Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

O dia da criação

“O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou-lhe nas narinas um sopro de vida e o homem se tornou um ser vivente. Gênese 2,7”.

Como estou numa fase onde a inspiração me foge, como a ética sempre foge dos políticos brasileiros; sigo um conselho de uma amiga bacante que me disse que a inspiração está no sangue e para revivê-la bastasse tomar um bom vinho tinto que ela aflorava. Mas como não me dou bem com qualquer tipo de bebida alcoólica, o que me vem é uma dor de cabeça, como viria ao político se este reencontrasse a ética. Então quando estou nessa fase, recorro ao “cesto de Moises” onde guardo alguns contos do já falecido amigo Onairam Mesrede. Aqueles que leram o conto “A morte manda recado” conhecem o autor acima citado, e como sabem que a maioria dos seus contos são insólitos, publico outro intitulado “O dia da criação”. Sem mais delongas vamos a ele.
Quatro mil anos da era cristã a raça humana estava a caminho da sua extinção, buscando explicação para tal fato e tentando uma salvação foi criado um grupo de pesquisadores, e por pura sorte eles conseguiram achar o que seria o jardim do Éden, e encontraram o que seria uma placa de uma aeronave com um logotipo escrito “BR”. Aquilo intrigaram os pesquisadores, e após muitas pesquisas chegaram à conclusão que aquela sigla era de uma empresa petrolífera de um extinto país da América do Sul, país este que foi durante muito tempo a esperança de salvação para a raça humana por ser considerado o pulmão do mundo. Mas no começo do século vinte um, depois da morte do que seria o melhor presidente daquele país, por ter vindo da classe operária, viu-se que de pulmão do mundo, passou a ser o cu do mundo, apesar de sempre ter sido o cu-de-mãe-joana, devido a sua história; pois, primeiro os portugueses acharam este país e o foderam, depois chegaram os espanhóis, italiano, holandeses, japoneses, americanos e o foderam mais ainda; conclusão, qualquer estrangeiro que colocasse os pés naquele país, o fodia. Portanto dessa mistura fizeram a raça brasileira, e o que seria o seu mais nato representante, completou a cagada fodendo os seus habitantes e numa quixotada colaborou para a destruição do mundo. Alguém pode perguntar como uma raça com tanto sangue nobre poderia colaborar com a destruição do planeta. Bem, depois de pesquisar tanto, e diga-se que sem nenhum traço de preconceito, chegaram à conclusão que a mãe de toda aquela raça era nativa e prostituta; portanto qualquer filho da terra que chegasse ao poder era um verdadeiro filho da puta, e era por isso que no ano de dois mil e onze ao invés de mandar alguém para puta que pariu, passou a mandá-lo para o Brasil, que dá na mesma. Não é à-toa que os portugueses chegaram aqui primeiro. Depois dessa explanação vamos aos fatos. Como o último presidente deste país se considerava o melhor presidente e tudo que ele fazia era para o bem da humanidade, criou um consórcio com mais três países, Cuba, Venezuela e Bolívia para lançar uma tripulação ao espaço. O que parecia ser uma utopia se concretizou, o único momento em que o projeto parecia ir por água abaixo foi quando da escolha do combustível, pois como todo mundo sabia o presidente da puta que pariu, digo Brasil, queria a aeronave movida pelo mesmo combustível que o movia, ou seja, o álcool. Após muita discussão eles chegaram à conclusão que o melhor seria o “gásálcool”, uma mistura do gás boliviano com o álcool brasileiro. Criado a aeronave BR, ela foi ao espaço no dia 1 de abril do ano de 2009, mas antes dela ir ao espaço teve um imprevisto, pois o astronauta cubano fugiu pedindo asilo político; o astronauta venezuelano, a pedido do seu eterno presidente, tentava prender o cubano; e o astronauta boliviano com gases presos não pode ir ao espaço. Então foi ao espaço um autêntico filho da puta, digo da pátria, um brasileiro. Não sei se devido ao combustível, ou a um erro de projeto da aeronave, o último relato que este mandou para Alcântara foi de que ele não estava voando no espaço, mas sim no tempo e para o passado. Disseram as más línguas que o presidente do Brasil proferiu o que seria a sua melhor frase, e como seria lembrado o seu governo; “Que merda, tudo que faço anda para trás”. Os fatos que seguirão somente vieram ao conhecimento devido à exaustiva pesquisa de nossos pesquisadores, aonde eles chegaram à conclusão que foi devido a esta desventura quixotesca que o mundo começou a ser destruído. Segue o relato:
A aeronave que saiu do país de filha da puta, pilotado por um filho de mesma mãe retrocedeu no tempo chegando ao jardim do Éden no sexto dia, pousando em cima do barro no dia em que Deus estava criando o primeiro homem. Deus já tinha esculpido pés e pernas, tinha colocado as duas bolas do que seria o testículo e estava pensando se colocava a extensão do mesmo órgão, mas pensando se ao invés de usar a cabeça de cima, Adão não usaria, por ser homem, a cabeça do meio, Ele hesitava. Quando Ele vira para colocar o que seria o pênis, encontra o brasileiro todo enlameado. Os pesquisadores chegaram à conclusão que ele e Deus poderiam ter travado o dialogo abaixo:
- Adão, você já está pronto? – Pergunta Deus.
- Bem moço, estou pronto desde que minha mãe me pariu. – Respondeu o brasileiro que se chamava Adão da Silva.
- Que blasfêmia, isso deve ser coisa do diabo. – Retorquiu Deus.
- Não moço, isso aqui é coisa do presidente do Brasil. – Disse o brasileiro com toda simplicidade.
- Não tou falando, é coisa do diabo.
E assim Deus desistiu de fazer o primeiro homem, retirou toda inteligência do Adão da Silva e fez com que ele, para pagar pelo seu erro, vivesse daquele dia em diante pulando de galho em galho. E como era manhã e Deus ainda tinha todo o resto do dia, Ele resolveu destruir o jardim do Éden, que no futuro seria as Américas, com medo que o presidente da terra de filho da puta pudesse fazer uma cagada e destruísse o planeta. Mas como o diabo quando dorme só prega um olho, para vingar a destruição da terra que ela amava, terra esta que seria governada pelo seu filho, refez o jardim do Éden, a semelhança do inferno, que no futuro seria, no caso presente é, o planeta terra.
Chegado a esta conclusão, os cientistas rogaram suas preces ao céu pedindo a Deus perdão pelo erro do presidente da puta que pariu por ter interferido na feitura do homem. Deus, como tem a bondade como lema, perdoou o filho da puta e salvou o mundo, descansando no sétimo dia. O diabo, como nunca descansa, retirou o Adão da Silva do galho esquecendo-se de restituí-lo a inteligência e o mandou à terra para, encontrando uma mulher, fizesse um verdadeiro filho do Brasil.
Como se vê um dia os filhos da puta, ou seja, do Brasil, dominarão o mundo.

domingo, 29 de novembro de 2009

De pirataria a cópia, o que é feio fica belo, macho vira fêmea

       “Pois cada um de nós quando criança tem dentro da alma seu sino de ouro que depois, por nossa culpa e miséria e pecado e corrupção, vai virando ferro e chumbo, vai virando pedra e terra, e lama e podridão” – Rubem Braga.

