias, depois os percorri por todo o inferno, virei para lhe dizer algumas palavras, mas ele havia sido levado pelos meus anjos luciferinos à sua morada final. Joguei palavras ao vento:
   - Você tem razão!
   Risos Cabrunco me encheram de felicidades.     


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quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Adeus

            barro bom não dissolve
não petrifica não vira pó
                deus o inspira