Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Segundo relato de uma viagem "sana" - os passageiros

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   Por sermos os primeiros a entrar no ônibus, eu e minha família, ficamos na expectativa de quem nos acompanharia na viagem. Minhas duas cunhadas, sentadas nas primeiras cadeiras, conversavam amenidades; minha esposa se divertia com os nossos dois filhos; enquanto isso, eu rezava a todo e qualquer santo, implorando para ninguém sentar do meu lado comendo farofa de frango acompanhado de uma Fanta. Não sei por que cargas d'água o baiano quando viaja, além de levar só produtos das casas Bahia, também só leva farofa de frango acompanhado de uma Fanta. Esse petisco, em um ambiente fechado, faz um mal danado, não ao intestino de quem come, mas ao olfato de quem está próximo do comensal, pois a sinfonia de puns após a comilança é insuportável a qualquer cristão.

   Logo em seguida foi entrando o restante dos passageiros. Uma senhora com a idade avançada acompanhado de sua filha idosa ouvia-a sem lhe dar muita atenção as suas queixas por ela viajar sem condições físicas. Desde que fosse a última viagem, as duas estavam preparadas para o reino celestial.

   A preocupação me abateu quando a segunda passageira, uma senhora dos seus oitenta anos aparentando cem e acompanhada de sua neta jovem sentaram nas suas respectivas cadeiras. Com a quantidade de velhos que ainda iria entrar, eu pensei, a Bahia é o paraíso, porém, ainda não é o reino celestial. Contudo, "micafifei cuma muléstia da peste e já estava virado na porra" (mal sai de São Paulo e o meu baianês estava aflorando) quando a terceira passageira, uma senhora decrépita, entrou chorando, dando adeus a sua filha e dizendo que esta era a sua última viagem. "Vixe meu santo painho ACM", será que eu estou indo para o reino celestial? "Desapoquentei sentando a madeira na preocupação" assim que a terceira passageira - e não é preciso dizer que era idosa - entrou com uma cuia de farofa com frango desfiado em uma das mãos e na outra uma Fanta. Estava indo para a Bahia, mesmo (?).

   Salvo engano, em um ônibus interestadual cabem quarenta e seis passageiros, até agora tinha entrado quinze, todos idosos, e isso me fez voltar a preocupação. Será que ao invés de ir para a Bahia, eu estava indo para um show da terceira idade do Agnaldo Rayol, ou então, aquele ônibus fazia parte de uma caravana para o programa do Silvo Santos. O vigésimo quarto passageiro me deu a certeza de que estava, realmente, indo para a Bahia. Ele (?) entrou no ônibus espalhafatoso, acompanhado do seu companheiro, dizendo que ao chegar à Bahia iria colocar o seu abadá e voaria igual mariposa como se estivesse nas ruas do Pelô. O menino era fanta. Não tive mais dúvidas, o ônibus me levaria a Bahia.

   Uma senhora com aparência de colchão de berço amarrado, segurando em cada mão uma sacola de supermercado evolando odor de farofa de frango e debaixo de cada axila uma Fanta de dois litros e meio, entrou no ônibus dando a impressão que seria a minha companheira de viagem. Porém, eu não havia reparado um assento vago no fundo do ônibus.

   O rosto de Freddy Krueger, o físico de Jason, o chapéu de couro e o olhar de Lampião fizeram-me novamente pensar que estava em um filme de terror estadunidense. O último passageiro sentou, colocou o chapéu de couro no colo e abriu uma latinha de Fanta; para "desembestar" a comer uma farofa de frango de padaria não demoraria muito. Mas antes disso, o sujeito "destramelou a boca e desembestou a falar" entre soluços. O soluço era acompanhado por um barulho idêntico ao apito de uma chaleira de leite quando começa a ferver. Meus filhos riram a rodo. Se a eles não provocava medo, não era a mim que provocaria.
 
   Olhei para trás certificando que todos os passageiros haviam embarcado e percebi que estava "lenhado na porra". Alguns velhos amassavam bolinhos de farofa de frango com os dedos, outros os jogavam goela abaixo sem ter o trabalho de mastigar com suas dentaduras gastas. Como eram tantos velhos, outros tantos estavam bebendo Fanta e tantos outros começavam a soltar sinfonias de puns. Ao mesmo tempo todos gritaram: "Liga o ar motô".

