Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

domingo, 20 de setembro de 2009

Figurante

Os cabelos lisos moldando o rosto oval e pequeno, as sobrancelhas grossas, o nariz afilado, os lábios finos, as orelhas rente a cabeça, o pescoço longo, os olhos negros estavam todos refletidos no espelho, mas ele não se via. Aquele rascunho borrado tentando ganhar forma, por mais nítido que parecesse, não era ele. Preso as personagens que representava, sua vida foi um ato de erros contínuos, não que agora não fosse mais, pois por mais que errasse, pior não ficaria. Descaracterizado, ele não convencia nem a si, sem platéia e consequentemente sem ganhar pela sua atuação, sozinho, tornava-se invisível. A invisibilidade não o protegia, ao contrário, o deixava vulnerável aos seus fantasmas que de tão reais estavam sempre em cena contracenando com ele. Em estado permanente de demência, no palco da vida, era um péssimo ator. A linha que separava a lucidez da loucura era curta, e ele sempre a ultrapassava. Somente é normal aquele que reconhece a sua loucura, ele não reconhecia a sua.
Percebendo a luz e passos de pessoas, ele colocou o espelho em cima do caixote, o seu chapéu já estava no chão. Iniciou o espetáculo sapateando, a sua voz não era melodiosa o suficiente para lhe permitir o canto. Com os atributos artísticos que tinha ele não estava agradando. O desespero o levou a dar um passo que sua capacidade física não permitia. Os passos acrobáticos que ele tentou o levaram ao chão, arrancando gargalhadas de todos. A dor no corpo devido à queda não era maior do que a dor devido à inanição, e doía mais ainda saber que nenhuma mísera moeda, qualquer que fosse, havia ganhado. A garrafa de pinga escondida atrás dos caixotes servia como alívio para suas dores.
Sentado cabisbaixo e com o olhar triste fixado no chão ele ensimesmou-se. A necessidade do alimento incitava os seus pensamentos a cometer um delito, mas ele ainda tinha o controle de si. Mesmo com o mau cheiro, o cachorro aninhou-se a ele. Todo animal acostuma-se com o cheiro do seu dono, e divide com ele as suas dores, as suas preocupações. Nas patas dianteiras, uma sobre a outra, ele deitou a cabeça, dobrou as patas traseiras enfiando o rabo entre as pernas, inclinou as ancas até tocar no chão e, entristecido, mostrou solidariedade ao seu dono. Era o único que não precisava representar para dizer de si os sentimentos que tinha. Entrementes a maioria dos transeuntes que passava pela calçada, envolto em sua arrogância, os desprezava; outros traziam em si uma comiseração sem o intuito da ajuda, apenas consternavam; a minoria presa a sua ignorância, os detestavam.
O cachorro foi despertado pelo som de moeda quicando no chão, e ele pelo latido do cachorro. O cachorro ia e vinha em um perímetro de dois metros quadrados, parando de vez em quando, latindo e apontando com o focinho na direção sul. Uma criança puxada pela mão, violentamente, apontava para a moeda que ela havia acabado de jogar, no seu rosto havia um sorriso inocente que fazia com que a tivéssemos como anjo de deus. A dor em seu rosto, devido à fome, não lhe permitia a retribuição, mas como ele ainda carregava intrinsecamente um anjo divino, com muito esforço, lhe esboçou um sorriso. A mãe, brutalmente, puxou a criança desviando o seu olhar da direção dele.
Após atravessar a rua, o cachorro, despercebido, entrou na padaria, apoiou as patas dianteiras, dobrou os joelhos traseiros sentando, e com o olhar chamou o seu dono. O balconista da padaria colocou as duas mãos no balcão, tomou impulso, flexionou os joelhos e saltou. Atendendo ao chamado do cachorro, ele com um dos pés na calçada e o outro dentro da padaria sentiu o impacto do pé direito do balconista lhe atingir o tórax, levando-o ao chão. O cachorro, balançando a cabeça, suavemente, olhou aquela cena sem entender o motivo da violência. A maioria dentro da padaria, mesmo entendendo o motivo, apenas olhou, desdenhamente, para a cena e voltou para o seu desjejum.