     Ouvindo vozes, que alguns dizem que é do outro mundo, e outros dizem que é caminho para a loucura, resolvi ir numa seção espírita para tirar as dúvidas antes que algum louco queira me colocar camisa de força. Chegando lá recebi um mau espírito, um político brasileiro morto recentemente, e quando desincorporou me senti mais pobre, pois todo o meu salário que estava no meu bolso sumiu. O desgraçado quando entrou em mim, deve ter entrado pelo bolso. Ô classe ruim, nem mortos deixam de praticar política. Refeito do susto, ouvi de novo as vozes, era de Onairam Mesrede. Disse que do outro lado ele leu alguns comentários sobre seus contos e queria que eu publicasse os outros, afinal ele também queria fazer parte do seleto grupo das cem mil leituras, mas faz questão de ser lido por pessoas vivas. Deitando a língua nos dentes, ele me falou que este grupo dos cem mil só tem este número porque é lido pelos mortos, pois quem é vivo corre longe destes textos, afinal, dificilmente se ver qualidade neste grupo. Vou parar por aqui, pois com certeza dirão inferno dele, e como ele está no céu, não sou eu que advogarei ao seu favor. Vou logo a história antes que meus dedos começam a coçar e digito mais coisas que o Onairam disse do seleto grupo que se acha acima do mal e do bem.
     Para ser famoso ou nascemos abastados, ou usamos meios escusos para alcançar a glória, pois neste país pouco se valoriza quem realmente tem valor. A valorização pela qualidade está tão fora de uso que o falso é vendido normalmente, e quem o compra, compra como falso apregoando que o verdadeiro é muito caro. Assim é com o combustível, medicamento, vestuário, cd, dvd e afins. Se for este valor que temos,  qual valor daremos ao ser humano, pois a beleza está na superfície enquanto a miséria viceja na profundidade.
     Cemmil Ainázia da Silva era tão feia que Quasímodo perto dela era um príncipe. Tudo nela era tão desproporcional que tanto de frente, costas ou de lado era a mesma coisa. Desafeiçoada, ela não tinha amigos, não conseguia trabalho, enfim era desprezada por todos. Por isso seu irmão, Luís Ainázia da Silva a sustentava com o dinheiro ganho com sua aposentadoria por invalidez. Metalúrgico, perdera um dedo na prensa, de propósito, para manter o sustento da sua irmã. Na época disseram que perdera metade do cérebro, se é lenda não sabemos. Enquanto Cemmil tinha a fealdade por fora, na superfície, ela tinha uma alma boa, toda sua beleza estava na profundidade. Mas como é pela aparência que julgamos uma pessoa, ela vivia sozinha, feliz a sua maneira, apesar da falta que uma companhia lhe fazia. Com toda beleza que Luís tinha, ele tinha a pior das fealdades, o desvio de caráter, a falta de ética, e uma cegueira exagerada, a de só enxergar defeitos nos outros.
     Cemmil percebeu que para ser vista tinha  que mudar por fora, pois por mais perfeita que fosse por dentro, era o  seu rosto, bunda e peito que diria quem ela era, e por os ter defeituosos, pouco dizia de si. Mesmo tendo nascido com a bunda virada para o lado escuro da lua, ela jogou em todo tipo de jogo de azar, pois sabia que com dinheiro se conseguia poder para transformar-se, fazer uma cópia melhor de si. 
     Cemmil sabia que o dinheiro que leva ao poder pode apagar a estrela vermelha da esperança; e o operário da nova era que iria fazer do verde mais verde, do azul mais azul, do branco mais branco, do amarelo mais amarelo, tão amarelo que reluziria mais que o ouro, só conseguiu dar mais cor ao amarelo, mas a cor do ouro só ele viu. Foram as outras cores, a bandeira e se não abrirmos os olhos vai o país também. Cemmil assim percebeu que com dinheiro e poder tudo pode, até estragar o quê era belo.
     A sorte sorriu para Cemmil e ela ganhou no jogo do bicho. Dinheiro em mãos ela se repaginou, fez mecânica, elétrica, funilaria e pintura. Colocou dois air-bags, um porta mala que cabia bugalhos, cará e alhos. Agora ela tinha conteúdo. Eu que sou fiel a princípios, não aceito traições, por isso também não traio. Sentindo-me atraído pela cópia da Cemmil,  e com um pensamento em mente de que mulher para mim tem que ser natural, pois tudo que é artificial o gosto  fica na superfície, segurei-me aos meus princípios. Como para ser mulher é necessário ter um borozão e dois peitões, Cemmil se enquadrando no perfil, foi para Televisão e lá fez sucesso, apesar de não saber se expressar, mas com os atributos corporais ela se expressava na linguagem que a maioria dos telespectadores entendia.
     E quem achava que a história terminaria aqui, se enganou. Luís Ainázia da Silva vendo toda a transformação que sua irmã sofreu, resolveu também se repaginar. Queria realizar seu sonho, pois quando metalúrgico ele perdera o dedo errado. Seu sonho era ser mulher. Mas para tanto não bastava poder, era necessário ter dinheiro o suficiente para realizar a transformação; como Luís, ainda, não tinha os dois, permaneceu com o órgão indesejado, mas transformando o que dava para ser transformado, então, digamos, que ele virou uma quase mulher e passou a ser chamado de Luís Ainázia Lulu da Silva.
     Por mais que se dobra o sino, por mais que a forja seja modificada para dar-lhe formato de violão, o badalo sempre estará lá para nos dizer que por mais que se pareça com um violão, sino sempre será. Como existem os que adoram o sino só pelo seu toque, existem também os que adoram pelo seu badalo; portanto Luis tinha uma tropa  que o adorava pelo seu badalo, chamada de mensaleiros, porque todo mês vinha sentir o sino. O Zé Genon hino tocou badalando no sino; o outro Zé torceu tanto o badalo que hoje se pergunta porque o sino não dobra por ele; o Marcos Vale rio tanto com o badalo na mão que a felicidade fez-lhe cair os cabelos de tanto ficar ouriçado de prazer. Vou citar somente estes três para exemplificar a felicidade que Luís Ainázia Lulu da Silva proporcionou a si mesmo e aos seus amigos.
     Dizem que toda história tem uma moral, se esta aqui tiver é a de que quem é o que é quando se tem dinheiro e poder é porque quer, pois com poder e dinheiro refaz o que foi feito e repara os defeitos.
     Luís, enfim, aposentou e com sua família e da sua irmã foi gozar férias na Amazônia e lá foram mortos por índios Demo Kratas, da tribo Kaykoku Nupudê Nudoy. Os índios Demo Kratas tinha ojeriza por pretos, pobres, putas, pederastas e petistas, e nossos heróis tinham uma destas características, ou todas. A má sorte fi-los encontrar com estes índios que não tinha contato com a civilização desde 2002, e cuja característica é domesticar tucanos, tornando-as aves assassinas. Com o descobrimento da tribo, o governo resolveu exterminar os índios Demo Kratas e os tucanos domesticados para o bem do país. Após transladar os corpos, fora construído um mausoléu em Brasília para a família de Luís Ainázia Lulu da Silva, cujo epitáfio era esse: “Aqui jaz Luís Ainázia Lulu da Silva que perdeu a vida colaborando para o extermínio dos índios Demo Kratas e suas aves tucanas assassinas”.  

