Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

domingo, 30 de setembro de 2012

Em tons de cinzas


Esse texto teve como fonte inspiradora a troca de comentários no blog A Parte e o Todo de mim da minha amiga Cris Campos. Recomendo a leitura.

 

 

   O vazio é um espaço infindo quando se instala dentro de nós, cuja forma é um túnel em tons de cinza sem uma perspectiva definida. Deixo o som no último volume para não ter o trabalho de ter que mexer com os dedos a pedra de gelo no meu uísque. O vazio tem esse poder de nos tirar qualquer reação, de tornar cada ato pesaroso. Queria acreditar que nem tudo que se escreve é verdadeiro, assim como não deveria ser os sentimentos de quem é abandonada, posto que a dor seja sentimento que nos aprisiona.

   Muito mais do que mexer a pedra de gelo, a música mexe é comigo. Ainda que o uísque possa me provocar embriaguez, é a música que me embriaga de recordações. Tentando demonstrar firmeza, eu me apoio nas recordações para não cair, mesmo impossibilitada de me manter em pé devido ao estado que estou. Seguro as lágrimas para não cair junto com elas e ser levada pela sua água.

   Houve uma época que pensei que as aberturas de pernas o prenderiam. Lembro bem que imitava os cruzamentos de pernas da Sharon Stones, ainda mais os seus olhos penetrantes a lhe dizerem: "me entenda antes de querer saber o significado da sombra entre as minhas coxas". Vulgar? Bullshit! A sós, ou no escuro acompanhada, entre quatro paredes ninguém se sabe, pois tanto a falta de luz como a de companhia nos possibilita toda forma de ser. Contudo, o máximo que consegui foi a pureza erótica da Marilyn Monroe, e não lhe convenci, pois ignorou o meu happy birthday to you.

   Fui tola ao acreditar que se prende um homem com aberturas e fechadas de coxa. Tampouco o prende aliançando o seu dedo anelar. Coração de homem é terra infértil, um péssimo investimento, pois torná-lo fértil é correr o risco de uma sem-terra-novinha-gostosona invadi-lo e tomá-lo para si.

   Fiz do meu lençol chão para você plantar a sua raiz, nua como uma lua em noite de verão, ansiei para ver estrelas pipocando no céu da minha boca. Quantas vezes eu vi constelações em volta da orbita dos meus olhos quando você pousou suavemente sobre mim e sussurrou Pitty em meus ouvidos:

¨ Que você me adora
Que me acha foda
Não espere eu ir embora pra perceber
Que você me adora
Que me acha foda¨

    Mas foi pouca adoração para muita foda, ou então a adoração foi ao físico, que dá no mesmo, é tudo uma questão de semântica.   

   Desligo o som, o meu sofrimento não merece uma trilha sonora. Ligo a televisão, mesmo sabendo que ela é a pior companheira para a solidão.

   Eu sou foda - não no sentido figurado, mas no literal.  - Melhor dizendo, eu fui fodida, por você. E qualquer aplicação que se faça do verbo é plausível, tanto para significar minha situação agora como antes.

   Pensei que teríamos um final feliz, piegas até, com festa, bolo e brigadeiro, anel sendo colocado no dedo esquerdo anelar tendo um padre a testemunhar as nossas juras de amor até que a morte nos separa sem a necessidade de um matar o outro após décadas de convivências.

   O bolo de aniversário de um ano de namoro bolourou em cima da mesa. Que o tempo se encarrega de esfacelá-lo, quem sabe ele sirva para contar uma história que não era para ser vivida, mas inventada.  
 

A primeira leitura que fiz de um texto da Cris, eu fiquei estupefato com a sua capacidade de discernir fazendo bom uso da nossa língua. Na segunda leitura, eu me tornei admirador para depois virar fã de carteirinha. Os seus poemas são como flechas certeiras atingindo nossa mente e nos fazendo refletir. Para você que gosta de textos inteligentes e com conteúdo, eu recomendo acompanhar o seu blog A Parte e o Todo de Mim. Boa leitura e um bom domingo a todos.
Primeira Imagem Getty Images

