Imagens intermitentes do passado vieram a mente de Iratus assim que o espírito do recém-nascido entrou na lareira, a sua mente as processava tentando achar algo despercebido. Quando Furiosus derrubou a lareira, a sua mente o levou de volta ao passado e ele se viu entre as labaredas observando Hesediel no momento que fazia a coleta de sangue do recém-nascido. Ele processou a cena minuciosamente, prestando atenção em todos os detalhes, então, viu Hesediel enfiar a pena na sola do pé do recém-nascido, coletar e acondicionar o sangue em uma ampola, depois se viu embrenhar mais ainda por entre as labaredas, receoso em ser descoberto. Inopinadamente, as imagens do passado escureceram em sua mente e ele somente conseguiu ver um grande telão preto rodeado por fogo. Controlando as suas emoções, sentido ser queimado, Iratus mentalizou a sua imagem do passado saindo de dentro das labaredas, incendiando o grande telão preto para uma nova tela com camada branca surgir e aos poucos ir ganhando cor, revelando o exato momento em que Hesediel injetava o plasma dos deuses no recém-nascido. Trazido lestamente de volta ao presente, ele percebeu que não adiantaria contar a Furiosus o que havia acontecido, pois a raiva, além de impedi-lo que escutasse, o impelia a outra ação, a destruição da casa. Iratus procurou por Lucius e o viu próximo aos escombros, empunhando a espada, puxou-o pelo braço e o sangrou. Girou em torno da sala e encontrou o que precisava. Foi em direção ao corpo do pai do recém-nascido estendido no chão, preso a cruz pela espada de Furiosus. Ao arrancá-la, ele chamou a atenção de Furiosus para si, rolou com os pés o corpo sobre a cruz e espargiu sobre a mesma o sangue de Lucius embainhado em sua espada.
Iratus já sabia o que ia acontecer, no
entanto, ele ficou tão surpreso quanto Furiosus pela intensidade da luz
iluminada sobre a cruz e apenas pequenas sombras formadas na ponta. Nas veias
de Lucius corria em maior quantidade o sangue plasmado dos deuses do que o
sangue plasmado do Senhor das Trevas, e a culpa era sua por não ter percebido
Hesediel injetar o plasma dos deuses no recém-nascido.
Iratus não deu ouvidos aos gritos de
Furiosus para que ele não fizesse o que pretendia, pois antevia o pior. Os
gritos foram em vão, passaram despercebidos por ele e se perderam no vento.
Cego e inconsciente, ele agiu por instinto. Iratus, proferindo palavras desarrazoadas,
partiu com a espada Daemo em punhos para cima de Lucius.
Um buraco se abriu no chão revolvendo os
escombros na sala e arremessando Lucius para longe. Um odor sulfúreo saiu do
seu interior e a sala foi tomada por um calor insuportável. Iratus freou
desesperadamente com os pés e percebendo que não pararia antes de cair no
buraco, cravou a sua espada no chão e esta o arrastou para próximo do precipício.
Quando ele se ergueu e tentou descravar a espada, uma imensa sombra surgiu
diante de si.
Os olhos amendoados, o rosto redondo, o
nariz pequeno e afilado, os lábios grossos e úmidos, a pele sedosa, os cabelos
volumosos e cacheados, o pescoço longo, os ombros largos, Hesediel, na forma
humana, os soube ao tocá-los com as mãos, no entanto, antes que o desejo o
levasse a querer saber mais do que pudesse, ele recolheu as suas mãos e
mentalizou a forma angelical. Ao se
transmutar em anjo, ele ouviu Ariadna dizer que a cor dos olhos estava entre o
azul céu e o verde mar. Hesediel levou as asas aos olhos como se desejasse ter
a visão, e antes que outros desejos tomassem conta de sua mente, ele aguilhoou
ao cumprimento da sua missão guardando a espada Divus na bainha e o recipiente
Lux no coldre, colando o corpo de Ariadna ao seu, amarrando a cinta de proteção
em volta dos seus corpos, abrindo as asas e alçando voo.