28/10/07

* o autor alerta que para maior compreensão do texto atentar para a data de sua criação.

sábado, 14 de novembro de 2009

A morte manda recado

“O casamento é como enfiar a mão num saco de serpentes na esperança de apanhar uma enguia – Leonardo da Vinci”




O hábito de guardar meus brinquedos quebrados eu tenho comigo desde criança, para desespero do meu pai, e deleite da minha mãe, pois para um tudo que não tivesse utilidade deveria tomar o rumo do lixo, para a outra tudo que reavivasse a memória deveria ser guardado. Crescido não perdi o hábito, casado professei a fé ao costume como o padre ao sermão. No primeiro dia dos pais comemorado com minha esposa; ela, como quem dizendo que logo queria ser mãe e eu pai, presenteou-me com um cesto de vime, isso prova que não é somente o homem que presenteia as suas respectivas esposas com utensílios domésticos, as mesmas assim também o fazem. Com o cesto ela me disse que eu poderia guardar meus “trecos”; minha mãe, tendendo para seu lado poético, chamou-o de “guardador de utensílios para reavivar as saudades”; meu pai, mais realista que o rei, chamou-o de “guardador de alimentos para baratas e ratos”; eu o nomeei de “cesto de Moises”, pois cada objeto ali depositado era como um filho perdido. Necessitando matar as saudades fui ao cesto revolvê-lo, e lá encontrei um conto de um amigo já morto, intitulado “a morte manda recado”. Seu autor Onairam Mesrede somente escrevia contos insólitos, e este não seria diferente. Disse-me ele que o conto era verídico, nunca o tive como tal, pois o contista que conta um conto aumenta o cento. Publico tal qual o original, cabe a cada um que ler concluir se o mesmo é apócrifo ou não. E assim ele começa:

O amor nutrido por Tarcísio e Glória é o que os poetas chamariam de o verdadeiro amor, pois a fonte que cada um bebia para manter em pé a chama deste mesmo amor eram eles próprios, mas com um olhar crítico, quem assim olhasse para os dois, perceberia que o quê mantinha o casamento era o dinheiro; Glória era a própria vaidade em pessoa, e enquanto Tarcísio tivesse dinheiro para manter sua vaidade e luxúria ela o amaria uma eternidade, e para Tarcísio enquanto a Glória mantivesse o viço da juventude ele a amaria uma vida e uma morte. E a vida seguia assim como num conto de fada até o dia do nascimento da primeira filha, diga-se de passagem, não desejada por Glória.

Como um operário analfabeto pode chegar à presidência de um país qualquer, como para roubar não precisa de todos os dedos, pode-se roubar com quatro ou nove; o destino, com todos os seus dedos, roubou o que mantinha aquele casamento em pé: o sustento de Tarcísio, jogando-o na sarjeta. A pobreza o atingiu com tanta força, que as compras que Glória fazia na Oscar Freire, nos shoppings e lojas de luxo, passaram a ser feitas em lojas de 1,99; lojas essas que os sem haveres e teres freqüentavam para comprar bugigangas para dar um sentido a sua vida, produtos estes que nenhuma utilidade tinha, pois duravam dias; Glória passou a freqüentar estas lojas, não para comprar bugigangas, mas sim produtos alimentícios de valor inferior, e qualidade também. O príncipe virou sapo, e ela, de heroína de conto de fada, passou a ser bruxa. Houvesse amor maior pelos confins da terra, não haveria o suficiente que adentrasse os corações de nossos dois heróis, pois os dois nutriam um ódio mútuo.

A filha já havia crescido, e por desapego que a mãe a tinha, não desgrudava do pai, aonde quer que ele fosse ela o acompanhava, até quando ele saía para catar papelão e latinha de alumínio nas ruas.

Muitos, por causa de seus percalços, acusavam Deus por suas desgraças, como se Ele fosse culpado pelas bonança ou infortúnios; outros O tinha como escritor escrevendo suas vidas no livro do destino, como se não fossem capazes de construírem sua própria história; Tarcísio não, ele diferia de todos os mortais, homem desfeito de fé, culpava-se pelos seus próprios erros, e, além disso, existia Glória que não lhe deixava esquecer, bastava ela ouvir sua respiração para lhe acusar a falta do dinheiro.

Quem pensa que a morte não manda mensageiro é porque nunca teve alguém da família morto, ou não percebeu os sinais que ela deixa antes do dia fatídico; e para livrar dela é necessário ser muito astuto ou ter demasiada sorte, e tanto um como o outro, o Tarcísio não tinha.