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Gaia - Última Página

O caminho estava enlameado, aqui e ali se via alguns destroços da última grande guerra, a natureza relutava em reviver, algumas gramíneas ressurgiam entre os escombros. Quando, enfim, ele se viu diante do portão da Horda abandonada, a destruição do local fez surgir a desesperança e por um instante ele se perguntou se valia a pena arriscar a sua vida para salvar uma raça que ao longo da sua própria história foi mais maligna do que a criatura que iria enfrentar. Não se deixou levar pelos pensamentos e se encaminhou para a Igreja.
   O fogo havia destruído todo telhado, as paredes enegrecidas pela fuligem do incêndio se mantinham de pé, porém, com a metade do seu tamanho original. Próbolo não acreditou quando viu o crucifixo com a figura de Cristo intacto. Não se espantou quando passou as mãos pelos cravos e os sentiu úmidos, provavelmente devido à neve derretida, porém, ao olhar suas mãos e vê-las impregnadas com um líquido pastoso e avermelhado, ele deu um pulo para trás. Ao levar um dos dedos das mãos à boca, não se sabe se impressionado com o que vira, ele sentiu o gosto de sangue. As surpresas lhe foram demais, cambaleando, foi ao chão. Quando o seu corpo ia ao chão, viu uma sombra gigantesca se avolumar em uma das paredes da Igreja. Ao bater a cabeça em uma peça dura dos escombros, ele desmaiou.
   O túnel levara o Demo à Igreja. Chegando lá, diante do crucifixo, ele se perguntou por que aquela raça adorava e idolatrava a imagem daquele homem pregado na cruz. Passou as mãos pelos cravos e sentiu que o tempo havia imposto o seu domínio sobre os mesmos, a ferrugem escorria, após o derretimento da neve, entre a madeira e os furos nas mãos e pés da imagem entalhada. Fungando o ar, ele sentiu o cheiro que guardou na sua mente durante esses vinte e cinco anos. Perscrutou o olhar para a direção de onde estava vindo o aroma. Diante de si, a imagem de alguém desmaiado, com um pequeno detalhe, uma tira de pano grená amarrando os seus longos cabelos. Com o aroma vindo daquela tira, não teve dúvidas, era ela.
   Recobrado, Próbolo não mais se viu diante do Cristo, mas do Demo. Assim que o Demo percebeu que não era uma mulher, mas um homem, filho da sua presa, ele sorriu, pois o seu intento, a vingança, seria mais valiosa por saber que a luta se daria entre dois machos. O gosto do sangue que ele iria derramar não teria o gosto da vingança, doce, e nem a sua temperatura, fria, mas, amarga e quente. O sangue seria derramado.
   Ao levantar-se, Próbolo ia partir para cima da criatura, mas a sua voz interna o havia alertado para não se deixar levar pelo ódio. Outra voz o alertou que ali não era lugar para lutas, pois ele estava em solo sagrado.
   Ao encaminhar-se para fora correndo, Próbolo provocou no Demo uma satisfação extremada, pois ele pensou que era o medo o combustível da sua correria. O Demo, a passos largos, alcançou a rua no momento que Próbolo parou esperando o ataque. Os dois se olharam, Próbolo tentando antever o ataque, o Demo procurando o medo no inimigo. Não o viu, porém, um sentimento maior o levaria ao seu intento, a vingança. Flexionando os joelhos, ele saltou por cima de Próbolo e ao aterrissar no chão, atrás dele, ceifou com as garras o seu rabo de cavalo levando-o ao nariz. O aroma impregnado na tira de pano grená o levou ao delírio e depois a satisfação. Preparou o golpe final flexionando uma das pernas para prender Próbolo no chão com as garras dos pés. Próbolo não sabia como reagir, surpreendido e ainda abalado pelo golpe, divisava a morte nas garras do inimigo. Então, sem saber quem lhe falava, ouviu uma voz lhe pedir para ter fé Naquele que tudo pode, entrecortado por outra voz lhe ciciando aos ouvidos que o ponto fraco do inimigo estava nas articulações.
   O Demo se preparava para fincar as garras dos pés no chão, prendendo uma das pernas de Próbolo, quando foi surpreendido pela sua reação. Próbolo rolou no chão e ao mesmo tempo em que flexionava o tórax e o joelho, retirou o punhal da bainha presa na perna direita e o cravou no joelho da criatura. O Demo desabou no chão procurando o inimigo com os olhos. Quando o viu, tentou uma reação, contudo, ele não a teria. Próbolo, usando os pés, flexionou a cabeça da criatura para trás e enfiou a espada de cima para baixo. O Demo sentiu o fio frio da espada lhe rasgar as entranhas e quando atingiu o seu coração, o gosto amargo da derrota lhe chegou à boca avisando-lhe o seu fim.
   Próbolo não se sentiu vitorioso, internamente, aquela morte não o satisfazia, apesar de saber que não tinha outra opção. Encaminhou-se à Igreja e ajoelhado diante da imagem entalhada do Cristo pediu perdão.
   A ferrugem terminou o seu processo de deterioração sobre os cravos e levou a imagem entalhada do Cristo ao chão, quebrando-a. Assustado, Próbolo deu um pulo para trás tropeçando nas lascas de madeira projetadas e caiu. Ao se levantar, viu diante de si a Bíblia que fora da sua mãe aberta nas cartas de Paulo aos Coríntios. 
   O sol estampava no céu a sua luz iluminando a terra como nunca havia iluminado antes. Com a Bíblia em mãos, Próbolo sabia que o seu caminho não seria mais o mesmo, pois a Palavra, além de lhe trazer mais luz, ia trazer a terra também. Um longo período de iluminação se iniciava.

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domingo, 23 de setembro de 2012

Gaia - Página 6

Ao sair do compartimento de armas, Próbolo se lembrou de um punhal dado pelo seu tio Phobus que dizia ter pertencido ao seu pai Cretus. Voltou ao compartimento e abriu a gaveta de souvenir retirando o punhal, quando a fechou, uma tira de pano grená lhe chamou a atenção. Internamente algo lhe dizia para não levá-la, porém, ele lembrou que seu tio lhe dissera que aquele retalho de pano era do vestido de sua mãe quando a encontrou morta. O que ele mais queria eram de volta as suas lembranças para saber quem era. Apesar dos sonhos desvendarem os mistérios sobre o que abateu à sua família, não lhe dizia quem realmente era. Saber-se é existir, pensou. Não teve dúvidas, amarrou o seu longo cabelo com a tira de pano e saiu do compartimento de armas com arsenal necessário para enfrentar os perigos que nem ele mesmo sabia.

