Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

domingo, 24 de outubro de 2010

Educação artística

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   Eu não saberia transpor para o papel a sensação do artista ao ver a sua obra pronta, nem a sua satisfação ao sê-la admirada, mormente se entre o artista e a obra não há um parto, e mesmo se separados, muito de um há no outro.
   Minha mãe e eu estamos tão ligados a ponto de pensar não ter havido um parto, apesar de, em carnes diferentes, sermos, senão a mesma alma, feito da essência da mesma alma. Na minha incompletude, sei que muito dela me completa. E se a história é sobre mim, ela, além de personagem, é autora.
   Houve tempo que os carnavais não tinham as impudicícias de hoje, nem os foliões afloravam as suas concupiscências descaradamente e a olhos vistos; não havia, também, a necessidade de algum tóxico para se ter alegria. Era o que se chamava de carnaval familiar, e entenda-se família não apenas como os do mesmo sangue, mas também os amigos. Era outra época.
   Iam todos arrancar argila nos barrancos da margem do – se me lembro bem – Rio Grande, Rio São Francisco e, sem muita certeza, Rio Preto para fazer o molde da mascara carnavalesca. Molde cozido, banhava-se jornais na bacia de água, colocava-os sobre o molde em camadas entremeadas por goma, cola feita com farinha de trigo cozida na água. Sem tremores e com mãos de artista, eles pintavam as mascara secas.
   Bloco na rua, todos, parentes e aparentados tentavam adivinhar quem era o folião fantasiado e mascarado. Era época de talco, serpentina e banho de cheiro. Eu conhecia a mão da artista, as cores tinham uma alacridade que dizia muito da sua personalidade; por isso as viam lucilar em meus olhos, dizendo-me que quem estava atrás daquela mascara não era a minha mãe, mas a própria alegria.
   Talvez seja por isso que o carnaval dura apenas quatro dias, pois o restante dos dias do ano está mais para cinzas. Eu viria saber disso oito anos depois.
   Falido meu pai, eu me uni a minha mãe; apesar de não demonstrar tristeza, senti que ela sofria não somente as dores da perda, mas dores da derrota de meu pai, e, também, as dores das desilusões dos filhos. Com catorze anos, eu tinha a constituição física de um garoto de dez; se houve uma vantagem minha sobre o tempo foi essa, de não aparentar a idade que tenho. Meu pai, malsucedido, perambulou pelas ruas de São Paulo a procura de emprego; enquanto a minha mãe pedalava a velha Singer, costurando e bordando. Alguns meses depois, com esforço e muita economia, ela deu entrada em uma máquina industrial de bordar usada.
   Acostumada com o sistema mecânico da Singer, pedalar para acioná-la mecanicamente e movimentar o bastidor - dois anéis com dezoito centímetros de diâmetro, um exterior e outro interior com bordo para garantir maior tensão no tecido – com as mãos para preencher o desenho com a linha, foi-lhe sacrificante passar a acionar o acelerador da máquina industrial para lhe dar a velocidade desejada e com os joelhos acionar uma alavanca movimentando a agulha para a direita e esquerda e esticando o pano com as mãos movimentava-o de acordo com o desenho. Diuturnamente por não se adaptar ao sistema eletromecânico, ela se desmanchava em lágrimas, exasperando-me. Eu a acompanhei durante meses nas aulas ministradas por uma amiga sua, mas não houve progresso. Quando a agulha quebrou ao atingir o seu dedo, eu resolvi agir.
   Ouvi passos vindos da escada caracol, somente me dei conta que ela era ao abraçar-me. Seus olhos deitados sobre a rosa que eu acabara de bordar ficaram estupefatos. Senti o calor do seu corpo ao abraçar-me mais forte, seus lábios encostaram-se ao meu cabelo. Com o queixo na minha cabeça, seus olhos se perderam no infinito. A rosa bordada por mim umedeceu com as suas lágrimas, não agüentei e chorei também. Anos mais tarde eu viria saber que o mesmo sal das suas lágrimas é também o das minhas.
   Novamente as cores entraram em nossas vidas trazendo alegria, porém eram cores diferentes, matizadas em novelos de linha. Nem na quarta de carnaval o dia era de cinzas.
  

    

18 comentários:

  1. Caraca, amigo, que história!
    Linda e forte como o Rio São Francisco.

    Cara, um beijo.

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  2. O que o amor de um menino pela sua mãe não faz!
    E que mãe boa deve ser essa para inspirar todo esse amor.
    Conheci alguns homens talhados assim e são sempre homens de bem.
    eijos

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  3. Nossa Eder, que linda homenagem a sua mãe querida. Que história de vida. As lágrimas também me vieram aos olhos. Fiquei a imaginar a rosa bordada. Sinal de uma jornada, de luta e de alegria também. Carnaval de cores, de amizade sincera. Lindo, lindo. Parabéns, um bom domingo querido amigo a você e a toda a sua família!! Beijos, boa tarde :)

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  4. Muito bonito!
    Sua mãe é uma mulher no sentido pleno da palavra.

    Parabéns!