Estava ele na sala brincando com sua filha, e como sempre ocorre nos finais de semana, de hora em hora um vendedor bate a sua porta, e mal o dia amanhecia um já estava batendo. Glória para não perder o hábito, ao ouvir as palmas do vendedor, desferiu seu vitupério ao Tarcísio: “Imprestável tira a bunda do sofá e atenda a porta”. Impropério dito lá foi Tarcísio à porta acompanhada de sua filha.

Todo vendedor tinha de ter uma boa lábia, e com este não seria diferente, ainda mais por ser seu produto insólito, ele vendia jazidos. Lábia gasta com Tarcísio não surtiu efeito, e dizendo que todos morrem de uma hora para outra, quem sabe alguém da sua família não poderia morrer de repente. Foi o suficiente para Tarcísio, virando-se para a filha pedi-la para avisar a Glória para soltar o capeta. Dirigindo-se para o vendedor pediu-lhe que fosse, pois o capeta estava descendo e poderia atacá-lo. Dizendo isso, Tarcísio tentou fechar a porta, o vendedor colocou seu pé na frente e o impediu. Com um sorriso maroto no canto da boca, Tarcísio escancarou a porta saindo da frente do vendedor. Quando este viu seu campo de visão ampliado percebeu o capeta rosnando e latindo pronto para atacá-lo. O vendedor dobrou os joelhos, e na pressa de correr tropeçou nas próprias pernas. Após aprumar, o vendedor viu o capeta no seu encalço. Tarcísio fechou a porta ao ver os dois sumirem no horizonte. As horas passavam e o capeta não voltava, Tarcísio pensou, ou ele estava deliciando um naco da bunda do vendedor, ou então havia encontrado uma cadela e estava enroscado nela em alguma esquina. Neste ínterim todo tipo de vendedor havia batido na sua porta; a noite vinha chegando e Tarcísio ao ouvir barulho na sua porta foi em sua direção, feliz, dizendo assim: “O capeta voltou!” Ledo engano, era o pior tipo de vendedor, o vendedor de fé que vinha trazer a palavra de Deus, pois era preferível conhecê-Lo em vida do que após a morte. Assim ele se apresentava. Tarcísio assim replicou: “Meu senhor, o capeta está voltando e antes que ele se volta contra você, aconselhou ir, ele detesta estranhos, e por mais fé que você tenha, contra o meu capeta nem Deus te salva”. Como o convidado que estava chegando não era do feitio do nobre vendedor, ele saiu blasfemando contra Tarcísio.

Noutro dia ao chegar em casa, Tarcísio encontrou sua filha em prantos, perguntando-a o motivo, ela respondeu que ela havia morrido. Sem esperar sua filha completar a frase, Tarcísio deu urros de felicidade. A única morte que lhe traria regozijo era a morte de Glória, e assim ele permaneceu, mas como toda boa notícia dura pouco, e as más permanecem por uma eternidade, foi-se à boa e a má eternizou. Tal qual o esfomeado quando termina o seu prato, e ainda não satisfeito, e não tendo mais nada para comer, maldiz a pouca fortuna, assim ficou Tarcísio quando sua filha completou a frase: “A Bianca morreu pai e a Glória está tirando ela da gaiola para jogar fora”.

Antes o que era um rosto alegre por ter sabido da morte de quem mais ele desejava, agora era um rosto entregue a mais profunda tristeza por saber que a vida afeiçoou àquela alma por uma eternidade e meia. Abismado ficou Tarcísio ao ouvir sua filha o culpar pela morte do seu pássaro, pois para ela o fato dele não ter comprado o jazido foi o motivo, afinal o vendedor havia dito que todos um dia morre, e basta não comprarmos para ele nos jogar uma praga. A filha de Tarcísio quando deita a língua entre os dentes não para mais, e ela continuou dizendo que o próximo a morrer seria ele por ser o mais velho, pois ela sempre ouviu dizer que os mais velhos são os primeiros a ir. Com a solução na ponta da língua ela falou: “Basta o senhor comprar muitos bichos. Eles com certeza irão primeiro que você”.

Tarcísio não perdeu tempo, pois sabia que praga de vendedor era pior que praga de sogra, e ele sabia disso pelos piores vendedores, os vendedores de fé. Estes quando eram dispensados lhes diziam de uma forma jocosa: “Fique com Deus”. Se para estar com Deus era necessário professar a mesma fé que eles, ou não acreditar em Deus nos faziam pior que eles. Aos diabos todos os vendedores, disse Tarcísio, e comprou tantos animais que fez da tua casa a própria arca de Noé.

Com tantas inglórias já vividas, Glória passou a viver a pior delas; não bastasse o latido do capeta, o ronco de Tarcísio, ela agora teria que viver com os cantos dos pássaros e galos, os cacarejos das galinhas, os miados dos gatos e tantos outros animais que, se ditos, tornaria a minha história incrédula. Ficamos apenas nestes. Glória ficou noites e noites sem conseguir dormir devido a balburdia dos animais, e quem não pega no sono, ou vira poeta, ou torna-se filósofo, ou, como no caso da Glória, abre a mente para ser oficina do diabo. Com firma reconhecida o diabo abriu a sua; e Glória, como empregada do dito cujo, começou a dar expediente envenenando os gatos. A cada animal morto, Tarcísio comprava o dobro, e Glória matava o triplo. Tarcísio desconfiou que a morte mandava recado, e temendo pela vida de sua filha, a mandou para casa da sua irmã. Como o diabo, quando executa um serviço por mão de outro, o faz bem feito, aniquilou toda criação que Tarcísio tinha em casa. Glória tentou envenenar o capeta, mas como o cão é primo do diabo, este só comia na mão de seu dono.

Quem acha que a morte desiste fácil é porque tem pouco conhecimento sobre a sua antagônica, a vida. Há dias em que o quê mais queremos é um pouco de sol para esquentar a alma fria, e iluminar a nossa vida envolta em trevas. Glória teve este dia quando encontrou o capeta com o focinho todo ensangüentado repleto de formigas a lhe comer as carnes. Ela teve o tanto de sol que merecia, mas para Tarcísio, mais do que o escurecimento, aquilo, era um aviso de que a morte já havia colocado uma placa de fim em sua estrada. Decorrido uma semana, semana esta envolta em tristezas, Tarcísio foi encontrado sem vida, afogado. Não há necessidade de dizer que se houvesse dois sóis, seriam eles todos de Glória. Mas o que é dado por uma mão, não compensa o que foi tirado pela outra. Glória se via só e sem sustento, pois com Tarcísio foi-se o seu ganha pão. Desesperada, ela vendeu tudo que tinha, o suficiente para lhe suster por um ano. Ela passou a água e pão, um dia comendo a carne da costela e no outro roendo o osso da mesma.