O vestido de algodão branco de Ariadna
bailava no ar de acordo com o sentido do vento, ora deixando as suas coxas sem
pelos à mostra, ora não. Hesediel, mesmo não enxergando, sentia o contato da
pele de Ariadna revelar em sua mente a fotografia do seu corpo nu. Por mais que
ele se concentrasse na sua missão, a atração que sentia por ela o desarrazoava.
Os suores e os tremores pelo seu corpo, o aceleramento das batidas do seu
coração eram provas que ela o atingia. Havia algo nela que abalava os imortais,
ele não quis saber o que era. Acelerou as batidas das asas, pegou uma corrente
de ar e embicou rumo à terra, antes que o peso do corpo aumentasse devido a sua
concentração ser desviada para o desejo ou os tremores o desnorteasse.
Furiosus anteviu essa cena, pois sabia que o
Senhor das Trevas não deixaria Iratus assassinar o seu filho, afinal, muito
mais do que pela herança sanguínea, os seus ensinamentos, Lucius aprenderia
pela convivência. Os seus gritos de não atacar foram em vão, se perderam no
vazio. Iratus selou o seu destino e diante do buraco, próximo a sua queda, ele
viu a sombra se transmutar e descravar a sua espada Daemo do chão e cravá-la no
seu coração. Ele sabia que assim não morreria, se o Senhor das Trevas quisesse
eliminá-lo, bastaria ter cortado as suas asas, se não o fez era porque queria fazê-lo
sofrer.
O Senhor das Trevas cravou mais ainda a
espada em Iratus varando as suas costas, quando a tirou girando, Iratus sentiu
a raiva do seu senhor. Vociferando e com o ódio espremido entre os dentes, o
Senhor das Trevas o agarrou pela gola, olhou dentro dos seus olhos na tentativa
de encontrar o medo e como não achou, selou o seu fim com um beijo na boca. O
Senhor das Trevas esperava que Iratus pedisse clemência, como nenhuma palavra
saiu da sua boca, ele o arremessou para cima, desejando que a sua queda fosse
dolorida e lenta. Iratus varou o telhado e lembrou que Furiosus havia lhe dito,
assim que eles começaram a treinar com os Guerreiros Shaitans, que a morte é
bela.
Ele não voava como um anjo Shaitan, mas
impulsionado pela força impregnada pelo Senhor das Trevas, não sabia se iria
encontrar com a morte na ascendência ou descendência. Quando ele a viu, ela
tinha os olhos amendoados, não sabia se eram azuis céu, ou verdes mar, os
cabelos cacheados pareciam fios de ouro, a pele alva sem um fio de cabelo ressaltava
a sua beleza. Iratus encontrou a morte e ele não estava nem na ascendência, nem
na descendência, pois estava parado, transformado em uma estátua de sal.
Quando Ariadna recuperou do susto, nunca
imaginou tanta feiura em um anjo. Iratus caiu vertiginosamente sem se esfacelar
com o atrito. Hesediel, sem poder enxergar, pediu a Ariadna que descrevesse o
que estava vendo. Ela lhe contou da queda do anjo negro e da destruição do
plano terreno. Sabendo que o anjo negro só poderia ser Furiosus ou Iratus,
Hesediel pousou para preparar o ataque, ou mais apropriado dizer, a defesa.
Iratus caiu em pé próximo ao precipício na
sala e se esfacelou transformando-se em uma nuvem negra que adentrou a
escuridão do buraco. O sentimento de dor pela perda não havia entre os anjos
Shaitan, pois a ausência de luz os impedia de sentir. Furiosus não esperou a
ordem de ataque do Senhor das Trevas, o seu olhar já dizia o que tinha de
fazer. Ele deu a volta em torno do precipício na sala e saiu voando pelo buraco
no telhado aberto quando Iratus foi arremessado.
Lucius despertou tendo diante dos seus olhos
o seu pai, Petrus. Deu-lhe um abraço efusivo, logo em seguida chorou
compulsivamente, e ainda choroso, pediu-lhe perdão pelo que havia feito.
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