   O motorista "sentou a madeira" no motor, ligou o ar condicionado, dando início à viagem.

   Eu me "aperreava" desejando chegar logo à Bahia para cair de boca em uma "vara", ou então me contentar com um "cacetinho" recheado com creme e no fim da tarde e começo de noite babar chupando todo tipo de "xibiu", esperando estrelas.

   Meu avô sempre me dizia que o Brasil começou em uma sacanagem entre os portugueses e as índias, e anos mais tarde, com as negras. Desta trinca surgiu o que hoje chamamos o povo brasileiro. Dizia ele, como a sacanagem começou na Bahia, todo brasileiro é um verdadeiro filho da Bahia. Eu e minha família, todos, filhos desta terra, mesmo alguns não sendo natos, sentiam-se de volta ao lar.

   Este texto não foi patrocinado pela Fanta. Os relatos aqui narrados pode não parecer, mas são verídicos (?). As palavras e frases entre aspas pertencem ao Dicionário da Língua Portuguesa Baiana.

   O ônibus partiu, vamos nessa...
   Continua.
  

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Relato de uma viagem "sana" - O embarque

 
Quando eu cheguei à rodoviária do Tietê e vi mais bagagens do que passageiros no portão de embarque do ônibus que me levaria para a Bahia, eu constatei que o baiano quando viaja, seja para o nordeste ou qualquer parte do Brasil, leva tudo o que puder comprar em prestações a perder de vistas nas casas Bahia, pois o que mais se via era pacotes com a logomarca da loja.

Eu estava tranquilamente guardando as minhas dez bagagens - éramos seis pessoas viajando, e para não negar a minha baianidade, eu estava levando um micro-system comprado nas casas Bahia em suaves prestações -, quando ouço alguém gritar: "E lá se vão várias bolsas família". Olho para cima, de onde veio o grito, e reparo que não havia nenhuma bolsa, mas uma caixa enorme rolando escada abaixo. Ao chegar ao meio da escada, a caixa já havia perdido o papel com a logomarca das casas Bahia, e ao atingir o chão deixa a vista uma televisão LCD aos cacos. Então entendi o motivo do grito, a televisão que o infeliz carregava seria do seu pai, nordestino cabra da peste que havia enviado o dinheiro ganho, não com o suor do seu trabalho, mas com os rendimentos do bolsa família. Antes o nordestino queria o pão para matar a sua fome, hoje ele quer matar outras fomes, precisa de circo. Por isso eu estou levando o micro-system, e ele estava levando a TV.

Assim que os ponteiros do relógio avançavam, parecia que a população baiana se encontrava na rodoviária do Tietê. Se passasse um trio elétrico na Avenida Cruzeiro do Sul não sobraria uma alma viva no terminal. Não passou. Eu, como todos ali, esperávamos o ônibus encostar-se à plataforma de embarque.

Enfim o ônibus encostou. Primeiro embarcou as bagagens, e como alguns baianos além de levar as casas Bahia, leva trouxas e mais trouxas como mala, o embarque demorou um pouco, pois o que mais se via era trouxas. O trouxa aqui, digo, eu pesei minhas malas na esperança que não ultrapasse o peso permitido por passagem. Cada passagem dá direito a trinta quilos, como tinha cinco, minha bagagem não poderia ultrapassar cento e cinquenta quilos, senão teria que pagar taxa por quilo excedente. Faltou cento e um grama para ultrapassar. Ainda bem, tirei um peso de minhas costas.

A algazarra e o sorriso nos rostos de todos ali na hora do embarque era prova de que todo movimento para o baiano é motivo de festa. Porém minha expressão era de preocupação, pois tive a sensação de estar em um filme de terror estadunidense. Como sabemos, exceto o mocinho ou a mocinha, todos morrem no filme. Somente o vilão, que também morre, ressurge em outra sequência, e assim será, não importando quantas sequências tem o filme, ad infinitum. O triste desses filmes é que os primeiros a morrerem são negros e latinos. Sabemos de antemão, quem nasce na Bahia, além de baiano é latino. O que ninguém sabe é que na Bahia todos são negros, mesmos os nascidos brancos, pois o sol não permite ficar branco por uma vida toda.

Esta texto não foi patrocinado pelas casas Bahia. Os relatos aqui narrados pode não parecer, mas são verídicos (?)

A viagem está para começar, embarque nessa...
Continua.