O estômago vazio pode levar tanto ao desespero, como o desespero pode levar a uma solução. Tendo somente a roupa do corpo e o próprio corpo para a venda, sendo o último mais valioso do que o primeiro, Glória não se fez de rogada e tornou-se comerciante.

Na cidade de Glória todos têm o hábito de chorar os seus mortos, alguns chegam ao exagero de mijar no túmulo, pois reza a lenda que cada um chora por onde sente saudade. Sabia-se que algumas mulheres tinham o desejo de defecar sobre o túmulo, não fazia isso por medo das más línguas, mas quando chegava em casa tudo que era poro dava sinal do quê sentia saudade.

Por falta de amor ao Tarcísio, Glória não chorava, mas bem que ela queria chorar por onde mais sentia saudade, e tanto a fome de comer como a fome de ser amada fez com que, ao atender o vendedor de pão, ela lhe pagasse como o quê tinha de mais valor. Dentro da casa de Glória, e com todos os pães comidos, o vendedor, vendo que não havia nenhum objeto naquela casa, preparava-se para arcar com os prejuízos, quando Glória lhe indicou onde estava o quê ela mais tinha de valor, o quarto. Entre uis, ais e gemidos de prazer, o vendedor, por ter achado um objeto tão valioso como aquele, sendo que em casa sua mulher tinha um tão parecido, mas de menor valor, passou a trazer pão ao amanhecer, entardecer e anoitecer; pois o valor pago pelo pão valorizava o suor derramado sobre a massa. Desta forma Glória abriu vendas, e todos os vendedores que em sua porta batiam, até os vendedores de fé, satisfeitos ficavam com o valor pago. O que eu vou contar aqui poderia até ser descartado, mas não farei, pois o que me dá mais prazer é desmascarar estes vendedores de fé. Eles quando iam professar sua fé em casa de Glória, Glória sem posses, ofertava o dízimo a sua maneira, mostravam-lhes a valiosa; e eles, os vendedores de fé, acrescentavam o nome de Jesus aos uis, ais e gemidos de prazer. Glória, de tanto comerciar, fez fortuna que daria para viver pelo resto da vida com as pernas para cima, tomando uma fresca. De tanto usar a valiosa acabou sendo desvalorizada por passar por várias mãos, mas antes de encerrar o comércio, ela atendeu o último vendedor, o vendedor de jazido.

Ele vinha manquitolando, e pelo passo dado percebia-se que lhe faltava metade da bunda, com toda certeza o finado capeta pôs a boca na metade que lhe faltava, e pelo tamanho da outra metade que tinha, o capeta deve ter levado uma semana para fazer a digestão. Atendido por Glória, o vendedor tentou convencê-la da compra do jazido, mas ela não via utilidade para o mesmo, pois ainda tinha muito que viver. Então o vendedor lhe disse que nascer e morrer eram as únicas certezas que tínhamos, e desditoso era aquele que, em vida, não deixava morada para o corpo quando partisse dessa para melhor, pois a alma já tinha a sua, o céu ou o inferno, e isso dependia do que fizesse entre o nascer e o morrer.

Glória se deu por convencida, e com o título do jazido em mãos chamou o vendedor para lhe mostrar o quê mais tinha de valor; e assim, o vendedor, vendo a valiosa se sentiu mais do que bem pago. Vendo que a valiosa já não tinha tanto poder de compra, Glória se sentiu no céu, pois havia tempo que nada comprava, portanto o que ela tinha de mais valor, valor perdia; mas, ali, perdida entre lençóis, ela dava gemidos de prazer, não pelo objeto comprado, mas por saber que a valiosa ao ouro se assemelhava. O vendedor, (e eu também, Onairam Mesrede) agora entendia porque ir as compras e a cama, para as mulheres, tinham o mesmo significado, pois se um valorizava a alma o outro o corpo, e vice-versa.

Quando Glória estava pagando ao vendedor o título comprado, os dois tiveram este diálogo que finaliza esta verídica história:

- Percebe-se que lhe falta uma banda de sua bunda, afinal o que lhe aconteceu? – Perguntou Glória quando desvelava a valiosa.

- Foi o capeta que a abocanhou.

- Que eu saiba, o capeta nos tira a alma, nunca pensei que ele quisesse o corpo, e justo um pedaço da bunda; mas como dizem por ai, todo malvado é um gay enrustido, vai lá entender o que o capeta quer.

- Do capeta entendo muito, pois o prato da vingança é ele que nos servem, mas o capeta aqui dito era o teu cão.

- Vê-se que você é um homem de denodo, eu tentei envenená-lo, mas como o capeta só comia pela mão de seu dono, eu não consegui. – Disse Glória expondo a valiosa.

- Coragem à parte, com o afã de vingança, força e fé, fi-lo morto com um chute no focinho.

O vendedor, com as ferramentas em mãos, pôs a valiosa na cama e foi provando do seu valor, e ao mesmo tempo os dois continuaram o diálogo.

- Fiquei satisfeito quando matei o teu marido, afogando-o no rio.

- Vê-se que fizeste um favor, apesar de que matar aquele traste era coisa fácil. Mesmo assim acho que você tem o diabo no corpo. – Disse Glória entre gemidos de prazer.

- Quando se é mordido pelo capeta, a ele nos assemelhamos, e aqui em cima de você me sinto o próprio, e como tal completo minha vingança, dando uso o que você acabou de comprar.

E assim, Glória entre gritos de prazer, começou a dar gritos de dor por ter seu pescoço enforcado pelo vendedor, e, pelo feitio que ela coseu por toda a sua vida, o inferno já a esperava.

Manquitolando, o vendedor de jazido foi bater em outras portas, tal qual o mensageiro da morte.