   As pegadas das garras do Demo moldadas no chão umedecido pela neve derretida levavam à casa dos Pais de Próbolo. Dentro da casa os olhos do Demo impregnados de ódio percorreram a labareda lançada pela sua boca, e, vermelhos de vingança, tal quais as chamas, viram os engradados virarem cinzas e lhe mostrar a porta da fuga de sua presa. Com o olfato apuradíssimo, apesar de ter passado vinte e cinco anos, sentiu o odor da família de Próbolo como se tivesse sido espargido no ar naquele momento. O urro de glória por ter achado a pista entremeado pelo de ódio por não ter percebido a rota de fuga no momento da luta ecoou no ar. Arrancou a portinhola de aço com as garras das duas mãos e a arremessou para o alto perfurando o telhado. Movido pelo sentimento que o apossava, ódio e vingança, lançou-se na abertura estreita à sua frente e se arrastou rumo ao desconhecido deixando para trás os escombros das paredes destruídas. Percorridos longos trechos, ele se pôs de pé e se viu em um ambiente arejado, com iluminação, temperatura amena e alimentos sintetizados. O odor ali lhe era familiar, sorrisos brotaram dos seus lábios. Perscrutou com o olhar uma saída e a viu fechada por pedras amontoadas uma sobre as outras. Colocou suas garras sobre a mesma e sentiu que aquela obra foi feita por mãos humanas na tentativa de esconder o seu passado.
   A história já se mostrou ser eficaz em nos relatar as várias tentativas do homem em esconder o seu passado e o quanto foi infrutífero. Esconder das próximas gerações o passado é não lhes dar a oportunidade de se conhecerem e de saberem os perigos enfrentados e se prevenirem dos perigos que estarão por vir.
   O Demo lançou da sua boca o fogo sobre as pedras amontoadas e, aos poucos, lavas incandescentes escorriam formando um rio de fogo sobre o chão. O passado se libertaria e quando chegasse à nova geração, ela não o saberia e nem a si, pois não lhe foi dado a oportunidade do seu conhecimento. Indefesa, restaria a nova geração apenas o instinto, e, ele por si só, em terra de homens, não garantiria a sua sobrevivência. O que é a ação instintiva senão uma herança gravada nos genes ou na memória devido a um acontecimento passado.

   Quando Próbolo saiu, o ambiente externo não era mais o mesmo, a temperatura morna o havia modificado. As pessoas também não, nos seus rostos havia sorrisos sinceros, no dele, sem saber o porquê, permanecia a mesma fisionomia. Repentinamente, refletida no vidro da janela da casa do outro lado da rua, a imagem da criatura infernal que lhe foi revelada em sonho adentrava os seus olhos desestruturando-o internamente. Ele piscou os olhos e os segurou cerrados por alguns segundos, quando os abriu, a imagem havia desaparecido. Uma voz interna se fez audível, avisando que o Demo estava voltando para tentar se vingar da derrota ocorrida há vinte cinco anos atrás, mas que era para ele não temer. A voz, disse para si mesmo, era idêntica a da sua mãe ouvida no sonho. Ele se agarrou na mesma arma que sua mãe, a fé. Enxergou o ambiente externo com outros olhos, retribuiu sorrisos e cumprimento para espanto de quem passava, não pelo arsenal que carregava, mas por outra arma eficaz para a convivência, as boas maneiras. Enfim ele encontrou a resposta que tanto ansiava, Deus não havia lhe tirado a mãe, mas lhe dado vida o suficiente para que ele próprio sobrevivesse. Ele já se sabia e já se bastava, não esperaria o seu monstro para operar a sua transformação total, o seu encontro à fé, a sua volta à luz. A vida com seus ciclos de luzes e trevas acompanham o homem desde o seu surgimento. Chegou o momento dele fazer parte da história e trazer de novo a luz. Encaminhou-se para a Horda abandonada, sabia para aonde ir, a Igreja incendiada.

Continua

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quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Gaia - Página 5

   Assustado, Próbolo acordou, foi ao espelho e viu o seu rosto aterrorizado. Lembrou de ter passado toda a sua infância em um abrigo antinuclear. A surpresa de seu pai Cretus ao sair do abrigo e perceber que apesar do inverno rigoroso, havia vida sobre a terra. A primeira Horda erguida em volta da Igreja fundada por sua mãe que pregara esperança e fé e por causa disso fora morta, pois diziam que o Deus dela os havia abandonado. O desespero do seu pai ao vê-la morta pelos seus e num ato tresloucado de vingança caçou os seus assassinos, um a um, matando muitos até ser morto em uma emboscada. E a última lembrança dessa época, arrastado por um desconhecido, mais tarde saberia ser seu tio Phobus. Deste momento ficou gravada em sua memória a Horda sendo abandonada e os últimos habitantes incendiando a Igreja. O último vestígio do cristianismo estava sendo enterrado ali juntamente com seus pais. Que Deus era esse que deixava morrer a filha que mais O amou, a sua mãe. Essa foi a pergunta que ele mais se fez, sem obter resposta.
   O amor que não pode ter do pai foi recompensado, um pouco, pelo amor recebido do seu tio Phobus, irmão de sua mãe. Comerciante, Phobus morreu sem lhe dizer o que aconteceram com os seus pais, pois, depois da guerra, havia perdido contato com os mesmos. Quando o achou perambulando pelas ruas atrás de comida, acolheu-o porquê era norma daquela época abrigar os órfãos. A maioria dos casais havia perdido os filhos, primeiro durante a última grande guerra e depois durante o ataque das criaturas infernais, os Demos. Phobus somente o reconhecerá como sobrinho porque o TABLET holográfico que ele trazia havia uma mensagem dos seus pais.
   As lembras exauriram Próbolo, elas não lhe trouxeram nenhuma lágrima, apenas o entristecera, tornando os seus sentimentos mais secos do que já eram. Um calor incomum o acometeu e o fez tirar o casaco de pele de urso. Foi à janela novamente e viu feixes de luz alaranjarem o céu no horizonte. O vento gélido, agora, havia se tornado úmido, porém ameno, um filete de água escorria pela neve que cobria as ruas. Algumas pessoas arriscavam sair às ruas sem a proteção habitual. Depois de vinte e cinco anos, a terra voltava a esquentar e ele não sabia o que poderia acontecer no clima que estava por vir. Digitou a senha que abre a porta do compartimento secreto da sala de armas e se armou para o ataque de qualquer animal feroz. Ele presente que o que estava por vir estava além da compreensão humana.