Ajoelhado, com uma das mãos no chão, tentando levantar, e a outra gesticulando para demonstrar que nela havia uma moeda de um real, ele, aos prantos, implorava por um pão com manteiga. A moeda saiu rolando pelo chão até se perder no bueiro, ele a acompanhou com os olhos torcendo para ela parar antes. Quando ela se perdeu na boca de lobo, ele percebeu que gotas de sangue manchavam o chão. O segundo pontapé do balconista não havia apenas lhe tirado a moeda da mão, acertou-lhe também a boca. Todos assistiam aquela cena como se não lhe dissessem respeito. Todos, dentro e fora da padaria, se sentiam confortáveis como se o ato de solidariedade se encerrasse quando era feita uma doação, estimulados por alguma campanha de algum programa televisivo em apoio a algum programa social. Havia alguém naquela padaria que lhe era solidário, e não era humano. A mordida foi tão violenta que ele desmaiou, restos de carne da coxa do balconista desprendiam da boca do cachorro.
A duração do tempo não é sentida da mesma forma por todas as pessoas. A dor intermitente, causada pela fome, lhe tirava qualquer brevidade do tempo, o dia sempre lhe era custoso de passar, parecia interminável. À noite, anestesiado pelo álcool, ele dormia sem a certeza do acordar.
Carros em alta velocidade passavam pela rua diante de seus olhos e ele não via; no céu as nuvens desapareciam para dar lugar aos pássaros metálicos voadores; sobre a órbita de sua cabeça circulavam satélites de comunicação; a lua estava tão próxima que ele conseguia ver as pegadas de Neil Armstrong; há pouco uma nave espacial turística rasgava o céu rumo a Marte. A noite havia chegado lhe trazendo dores insuportáveis no estômago, e consequentemente os delírios contumazes. O cachorro havia saído em busca de restos de comida na lixeira da padaria, mas ele não tinha coragem para fazer o mesmo; mesmo em estado de demência, ele tinha dignidade.
O cachorro, alimentado, o puxa pela barra da calça roída, o guiando até os caixotes. Ele retira o litro de cachaça que estava atrás dos caixotes e o seca em goles abruptos, dobra uma caixa de papelão ao meio, várias vezes, até alcançar a altura desejada, a coloca no chão e deita encostando a cabeça na mesma. O cachorro puxa uma manta carcomida com os dentes e cobre metade do seu corpo, vela o seu sono por alguns minutos, depois deita próximo a ele curvando todo o corpo.
Horas depois começa a chover torrencialmente, o cachorro, latindo, tenta acordá-lo, como não conseguiu, o puxa pela calça com os dentes. Era inútil, ele não acordaria.
O barulho da chuva batendo no telhado de zinco da padaria lhe chega aos ouvidos como aplausos. Todo de branco em um cenário também branco, ele, no teatro da vida, era ator principal, enfim.
Noite de lua cheia, o cachorro, com a cabeça apontada para o céu, teatro da vida, uiva. Se houver lágrimas em seus olhos, elas se misturavam com as gotas da chuva.

sábado, 5 de setembro de 2009

Fronteira final

Ao entrar na casa a encontrei sentada de costas para mim com a bíblia na mão balbuciando, “Ore, ele vai chegar”. Gotas ininterruptas jorravam dos meus dedos, eu já havia perdido o dedo mínimo, o médio estava pela metade se transformando em líquido, logo eu seria uma poça de água se infiltrando na terra, desapareceria sem deixar um túmulo, como todos os outros. Meu tempo havia acabado.
24 HORAS ANTES.
Seu corpo leitoso, nu, sobre a cama ganhava a forma do número perfeito, curvas sem desalinho, sem erro de geometria, com exatidão matemática, banhadas pelos raios dourados matinais do sol lhe dava uma aura divina. Ela descansava, eu, na sala, após uma noite em claro gozando o prazer carnal, fumava assistindo tv.
“O governo alerta a população para uma doença desconhecida...
Eu dei pouca importância ao noticiário, Voltei os meus olhos em direção ao quarto para, mais uma vez, admirar as curvas do seu corpo, mas ela não se encontrava na cama. Deduzi que ela estava na cozinha, “Quero o meu café bem forte, preciso me despertar, afinal paguei bem caro pela tua companhia”. Não obtive resposta.
... chamada peste negra devido ter dizimado toda a população africana, e...
Fui ao banheiro, nem um sinal dela.
... cientificamente denominada H2O SANGUÍNEO, a doença ataca os glóbulos vermelhos e brancos, ao mesmo tempo...
Entrei na cozinha. Estava como a deixamos noite passada.
... o sangue torna-se aquoso. Depois de infectado, após vinte e quatro horas, o corpo humano transformar-se em água...