13/07/2007

domingo, 25 de outubro de 2009

Urbe

O maravilhamento provocado pelas luzes artificiais, acabando com qualquer possibilidade de escuridão, o fez pensar que na urbe a probabilidade de felicidade não seria abstrata. Diferentemente do sertão, tendo o sol, sempiterno, como uma das causas concretizadora da infelicidade, acinzentando tanto a cidade como a caatinga, não dando ao sertanejo a oportunidade da semeadura, na urbe ele faria a diferença, a felicidade seria concreta. Claro como o dia, a noite o fez sonhar com dias melhores.
O concreto dos edifícios pintados com cores neutras, iluminados por luzes artificiais, com tonalidades diferentes, invadia os seus olhos de tal forma que onde quer que ele ponha as vistas tinha a impressão que na urbe a mão benéfica de Deus era mais presente do que no sertão. A inocência cabocla não o permite perceber que na urbe a mão humana se fazia mais presente. Ele ainda teria tempo de saber o quanto maléfica ela é.
Acostumado com os sons dos rouxinóis, canários, bem-te-vis e sabiás, o silêncio noturno da urbe o perturbava. Na sua crença cabocla, ele via a quietude como mau presságio.
O bloqueio da rua aonde ele se encontrava e das adjacentes, provocado por um festival musical nas casas noturnas da região, interrompia o fluxo dos carros. Alguns noctívagos perambulavam pelas ruas em busca de algo que preenchesse o seu vazio, como todo solitário, eles traziam consigo o silêncio imutável.
O som do helicóptero no céu alumínio quebrou a monotonia silente, provavelmente ele estaria levando algum artista, pois a rua já se achava movimentada com o término de um dos vários shows previstos. A balbúrdia era selvagem, garrafas de cervejas se espatifavam pelo asfalto, gás lacrimogêneo zunia no ar jogado pela polícia na tentativa de acalmar os ânimos; alheio a tudo isso, ele sem entender o porquê da rua em um silêncio símile a morte, do nada, assemelhava ao próprio inferno. A sua matutice cabocla o incutia que ali havia o dedo do Diabo, o que ele não sabia era que as mazelas humanas tinham as digitais dos dedos da mão humana.
Ele levou as mãos ao rosto para se proteger de uma garrafa lançada em sua direção por uma das tribos que se digladiava, perdido em uma batalha que não era sua, ele, confundido como participante de uma das tribos, foi levado ao chão por um golpe de cassetete. Ao acordar minutos depois, balas zuniam sobre a sua cabeça, ele não ficou ali para saber se eram de borrachas ou não.
O cansaço tomou conta do seu corpo, no primeiro dia na urbe, ele maravilhou-se com o que poderia ser o paraíso, a felicidade bíblica, e sentiu a tristeza apocalíptica, desrazoada, construindo infernos.
A força utilizada pelo balconista para abrir a portinhola do balcão deu a medida exata de quão forte era as suas mãos, a brutalidade de sua alma ele sentiu quando um soco atingiu na boca. Este foi o preço pago pela garrafa com água mineral oferecida pelo balconista quando ele havia pedido um copo com água, sedento, ele se agarrou a garrafa tanto quanto o sertanejo se agarra ao chão umedecido pelas chuvas na esperança da germinação, e a bebeu em um só gole. Na sua brejeirice cabocla, ele não sabia que teria de pagar pela garrafa com água. O preço foi muito alto, todos os dentes da frente, superiores e inferiores, quebrados.
O céu de alumínio povoado por pássaros metálicos, cujo canto é o barulho do motor que os sustenta no ar, sem as nuvens e suas formas poéticas, encoberto por uma lâmina acinzentada, despossuído de qualquer brilho, limpo de estrelas; a impermeabilidade do asfalto, frio, cinza, infértil e fosco; a indiferença, o individualismo, a impessoalidade de sua gente fez com que ele perdesse o maravilhamento pela urbe e com isso a possibilidade da felicidade. Com a boca ainda sangrando, metros distantes da padaria, cujo balconista o feriu, ele deitou na calçada e se cobriu com papelão achado na rua.
Pássaros metálicos congestionavam o céu de alumínio após o término dos shows levando os artistas para o aeroporto, no chão asfáltico os urbes se aglomeravam satisfeitos; o valor pago pela felicidade surtiu efeito, no rosto de todos havia um sorriso desmedido. Alguns se encaminhavam para casa com a felicidade que tinha, outros, com dinheiro o suficiente para comprar qualquer tipo de felicidade, urbi et orbi, se encaminhavam algures; outros tantos, ali mesmo ficavam a espera do amanhecer como se quisessem esticar ao máximo a duração da felicidade comprada; porém uns e outros, a minoria, caminhavam pelo fio tênue que separa o bem do mal, uns caiam do lado certo, outros nem tanto.
“Vamos porra, dê logo o litro de álcool”. “Espera caralho”. “Puta que pariu, cadê o isqueiro”. “Este jornal não, ele é importante, não pode ser queimado, vamos usá-lo no trabalho escolar”. “Então... merda, queimei o dedo... passa uma folha de caderno”.
Um litro de álcool foi jogado sobre o papelão, ele se mexeu, mas não acordou; com outro litro de álcool eles encharcaram um saco com areia e fizeram um filete do corpo até o carro, atearam fogo na folha de caderno e jogaram sobre o filete de areia. A chama andou aceleradamente sobre o filete de areia até atingir o corpo, o fogo se propagou rapidamente. A escuridão da madrugada foi tomada pelas labaredas iluminando o carro que saiu em disparada, cantando pneus. Ao dar a volta fazendo cavalo de pau na praça ao lado da padaria, os rostos dos adolescentes eram iluminados pelas chamas que consumia o corpo, a felicidade estampada em seus olhos era indescritível, a satisfação era indizível.
As chamas tomavam conta do seu corpo lhe tirando o fogo da vida, ao acordar pensou que as chamas eram a luz do sol, e no último ato de vida, como se estivesse no sertão, intuitivamente, abriu as mãos como se nelas houvesse sementes e as jogou no chão, semeando-o. A impermeabilidade do asfalto, a frieza concreta da urbe, a incontrolável pressa desvairada dos urbes não permitia a semeadura.
Quando amanheceu seu corpo era cinza, a acinzentada urbe havia acordada e os urbes apressadamente, com o olhar adiante, sem erguer ou abaixar a cabeça, se encarregaram de apagar qualquer vestígio que houvesse dele sobre o chão asfáltico.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Rosas não brotam do asfalto