     Após vinte e cinco anos, o sol desanuviava o céu, os primeiros pássaros começaram a surgir juntamente com outros animais, as ruas iam ganhado cores e vozes, a neve derretida enchia o leito dos rios. Enquanto a alegria abria as janelas das casas, o alvoroço abria as portas, e a vida tomava outro rumo. Juntamente com o sol, nascia uma nova estação desconhecida de todos, a esperança. Porém, a nova estação, ao aquecer o planeta, não traria apenas esperança. Em uma Horda inabitável, abandonada por seus habitantes devido os ataques das criaturas infernais, o sol refletia em uma peça de aço acelerando ainda mais o degelo.
   Quando a cápsula de sobrevivência despressurizou, arremessando a porta contra o painel de controle da nave, significava que a energia entrava em estado de emergência e não demoraria em acabar.
   As suas garras se abriram antes mesmo dos olhos, ao tocar o assoalho da nave, ele o sentiu quente e esboçou um sorriso tímido, porém ao ver a luz de emergência piscando no painel, sabia que a energia estava acabando. Saiu da cápsula direto para o compartimento de operação da nave e foi surpreendido quando o sol refletido no painel ofuscou os seus olhos. Acionou o dispositivo para proteção dos raios solares e em seguida o de abertura dos painéis solares para captação de energia. Assim que o sol refletiu nos painéis solares, a vida ganhava formas e cores na nave. O Demo flexionou todas as suas articulações e sentiu a vida pulsando dentro de si, aguçou o seu olfato e sua mente processou apenas um cheiro, a da família de Próbolo. Ainda na nave, retirou o cartão de memória da face lateral esquerda do seu rosto e inseriu na porta de entrada USB do painel de controle. Com as garras sobre a mesa digital acionou o dispositivo de busca digitando as palavras: "imagem-holográfica-última-casa". Em poucos segundos o processador projetou diante do Demo a imagem holográfica da casa dos pais de Próbolo. Com as garras sobre a imagem, ele foi adentrando a casa e assim que avançava, a imagem holográfica focava onde as suas garras se encontravam ampliando o ambiente. Quando ele chegou ao ambiente desejado, acionou a tecla IV 100 - imagem virtuais cem por cento - e foi projetado para dentro da mesma. Acionou a tecla LA - limpar ambiente - e aos poucos os objetos encontrados no ambiente virtual foram desaparecendo. Quando se deparou com a portinhola de aço não teve dúvidas, foi por ali que eles fugiram. Em seguida, ao acionar a tecla IO - intensificar odores -, vapores aromáticos impregnaram o ambiente virtual com o cheiro sintetizado da família de Próbolo, então, ele foi tomado por um desejo de vingança incontrolável, a partir desse momento, os seus movimentos dentro da nave foram automáticos. Acionou a tecla BLRUI - buscar localização real da ultima imagem - e quando o led verde acendeu na mesa digital ele saiu apressadamente da nave e olhou na direção que o raio infravermelho apontava. A casa estava ao sul do bico da nave. Partiu para lá em busca de pistas.

Continua

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domingo, 16 de setembro de 2012