A última frase do locutor amplificou de tal forma que ao chegar aos meus ouvidos não teve como não prestar atenção. Preso ao que o locutor acabara de falar, mas com uma pressa de ir ao quarto para dizimar as dúvidas, eu, paralisado pelo medo, percebi gotas de água escorrendo pela borda do lençol. Não restavam dúvidas, ela tinha aguada.
... o governo alerta que o contágio se dá através da relação sexual, e não há nenhuma barreira que impeça o vírus, nem a camisinha. O governo enfatiza que não haja nenhum contato com africanos ou descendentes. Voltaremos com mais notícias assim que o governo souber mais sobre a síndrome H2O SANGUÍNEA, a peste negra”
Não haveria medo que me deixaria plantado naquela sala, corri até o quarto e revirei a bolsa dela, minhas suspeitas se confirmaram, ela era sul-africana. Eu tive que me conter para não desesperar. Minha mãe sempre me disse, “Na ora do desespero, ore.”
As pessoas de cor começaram a ser assassinadas brutalmente quando a imprensa noticiou que o vírus não era transmitido apenas pela via sexual, mas também pela via oral por africanos e descendentes de africanos a não africanos. Não demorou muito, independentemente da cor, para que cada um visse o outro como africano.
Havia passado oito horas, restava-me mais dezesseis horas de vida. As horas iam se passando e as palavras da minha mãe se tornavam audíveis, “Ore, a salvação está na bíblia.” Ouço barulho de um objeto caindo no chão. “Mãe?” Não haveria possibilidade de ser ela, estava morta havia muito tempo. O objeto no chão era a bíblia, e ela caiu aberta no evangelho segundo São Matheus capítulo vinte e seis, e como por milagre uma luz advinda do céu iluminava os versículos vinte e seis, vinte e sete, vinte e oito e vinte e nove. A desconsidero e a coloco de volta na mesa. “Ore, meu filho, a salvação está na bíblia”. Novamente a bíblia cai aberta no chão, mas agora no evangelho segundo São Marcos capitulo catorze. Uma candeia que até aquele momento servia apenas como peça de decoração igniza-se, trazendo a lume os versículos vinte e dois, vinte três, vinte e quatro e vinte e cinco; ignoro a leitura por achar que estava delirando, não me dou ao trabalho de colocá-la na mesa, novamente.
O silêncio, lá fora, era perceptível. Pelo vidro da janela via-se que metade das pessoas estava liquidada, morta, a outra metade havia desaparecida, por entre a terra, em estado líquido. Não me senti bem em abrir a janela por saber que estava sozinho, a fechei virando de costas. Um estrondo atrás de mim me joga no chão, a janela passa por sobre o meu corpo, espatifando na parede. A voz da minha mãe é trazida pelo vento, desesperada ela me pede, “Ore, a salvação está na bíblia”. O vento cada vez mais forte folheia a bíblia da esquerda para a direita, depois da direita para a esquerda, amiúde, arrancado sua folhas. Quando finalmente para de ventar, eu percebo que no apartamento somente havia eu, todos os objetos haviam sido levados pelo vento. Dou os primeiros passos para sair daquele ambiente aterrorizador sabendo que lá fora não seria diferente, quando tropeço em algum objeto no chão não percebido por mim, era o que sobrara da bíblia, nela havia somente o livro de São Mateus, o livro de São Marcos e a primeira epístola aos Coríntios capítulo onze, com destaque para os versículos vinte e três a vinte e nove, grafados com caneta marca texto. Meus olhos não passaram despercebidos por aquelas folhas, a li avidamente, quando terminei dei crédito as palavras da minha mãe, a salvação, realmente, estava na bíblia.
O ambiente fora do apartamento não era menos aterrorizador. Os carros incendiados, as portas arrombadas de estabelecimentos comerciais, as árvores arrancadas pelas raízes, as casas com suas fachadas destruídas e por todas as ruas, onde quer que eu olhasse, corpos se deteriorando davam a dimensão do quanto seria sofrível viver sozinho. Nunca me foi necessário outro ser humano, vivo, para a minha sobrevivência como estava sendo agora. Sozinho, as horas passavam diferente de como normalmente passam; a morte, a bela senhora do tempo, as controlavam, e dava a elas uma pressa descomunal. Meu fim estava próximo, eu tinha somente duas horas de vida e um ser humano, vivo, a encontrar, quem e aonde eu não sabia. O silêncio permanente tornava esta busca inglória.