O barulho dos secadores de cabelo não abafa o vozerio das mulheres no salão de beleza, as palavras ao saírem de suas bocas agigantam-se, tomam uma dimensão que as fazem se entrechocarem em uma busca desenfreada por algum ouvido que lhes dê atenção. Algumas falam de si, outras de si e de quem mais lhes permite o bom senso, as mais ousadas, não dando importância ao bom senso, falam, descaradamente, dos outros, mas, inexoravelmente, as palavras saídas de suas bocas, sem freios, entrechocando-se, tornam-se inaudíveis. O cheiro da química, a balburdia incessante, todas as vozes falando ao mesmo tempo em um espaço tão curto, todos os passos ali dados, calculados milimetricamente para que os corpos não tomem o mesmo destino das palavras, faz daquele ambiente, para quem está de fora, um local para loucos. Muitas fazem da cadeira do salão o seu divã, outras a extensão de sua própria casa. A hora ali passada, não importa quantas, não é tempo perdido. A felicidade encontrou aqueles corpos e as transformações, pouco importa se na pele, unhas ou cabelos, as deixam em um estado de ânimo que faz pensar que houve uma transformação intrínseca, também.
O ar é impregnado pela fumaça saída das chaminés, na rua se ouve o barulho da água saindo pela torneira e entrando pelo ralo, imperceptível para muitos, não para os notívagos que cambaleiam pela rua, cansados, desviando de cães e gatos, habitantes contumazes a esta hora da madrugada. De vez em quando se ouve barulho de talheres caindo ao chão, motivo para algum engraçadinho, na rua, gritar, “xô, galinha”. Os padeiros riem e apressam nos seus afazeres, pois, logo-logo, as trevas madrugais seriam rompidas pelos raios solares. Passadas algumas horas, o ar é impregnado pelo aroma de pão assado, cães e gatos não mais habitam as calçadas da rua, algumas janelas são abertas, e se vê a silhueta de alguém espreguiçando, mais adiante, em outra casa, outra pessoa fuma, tranqüilo na sacada, o seu cigarro. Vivaz, a rua aos poucos toma cores e formas, os notívagos, estranho ao ambiente diurno, encaminham-se para suas respectivas casa, menos ele.
Sofrendo de amnésia alcoólica, perdido de si, ele não encontra o caminho de volta para sua casa. Soturno, tartaruga a pouco metro de sua casa. Talmente o pássaro parado no ar, batendo as asas à espera da melhor corrente de ar para seguir o seu vôo, ele, parado, batendo os olhos em todas as direções, tenta dar os primeiro passos, mas não consegue alçar vôos altos, sua queda e constante e ininterrupta.
Ela, da janela, vê o esforço dele para encontrar o caminho de volta, mas o ressentimento não lhe permite a ajuda, mormente que sem a sua autorização ela não pode sair. Ao voltar para a cozinha, passando pelo corredor que leva ao banheiro, ela se vê no espelho. Admirando o seu corpo, ela passa, suavemente, as mãos pelo rosto, as descem por entre os seios e as repousa, por instante, no púbis; as leva até a bunda, apertando-a, ri de si mesmo, e passando as mãos por cima dos ombros, se abraça. Vira de costas para o espelho se olhando, arrebita o bumbum e, apesar da vida sofrida, dos ressentimentos, se acha bonita. Sua beleza não é exótica, não possui traços marcantes, não chama a atenção pelos atributos físicos, mas sim pela feminilidade dos seus trejeitos, pela suavidade do seu andar, pelo olhar angelical, pelo corpo com suas dimensões certas, sem nada que o exceda ou lho falta, provocando além dos prazeres carnais, os prazeres anímicos, também.
Presa a imagem no espelho, sem perceber o tempo passar, ela pensa em um novo corte de cabelo, remodelagem das sobrancelhas, uma limpeza de pele, depilação de todo o corpo, enfim, uma nova roupagem visual. O chiado de água fervendo caindo na chapa quente do fogão a traz de volta para o seu mundo sem cor.
As horas vão, os pássaros foram levados pela melhores correntes de ar, ele sem saber aonde ir, entra no bar de sempre e como sempre consome o dia se embriagando. Um homem doce e bom, sóbrio; ébrio, se torna vil, principalmente com a sua esposa. Os anos passaram sem que ele saísse de seu estado de embriaguez permanente. Descoloriu a si e a tudo que lhe cercava.
Os cabelos cheirando a alho queimado, as mãos a cebola, após fazer o arroz e levar a carne à água fervida, ela, surpreendida pelo marido que a abraça por trás, cheirando a suor e cachaça, sabia o que estava por vir.
A rosa quando é arrancada abruptamente do roseiral, despetala sem dar oportunidade ao perfume aromatizar quem a acolhe. Ele a abraça por trás, e com os olhos sobre os seus ombros vê a carne se mexendo entre cebolas, batatas e cenouras, o cheiro da comida lhe abre o apetite. Ele arranca o seu vestido - a rosa sentiu a sua ruptura, abrupta, do caule; a joga, despida, no chão da cozinha - as folhas da rosa desprenderam do caule e giraram no ar em torno de si sumindo silenciosamente; com a duas mãos sobre suas coxas, ele as abre – pouco a pouco todas as pétalas da rosa caíram no chão murchas, desperfumadas; o caule, ainda com os espinhos, lhe sangra a alma, chorosa, ela segura uma das pétalas e a leva ao nariz, não há perfume, nunca há quando violentamente se colhe uma rosa. O ar impregnado de suor e cachaça se encarrega de levar os gemidos de prazer do seu marido, dela fica apenas o choro.
Todos os dias o mesmo dia, mesmo sendo dias diferentes, dias sem cor. As suas lágrimas se perdem misturadas às águas do chuveiro que lhe caem sobre o corpo, por mais que se limpasse, a sensação de sujeira permaneceria, por mais que chorasse, as mágoas não atenuariam. Mesmo sendo dias diferentes, não havia diferença, é sempre o mesmo dia todos os dias.
Algum dia há de ser diferente um dia de todos os dias. O salão está lotado, as mulheres em alvoroço, com gritinhos de satisfação, se fazem ouvir por toda a rua. Ele está sentado na cadeira do bar, copo na mão com cachaça pela metade, a outra metade ele havia tomado, olhos se perdendo no líquido que gira no sentido anti-horário após ele ter balançado o copo. Mesmo não prestando atenção ao que se passa no salão, seus ouvidos não deixam de perceber o entrechocar de palavras, sua mente tenta decifrar o indecifrável. Ele passa o dedo médio pela borda do copo, sobrepõe o polegar ao indicador e o solta na direção da borda do copo, o estalido provocado lhe dá uma sensação agradável, sorri e entorna a outra metade da cachaça. Encostado no batente da porta do bar e com os olhos fixos na porta de vidro do salão, ele se pergunta o porquê de nenhum homem poder freqüentar aquele salão, e mais ainda, o porquê dos homens aceitarem esta determinação. Envolto em seus pensamentos, ele não percebe sua esposa se encaminhar para o salão, ou então finge não notar.