Gaia - Página 4


   Eles sabiam que se ficassem ali para lutar ia deixar o seu filho órfão. Mary se vestiu com o vestido grená sem perceber que o mesmo havia rasgado e uma tira havia enganchado na ponta de um dos engradados, então, foi ajudar Cretus arrastar a mesa para próximo da portinhola de aço ajeitando as cadeiras em sua devida posição. Cretus amarrou a ponta de uma corda em um engradado esticando-a em direção à entrada da portinhola, empilhou os engradados, um sobre o outro, desordenadamente. Entraram na passagem segurando a ponta da corda. Cretus cortou um pedaço da corda e amarrou na maçaneta interna da portinhola, deu a outra ponta da corda para Mary e a ordenou que a puxasse. Assim que ela puxou trazendo para dentro a lasca de madeira atada no primeiro engradado, ele puxou a corda presa na maçaneta travando a portinhola. Rogaram as suas esperanças nas preces que fizera para que a entrada da passagem fosse encoberta pelos engradados empilhados. Com o movimento dos engradados, a tira de pano grená desprendeu e parou próximo da criatura morta.
   Entrementes, do lado de fora da casa, duas criaturas continuavam lutando e não perceberam o ruído vindo da casa. A batalha era sangrenta, desumana, animalesca, injusta, como toda batalha entre homens. As duas criaturas em posse de uma lança se preparam para o golpe final, sabiam que o combate estava no fim. Olharam-se, não pela última vez, tentando presumir o golpe final, o silêncio imperou entre eles por alguns segundos e foi quebrado pelo urro de ambos ao irem um de encontro ao outro. Quando uma das criaturas apoiando em um dos pilares de um edifício em ruínas projetou o seu corpo no ar realizando um mortal, o outro já sabia do seu destino, sem tempo de reagir, recebeu o golpe da lança do inimigo nas articulações do joelho direito. Caído de joelhos, ele olhou para o inimigo sem pedir clemência, guerreiros não se curvavam, porém, seus olhos demonstravam uma rendição raivosa. O outro arrancou a lança cravada em seu joelho direito, segurou a sua cabeça curvando-a para trás e sem misericórdia cravou a lança em seu pescoço de cima para baixo. O urro do vencedor arrastou alguns escombros na rua, entrou pela porta da casa, revolveu os engradados empilhados, entrou pela fresta da portinhola e desestabilizou Cretus. Mary continuou incólume, sua fé não deixava nada lhe atingir. Aninhou Próbolo próximo dos seios e seguiram em frente.
   A criatura, ao entrar na casa, percebeu movimentos no céu, retornou e, meneando a cabeça, olhou em todas as direções sem entender o porquê daqueles movimentos nervosos das nuvens. Entrou novamente na casa desconsiderando a ocorrência, pois sabia que ainda não aprendera tudo sobre o novo planeta e aquele momento não era de aprendizado. Perscrutou com o olhar o ambiente a procura de sua presa, foi de ambiente em ambiente procurando-a, ao não achar voltou ao primeiro ambiente, viu um dos seus caído no chão e próximo dele uma tira de pano grená. Levou a tira às narinas e aspirou todo o aroma contido nela desprezando-a logo em seguida, não obstante, sabia que o cheiro era da sua presa e agora o tinha consigo.   Desconfiou do amontoado de engradados e enraivecido, arremessou a mesa contra a parede, em seguida as seis cadeiras. Os engradados amontoados receberam aquelas lascas de madeira dificultando mais ainda a possibilidade de visão da portinhola de aço. Nervoso, a criatura deu um tapa nos mesmos e urrou de dor, pois uma das lascas de madeira havia atingido uma das articulações de suas garras. A criatura agora sabia que eles haviam escapados por ali. Um ar gélido vindo da porta de entrada passou assustando-o, porquanto, fora a temperatura gelada, repentinamente, atingindo o seu planeta que fizeram com que fugissem de lá. Ao sair, percebeu que os movimentos das nuvens se davam por uma frente fria estar tomando conta do céu. Correu em direção a sua nave e notara que era muito tarde para levantar voo. Algumas criaturas se debatiam tentando aquecer do frio repentino, enquanto outras se quebravam devido à baixa temperatura. Uma nave levantara voo, mas ao atingir o céu, embicou para baixo e caiu espatifando no chão. O piloto não aguentara a baixa temperatura e havia se quebrado em diversas partes. O instinto de sobrevivência o levou aonde podia. Ele se fechou em sua nave enquanto a neve a cobria. Ligou os motores de aquecimento sem saber quanto tempo ele duraria. Apegou-se a um desejo, o de sobreviver e a uma vontade, a de encontrar a presa que habitava aquela casa. Ele apurou o seu olfato e deixou permanecer em sua mente todos os aromas sentidos naquela casa, principalmente o contido na tira de pano grená.

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quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Gaia - Página 3