O barulho do motor do carro ligado quebrava a monotonia agora presente. Após percorrer, em alta velocidade e em todas as direções, um longo percurso, encontro somente o silêncio como companheiro. Nunca a terra me foi uma ilha desabitada como estava sendo agora. Sigo por carro mais trinta minutos. Um campo rodeado por árvores é meu destino final, giro cento e sessenta graus e não encontro nenhum espécime animal vivo, eu era o último. Restava-me dez minutos e minhas mãos estavam suando, logo chegaria ao estado líquido. Sento-me debaixo de uma árvore e a brisa traz o cheiro de flores, ou então era a morte que estava chegando, adormeço. Sou acordado por uma ventania que me impulsiona a seguir adiante, meu dedo mínimo se desfazia em gotas, não tive mais coragem de olhar as horas.
Uma casinha simples com chaminé borrifando o ar de fumaça cheirando a sândalo, cercada de flores rodeadas de colibris e borboletas, árvores frutificas serpenteadas de pássaros preenchendo o ar com seus cantos melódicos davam a dimensão de quanto era consolador viver cercado por outro espécime, seja humana ou não. Senti-me no paraíso, não sei se levado pelas minhas próprias forças ou se pela ventania.
A grama aparada, recentemente, a altura do chão levava à porta de entrada da casa. Ao entrar a encontrei sentada de costas para mim com a bíblia na mão balbuciando, “Ore, ele vai chegar”. Gotas ininterruptas jorravam dos meus dedos, eu já havia perdido o dedo mínimo, o médio estava pela metade se transformando em líquido, logo eu seria uma poça de água se infiltrando na terra, desapareceria sem deixar um túmulo, como todos os outros. Meu tempo havia acabado.
Eu não sei se a minha visão tortuosa me permitiu interpretar corretamente o que estava escrito na bíblia, somente sei que não teria coragem de fazer o que tinha que ser feito, mormente se vai de encontro à sua crença, mas se eu quisesse ter uma chance de cura teria que agir. Não tive tempo.
Ouvi suas botas arrastarem pelo chão, eram pretas. Ela, com uma calça jeans bem alinhada, preta e um agasalho com capuz lhe cobrindo toda a cabeça, também preto, se encaminha em minha direção tirando peça por peça. Seu corpo é lívido, sua pele ao encostar-se à minha é tenra e quente, dos seus poros sinto exalar um calor infernal, mas ao me beijar seus lábios são gélidos, seu beijo tem sabor de morte, se não fosse ela a própria bela senhora do tempo. Envolvido por sua beleza não percebo que ela traz na mão um punhal. Somente percebo o punhal no ar quando ela levanta o braço. Procuro levar a mão direita ao rosto, mas não tinha mais mão, procuro pela mão esquerda e me desolo, não tinha mais braço esquerdo, uma poça de água está se formando em volta de nós. Ela me abraça e beija, novamente, meus lábios e diz, “Não tenha medo, ela me disse para orar e que você viria para cuidar dos escolhidos. Ela enfatizou, a salvação está na bíblia. Eu li e entendi a escritura sagrada, você veio para salvar a humanidade. Não se preocupe, a morte será suave, não haverá dor”.
Ela ergue o braço, novamente, com o punhal na mão e, automaticamente, eu fecho os olhos esperando o golpe final. Como, após alguns segundos, não sinto o golpe, eu abro os olhos e vejo gotas de sangue jorrando do seu pulso. Ela o enfia na minha boca dizendo, “Beba do meu sangue, ele é o teu alimento”, e em seguida, com o punhal, ela corta um pedaço do seu corpo, a carne, trêmula, ainda viva é empurrada para dentro da minha boca. “Coma, a minha carne é o teu alimento”. Animalescamente eu a deixei no osso. Desmaiei.
12 MESSES ANTES.
“Atenção, falta cinco segundos para ir ao ar. Um, dois, três, quatro, cinco. Vai Presidente, no ar”.
“Senhores e senhoras, o céu não é mais divino, não existe mais fronteira no espaço, posso afirmar que sabemos de onde viemos, atingimos, por assim dizer, a casa de Deus...
Atrás do Presidente um telão mostra imagens do avião espacial Infinity no espaço.
...Daqui a pouco veremos, no telão, o avião Infinity pousando em solo sul-africano, mais detalhes da missão será dada pelo diretor da agência espacial. Boa noite.”
TEMPO ATUAL, 25ª HORA.
Sou acordado por duas crianças, curiosas. Sólido, percebo meu corpo em estado perfeito, braço e mãos haviam regenerados. Pergunto as crianças os seus nomes, e elas em coro me respondem, “Adam, Eva, e você?”.
Deus, só Deus sabe a resposta.