    Beijos.
    (viu que tem selinho lá pra vc?)
    ; )

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  5. Eder,suas palavras me fez recordar todo o nosso passado.Quando eu quero aprender qualquer trabalho que tenho dificuldade,comento que você aprendeu a bordar para me ensinar.Eder não esqueço de nenhum momento de alegria que passamos juntos e muito obrigado pela homenagem,mil bjs da sua amada MÃE.

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  6. Tudo até estava bem... Li o texto, emocionei-me com ele, pois vi ali traços da face de minha mãe e comunguei, no texto, o mesmo intenso amor que nutro por minha doce mãe.

    Entretanto, meu caro, quando leio o último dos cinco comentários, postado por um "anônimo", aí não aguentei... Não fui homem para segurar as lágrimas depois de ler, ao final, "mil bjs da sua amada MÃE! E já não quero comentar mais nada! Nem consigo...

    Um forte e fraterno abraço.

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  7. Olá, Éder
    Como o amor materno só memos o Paterno...
    E sobre isso:
    venho propor-lhe algo no meu post de amanhã...
    Conto com sua participação amiga.
    Excelente semana,cheia de ricas bênçãos!!!
    Abraços fraternos

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  8. Eder! Ainda ontem eu falava da máquina de costura de minha mãe para meu marido e para os meninos. Falei que minha mãe não possuía uma Singer, mas que este era o maior sonho dela.

    Eder, é muito belo o que escreveste. E que nem houve parto... a mesma alma, que maravilhoso. Lendo-te lembrei-me de meus filhos- todos os dias me abraçam e me coroam como a melhor mãe do mundo. Ah, as lágrimas...Beijo

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  9. Meu mano querido, divido com nosso querido amigo Gilmar a emoção de ver as palavras de sua mãe aqui! Quanto orgulho do homem de fibra e iniciativa ela tem! E eu, nessa nossa irmandade conquistada, orgulho-me muito de chamá-lo de irmão! Um beijo, Deia.

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  10. Que relato lindo Meu Amigo!
    É por isso que sempre vejo em você uma luz... Você foi educado por um anjo!
    Que a sua semana seja rica em momentos de muita felicidade.
    Beijos com o meu carinho

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  11. HÁ MÃES SENSÍVEIS QUE BORDAM PELOS FILHOS...E BORDAM MITO BEM...ATÉ ROSAS COM ESPINHOS QUE LHES CAUSAM MÁGOA E DOR MAS ELAS SÃO DAQUELA CASTA QUE NUNCA SE DÃO POR VENCIDAS...É MESMO PARA SENTIR ORGULHO NESSAS MÃOS INESQUECÍVEIS E TERNURENTAS DE FADA BOA!!!

    ABRAÇO

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  12. Olá Eder...primeiramente obrigado por suas palavras lá no Verseiro
    Bom...ver sua mãe fazendo uma declaração dessas..ai brincou..rs
    sabe Eder...o mais bonito disso tudo é a mensagem de amor contida neesa história...
    E o final de mestre...
    "Nem na quarta de carnaval o dia era de cinzas"
    Que os dias ai continuem a ser de céu azul, até mesmo nas quartas de carnaval...
    Um abraço na alma...

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  13. Estamos com uma nova proposta em nosso Blog.
    Desta vez queremos a sua ajuda para a construção de um Conto Coletivo.
    Venha participar, sua ajuda será fundamental para que a estória tenha sequência.
    Um abraço carinhoso

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  14. Que texto lindo, Eder.
    Olha, vc é a pessoa que mais me faz chorar nesta vida de blogueira... rs. Incrível!
    Que história linda! Considere-se aplaudido. De pé.

    Quanto ao carnaval, eu não peguei essa época, mas sei das histórias que minha vó e minha mãe contavam.. e já vi registros daquela época. Eu achava tão chique aquelas máscaras. Pena que hoje, com elas, se foi todo o resto dos trajes.

    Linda semana pra vc!

    Beijo grande!

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  15. Oi Eder que sincero e bonito relato. Sua mãe deve ter tido e ainda ter muitas alegrias. Nào é sempre que vemos um filho assim dedicado, que se propõem a aprender algo para ajudar!
    Parabéns aos dois pela linda história.
    Um beijo com carinho para vocês

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  16. Amigo Eder.

    Sempre que venho aqui posso fazer uma leitura prazeroza. Somos parecidos...eu sou muito ligado a minha mãe.

    Ela se foi, mas, para mim ela está ao meu lado todos os dias.

    Tenha uma noite de paz.

    Deus seja contigo.
    Abraços

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  17. Querido amigo,
    Há quanto tempo não houvia falar em "Educação Artística"... e que nostalgia me deu...
    Amei o teu relato... as cores entraram em minha vida também...
    Beijos, flores e muitos sorrisos!

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  18. Eder que saudade de vir nesse cantinho!!
    Lungar especial, to lendo tudo...rsrsr, estive ausente com problemas de mais e só agora consegui um tempo , mas não pense ~que me esqueci pois não esqueci de vc. OBRIGADO POR SER SEMPRE TÃO GENTIL EM SEUS COMENTARIOS!
    PARABÉNS E BEIJO GRANDE

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