   Ao entrar no outro ambiente, Cretus viu o Demo enfiar as suas garras da perna esquerda no chão prendendo a perna direita da sua esposa e em ato continuo fez o mesmo com a outra perna. Sem tempo para pensar, pois o momento pedia ação, ele subiu o pilar central da casa e se escondeu apoiando-se no caibro do telhado. Seus movimentos, por mais silenciosos que fossem, não passariam despercebidos pela criatura.
   Ao virar-se para saber de onde vinha os movimentos trazidos aos seus ouvidos, o Demo sentiu que havia outra pessoa no ambiente, despregou as garras do chão encaminhando-se em direção ao ruído. Lestamente, Mary abriu uma portinhola de aço próximo ao piso da parede lateral e jogou o moisés com Próbolo dentro. O choro estridente do seu bebê foi ouvido dentro e fora do ambiente. A atenção, não somente da criatura que estava dentro, mas também das que estavam fora do ambiente, fora direcionada ao choro do bebê.
    A criatura, ao ouvir o choro do bebê, virou-se em direção à Mary e não o vendo mais, primeiro irou-se, depois soltou uma gargalhada, pois percebera a portinhola de aço e deduziu que ela havia colocado o bebê lá dentro. Arrastando as suas garras pelo chão, em uma cena teatral inútil, pois nada do que ele fizesse iria provocar medo nela, o Demo deixou em segundo plano o ruído provocado por Cretus e encaminhou-se em direçâo à Mary. Ao aproximar-se, mostrou os seus caninos vociferando, abriu as garras das mãos e arrancou o seu vestido grená. Em seus olhos havia uma cupidez que até então não havia demonstrado. Quando na parte central do seu corpo, um pedaço da sua carcaça foi para frente e depois, dividido em cruz, se separou deixando à mostra um cilindro com uma esfera na ponta, Mary percebeu qual era a sua intenção, provocar medo simulando uma tentativa de estupro. Risos soltos saíram de sua boca irritando a criatura. Para o Demo seria uma desonra matá-la sem nenhum traço de medo estampado em seu rosto. Com as garras da mão, ele cortou-lhe a calcinha levando as narinas e lhe esboçou um sorriso cínico. Mary lhe devolveu o sorriso cuspindo em seu rosto toda a sua fé. A Palavra tinha poder e surtia o seu efeito. Irado, ele projetou a sua cabeça para trás espumando pela boca ao mesmo tempo em que urrava. Cretus aproveitou a oportunidade e correu ao longo do caibro e se jogou de peixinho empunhando a sua espada. Quando a ponta da espada entrou pelo seu pescoço, a criatura foi tomada por um medo descomunal. Pendurado na ponta da espada, Cretus jogou seu corpo para trás dando um mortal de costa e caiu de pé no ombro da criatura. Sem perder tempo ele se projetou no ar fechando as pernas e a abriu próximo do cabo da espada, ao tocá-lo o peso do seu corpo cravou a ponta da espada no coração da criatura. Com os olhos arregalados, o Demo olhou pela última vez para o seu algoz e desabou no chão.
   As emoções fervilhavam tanto em Mary quanto em Cretus, porém, eles não podiam exacerbá-las, pois os ruídos tinham chamado a atenção das outras criaturas.
   Não muito longe da casa de Cretus, atentos a qualquer movimento audível, as criaturas primeiro ouviram o som do choro do bebê e depois o de combate. Todos, sem exceção, sobre os escombros da grande guerra, vasculhavam os mesmos a procura de corpos para incinerá-los, porém, eles ansiavam por corpos vivos, por sangue. Entre si, lutaram mortalmente pelos corpos na casa, enquanto lá dentro Cretus e Mary confabulavam a salvação.

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domingo, 9 de setembro de 2012

Gaia - Página 2


   Cretus sabia que só havia um ponto mortal nos Seres das trevas, sua carcaça dura e lisa só era maleável nas articulações, portanto se ele quisesse matá-los teria que cravar a sua espada no pescoço, de cima para baixo, até atingir o coração. Conhecidos como criaturas infernais, ou apenas Demos, os Seres das trevas tinham a carcaça na cor vermelha, um rosto canino protuberante, dois orifícios laterais servindo como audição, braços e pernas alongadas com três ganchos afiados nas extremidades, altura entre um metro e noventa a dois metros e meio. Hábeis e velozes, após eliminarem as suas vítimas as carbonizavam com as chamas saídas de suas bocas. Sobre os escombros da última grande guerra, eles aproveitaram da fraqueza humana e desenfrearam uma caça inominável para a total eliminação do espécime. Cretus sabia que o Diabo era fruto apenas da maldade humano, portanto se houvesse uma criatura infernal, ela seria símile ao homem, aquela criatura era muito mais do que isso. E se houve um laboratório para provar a sua teoria, a última grande guerra provou, qualitativamente, o quanto o homem se assemelhou ao diabo em suas atitudes ao exacerbar na guerra o que praticava em menor escala no seu cotidiano.
   O que estava diante de si tentando eliminar a sua família não tinha nada de humano, recolhia as sobras da destruição para apagar qualquer vestígio da passagem humana sobre o solo terrestre. Se do pó viemos, ao pó estávamos retornando, pois todos os corpos estavam sendo carbonizados. Ele teria que lutar contra essa criatura, não para salvar a raça humana, não era a sua intenção, apenas para salvar a vida de seu filho. A sua esposa, sua querida Mary, não tinha mais salvação, ela estava nos braços da criatura.
   A criatura olhou nos olhos de Mary procurando o medo, muito mais do que a morte, o que lhe satisfazia era ver o temor em suas vítimas. Mary mantinha a sua inabalável fé, principalmente nos seus piores momentos, e tinha vivido tempo o suficiente para não temer a nada. Muitos já a denominaram de irresponsável por nada temer, outros de prepotente por a tudo enfrentar, sem medo. Porém, ela sabia que somente a fé em Deus lhe trouxe até ali e era a sua inabalável fé que lhe tiraria dos braços daquela criatura.
    Meneando a cabeça lateralmente da esquerda para direita amiúde, a criatura fixou seus olhos nos olhos de Mary tentando entender porque ela não demonstrava seu temor. Mary, imbuída pela sua fé, agarrou a cabeça da criatura e falou pausadamente, Eu não lhe temo. A minha defesa é a crença no Altíssimo. Sacolejando a cabeça em todas as direções, o Demo projetou o corpo de Mary para trás de si. Sem ter aonde se apoiar, ela foi ao chão caindo próximo de uns engradados. Com a queda de Mary, os engradados caíram uns sobre os outros deixando à mostra o seu pequeno bebê.
   Passando as três garras do pé direito sobre o chão, o Demo provocou um ruído estridente e agudo, ao mesmo tempo outro ruído, de medo, se ouviu no ambiente. Era o choro do bebê. O Demo virou-se em direção ao ruído e mostrou os seus caninos satisfatoriamente. Cretus, no outro ambiente, também ouviu os dois ruídos, e tanto um como o outro o apavorou. Ele sabia, Próbolo estava em perigo, o seu bebê.

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quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Gaia - Página 1

   Próbolo justificava o seu sustento de todos os dias em um serviço maçante no comércio que pertencera a seu tio Phobus. A sua permanente mudez o enclausurava no silêncio sepulcral. Atendia aos poucos freguês que arriscavam enfrentar o frio rigoroso sem lhes dizer uma palavra, as suas respostas eram por gestos, uma forma de se esquentar no clima gélido e permanente. Nunca sabiam se ele estava triste ou alegre, se sofria ou não, pois seu rosto estava emoldurado a mascara viva da indiferença, não lhe havia feições.
   Próbolo cerrou as portas do estabelecimento mecanicamente, um ato contínuo do seu desespero por não querer ficar ali, mas ele não sabia para onde ir, ainda mais que sair num clima daquele era arriscar-se sem a esperança de sucesso na empreitada. Não sabia quem era, pois seu tio pouco lhe falou do seu passado, apenas o suficiente para ele não saber demais sobre o que ocorrera após a última grande guerra. Às vezes, era conduzido ao passado pelas lembranças que vinham em sonhos, e elas eram esparsas.  Apesar da sua sisudez, o freguês ia ao seu estabelecimento por ser o único daquela Horda.
   Próbolo subiu as escadas impulsionado pela necessidade do descanso, passou pelo quarto de compartimento de armas e entrou. Abriu a gaveta de souvenir revolvendo os objetos para tentar ser levado ao passado. Retirou o punhal que seu tio lhe dissera pertence ao seu pai, porém um buraco negro em sua mente bloqueava qualquer tentativa de lembranças. Levou às narinas um retalho de pano grená que pertencera a sua mãe na tentativa de ser levado ao passado pelo aroma, contudo, o cheiro já havia exalado.  E assim, sucessivamente, dia após dia, as suas tentativas de lembrar o que ocorrera com a sua família redundavam em fracasso. Avançou os degraus da escada como se tirasse um peso das costas, enfim, ao chegar ao quarto não se sentiu leve, pois os aborrecimentos diários eram um fardo que não lhe saía da mente. Abriu a torneira, encovou as mãos debaixo da água gélida que jorrava e as levou ao rosto, como de hábito não se olhou no espelho, enfiou a cabeça debaixo da torneira deixando-a por alguns segundos, quando a retirou, uma lamina de água se formou como se desse continuidade aos seus longos cabelos lisos. Jogou-se na cama encharcando o lençol e umedecendo o colchão. Por mais que a sua presença fosse sentida, até por ele próprio, o seu corpo estava oco, não se sentia espiritualmente ali, prenúncio de que o pior estava por vir. Levantou-se, não queria se sentir enterrado na própria cama. O sono não passa de uma breve morte e o despertar não é para a vida, pensou. Foi à janela e deixou os seus olhos se perderem na fronteira que separava uma Horda da outra. O sempiterno inverno deixava as ruas desertas. Por incrível que pareça, todos seguiam uma ordem não estabelecida, pois nos Estados não havia mais governo, um poder supremo. Depois do ataque terrorista às Torres Gêmeas estadunidense e da resposta a esse mesmo ataque, o mundo entrou em crise ética, moral, religiosa e financeira. Com a queda das bolsas européias, a economia entrou em crise derrubando todos os governos e levando os países a se digladiarem um contra o outro. A guerra durou cinquenta anos, a mais sangruenta de todas, mais ainda do que as guerras medievais. Sobre esses escombros, o mundo foi erigido, Deus estava morto, Jesus não passava de uma história esquecida em alguma bíblia carcomida pelo tempo que sobrou sob esses mesmos escombros. Algo impensado aconteceu, o cristianismo estava morto. As pessoas só acreditavam em si mesmo e o único combustível que as levavam adiante era para satisfazer as necessidades físicas. O individualismo nunca fora tão perverso como estava sendo nessa era. Estávamos na Era das Trevas. 
   Próbolo, por mais que se sentisse sozinho e vazio, realmente não estava. Uma luz apagada vivia nele, intrínseca, esperando o momento certo para ser acessa. Voltou à cama e tentou não dormir, receava que os sonhos não preenchessem o seu vazio. Forçosamente, permaneceu com os olhos abertos, porém, a luz interna foi acessa, chegara o momento dele se conhecer. O sono, repentinamente, abateu sobre ele derrubando-o na cama.

Continua

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domingo, 2 de setembro de 2012

Silêncio e luz



      Esse texto, em nenhum momento é uma crítica a igreja, ou ao padre, atenta simplesmente ao ser humano, independente de sua religião. O texto surgiu depois de uma leitura da Paula Barros ao meu status no Facebook, quando um padre negou um cumprimento a uma senhora e depois com desdém, gesticulou a mão quando ela lhe pediu uma benção. Obrigado minha querida e estimada amiga, Paula Barros.


   Oh! Meu Deus, fico triste com a imensidão do silêncio, não se tem respostas. Quando não se tem um espelho, em que mirar? Meu Pai, não tem observação, nem sequer um curtir se tem. É, Deus, hoje em dia, nem precisamos falar para ouvirmos a sua voz, é tudo enigmático, assim como o Senhor é, precisamos decifrá-Lo, é preciso tirar conclusões. "Bom dia, padre". Santo Cristo, nem o padre responde mais a um cumprimento. "Padre, sua benção". Pai do céu, ele nem se deu ao trabalho de olhar para trás, simplesmente gesticulou a mão. Será que fez isso por obrigação, para não manchar a sua imagem perante os outros? Por mais revestido de crenças que estejamos, Pai, nos perdemos quando deixamos vicejar o que nos é humano. Sabe, dizem por aqui, que o Senhor fala com as pessoas, mas que elas não escutam, não entendem. Como escutá-Lo se nossos erros nos ensurdecem, como entendê-Lo, Senhor, se ao não reconhecermos esses mesmo erros nos cegamos. Outros dizem que o Senhor fala por sinais. Como, meu Pai, entender esses sinais se não conseguimos entender a nós mesmo. Mas e o padre, Senhor, por que ele não falou comigo? Por que ele não disse nada? Não entendeu os sinais que lhe envie? Eu fico triste, às vezes indignada, e até revoltada. Mas eu trato o padre igual trato o Senhor. Não deveria, Pai? Responda-me, por favor. Eu sei, Senhor, ele não é Deus, apenas mais um ser humano. Sim, eu sei, o Senhor não gostou do que eu disse, não foi? Fala-me, Pai. Será que os meus erros foram tantos que me ensurdeceu? Reconheço que eles são muitos, perdoa-me. Dentre esses erros estar o de comparar um padre com o Senhor, é demais, não é? Eu sei que sou exagerada. Porém, acredito que o Senhor está dentro de nós, não está? Por que a mudez? Dizem que o senhor se comunica no silêncio, mas não te ouço. Eu não compreendendo esse Teu silêncio, definitivamente. Queria te ver, Pai, saber se seus olhos ficam marejados devidos aos nossos erros. Ficam, Senhor? Responda-me, pois o que mais faço é chorar pelos meus. O teu silêncio não me é compreensível, porque o silêncio se assemelha ao desprezo. Mas às vezes eu penso assim: se o padre é humano, portanto, fadado ao erro como eu, então é melhor que ele fique longe de mim, pois, ele é tão surdo como eu. Que ele continue a andar apressado, sem olhar para trás, sem ouvir o meu chamado, gesticulando a mão como sinal de benção. O seu desprezo demonstra a sua surdez, a falta da resposta ao cumprimento a sua escuridão. Deixa-o ir, seguir o seu caminho, e eu de cá fico a observar.

     




   O outro nos serve de espelho para não sermos tentados a cometer o mesmo erro. Com o seu desprezo, o padre silenciou, Pai.  Eu tenho, Senhor, de tirar lições do silêncio que é silêncio para poder escutá-Lo. Por que as luzes se apagaram, Pai? Eu e a minha mania de querer respostas para tudo. Tudo bem, eu não preciso vê-Lo para escutá-Lo. Sabe, Pai, eu vim parar nesse banco da estação por que não conseguia senti- Lo nas igrejas, ali a balburdia era em demasia, a música muito alta, o nome dele, do outro, sabe, do seu adversário era dito repetidas vezes que provavelmente o Senhor ali não seria bem vindo. Pois bem, vim parar aqui tentando Lhe encontrar nas pessoas. Nós que somos a sua igreja, nós somos pedras que desgastará com o tempo, cujo pó espalhará o que Seu filho aqui nos deixou: amai-vos uns aos outros. A energia voltou, Pai, que bom, agora posso enxergar as pessoas. Não voltou? Senhor, estou Lhe ouvindo. Sim, a Luz é vinda do senhor. Às pressas, as pessoas vão à cega, não Lhe enxerga, não percebe que tudo que há é pela força de sua Luz, não Lhe ouve devido andar as escuras, para lhe escutar é necessário enxergar a tua Luz, recebê-La para então, no silêncio escutá-Lo. Sim, Pai, eu compreendo. Quanto ao Padre, sim, entendo, ele se vestiu com suas crenças e na sua arrogância, acha que toda ovelha fora da sua igreja é desgarrada. Quanto às pessoas, sim, Pai, eu sinto a sua Luz e entendo tudo, elas estão vestidas de escuridão, a ignorância as afasta da Luz. Sim, Pai, é compreensível, sofremos porque nos afastamos de Ti, afastados cometemos erros, os erros nos ensurdecem e nos cega. Sim, sinto-me iluminada. Porém, Senhor, o homem também é um animal e a sua insensatez o impele a ser fera, entre feras é o instinto que o move, não sei se estou preparada para isso. Sim, senhor, entendo, o padre também não está, o meu vizinho também não, ninguém está. Eu sei, Pai, por mais espinhoso que seja o caminho, há a necessidade da caminhada para se alcançar a Luz através do aprendizado. Sim, Senhor, nenhum ser despreza o perfume das rosas devido aos espinhos. Obrigado, Pai, agora eu enxergo, serei como a vela que necessita do desgaste da parafina para permanecer iluminada. Agora entendo, Pai, o melhor instrumento de transformação é o amor. Eu sei, parece utópico achar que amando vamos transformar o outro, mas só de sentir esse amor em mim, sinto-me transformada, melhor e feliz. Sim, Pai, eu vou, iluminada.   
     - Padre, me espere. Padre eu preciso de sua benção...


Autores: Paula Barros e Eder Ribeiro

Imagem fotopoética de Paula Barros