Ele sabe o porquê, mas a amnésia alcoólica lhe tira qualquer possibilidade de lembrança. Ele finge não notar, mas seus olhos não fogem do que é visível. Andando em círculos, ora entrando, ora saindo do bar, sem o copo de cachaça na mão, mas com a garrafa que ele leva à boca, bebendo o seu conteúdo ininterruptamente, parando de beber somente para passar a boca na manga da camisa, enxugando a baba provocada pela raiva ao ter notada a entrada da sua esposa no salão da cabeleira, sem a sua autorização. Ele encaminha-se para o salão quebrando a garrafa no batente da porta.
Os raios solares, batendo no caco da garrafa que ele leva a mão, refletem no vidro da porta do salão e ofusca a sua visão. O ofuscamento não lhe permitiria enxergar, o efeito do álcool na sua mente faria pior.
A dona do salão, uma das fundadoras do bairro, sempre viu brotar rosas do chão da rua. Ela fazia do seu dia, todos os dias, um dia diferente, não caía na rotina, e nem fazia do seu casamento uma monotonia diária. Porém com a chegada do asfalto e a urbanização do bairro surgiu em cada esquina um bar. O seu marido, acompanhando a transformação do bairro, não foi mais o mesmo, freqüentador assíduo dos bares, o alcoolismo o tornou violento. O dia, mesmo sendo dias diferentes, passou a ser o mesmo dia; a rotina, a monotonia, e principalmente a violência do seu marido a tornou heterofóbica. Após o sumiço do marido, ela abriu um salão de beleza impondo uma condição, nenhum homem seria atendido ali. Houve várias versões para o sumiço, mas foi, três dias depois, após achar somente a ossada e o crânio sem os cabelos no lixão que todos os homens, sem exceção, obedeceram aquela imposição, pois tinham medo de não sair vivo dali. A impermeabilização do solo pelo asfalto não a permitiu mais vê rosas brotarem do chão.
Desde a entrada da sua esposa no salão havia passado cinco horas. Além dela havia mais uma pessoa. Após esta pessoa sair se despedindo com beijos no rosto da dona do salão, ele sabia que a porta de vidro ficaria aberta e só seria fechada quando o último cliente saísse. Ao entrar sorrateiramente, ele percebe que não há ninguém no primeiro ambiente do salão; ouvem-se vozes no segundo ambiente, ele se encaminha para lá, abre devagarzinho a porta e não acredita no que vê.
Um botão de rosa colhido com delicadeza, ao ser tocado, intenta abrir-se significando através do seu perfume. A dona do salão tira-lhe o chambre e contorna com os dedos enluvados, suavemente, o seu buço – a delicadeza do toque tira do botão a sua inocência e o faz rosa; a vira e escorrega as mãos sobre suas costas, os pelos ouriçam – as pétalas abrem-se sabendo quando a intenção do perfume objetiva; as mãos continuam o seu percurso na descendência ao chegar ao bumbum, com os dedos, esticam um dos pelos – os espinhos do caule se desprendem deixando a rosa indefesa; a dona do salão a deita na maca, com uma das suas mãos em sua coxa ela abre sua perna delicadamente, e com a outra passa na sua virilha – a rosa significa-se, deixa de viver para existir, o seu intento é alcançado, perfuma.
Não enxergando o que os olhos filmam, mas o que a mente revela, ele entra desesperadamente na sala, derruba sobre si a vasilha de cera quente, o ardor sobre a pele não o incomoda. A rosa em um processo inverso desperfuma-se, espinha-se, fecha-se e volta a ser um botão sem intenção. Ele, guiado pela vingança, ergue as mãos e as desce com o peso da ira, o caco de vidro lha adentra a pele do rosto violentamente, a dona do salão voa sobre o pescoço dele o atracando por trás, ele se joga para trás, ela bate com as costas na parede, desprende-se dele, escorrega-se, bate a cabeça no aparelho de derreter cera e desacordada cai no chão.
Sua esposa não se encontra mais sobre a maca de depilação, ela se encaminha para a porta de saída, ao sair do segundo ambiente ele corre atrás dela.
Ao pôr a mão na maçaneta da porta de saída, ela percebe um objeto refletido no vidro, girando no ar, encaminhando-se em sua direção. Ao virar-se, ela sente o caco de vidro cravado no seu peito. Cambaleando, ela cai sobre o asfalto. Talmente o botão quando é colhido precocemente do roseiral, ela murcha-se. Em volta de si o asfalto é tingido de vermelho.
Ele tenta sair do salão, mas é jogado para trás por algo desconhecido, levando também a maca e todos os utensílios e produtos de depilação que há no salão, choca-se contra a parede, escorrega até alcançar o chão, os objetos caem sobre ele. Com forças o suficiente para se desvencilhar dos objetos, ele levanta-se e depara com a dona do salão lhe sorrindo macabramente. Ele sabia que não sairia vivo dali.
Como todo domingo, a rua está calma, alguns pardais descansam sobre o fio de alta tensão da rede elétrica; alguns pombos disputam com os cachorros e gatos algumas migalhas de alimento próximo ao reservatório de lixo; um casal de beija-flor sobrevoa a rua procurando flores. Repentinamente as águas de setembro, prenúncio do término do inverno para alguns, começo da primavera para a maioria, caem sobre a rua, a impermeabilidade do asfalto não permite o aroma de terra molhada.
Dentro do salão a sua dona carrega em uma das mãos uma sacola com carne sangrando e trêmula, ela a enterra no fundo do quintal que há no salão. Como a chuva havia amainado, ela, com outra sacola contendo ossos, a joga no reservatório de lixo próximo ao salão. Os cachorros e os gatos avançam sobre a sacola deixando as migalhas para os pombos. Ela entra em casa, pega o maço de cabelos que está em outra sacola e o guarda na mesma caixa que havia guardado os cabelos de seu marido.
O casal de beija-flor sobrevoa mais uma vez a rua e desiste da busca, pois percebe que rosas não brotam do asfalto.

domingo, 20 de setembro de 2009

Figurante

Os cabelos lisos moldando o rosto oval e pequeno, as sobrancelhas grossas, o nariz afilado, os lábios finos, as orelhas rente a cabeça, o pescoço longo, os olhos negros estavam todos refletidos no espelho, mas ele não se via. Aquele rascunho borrado tentando ganhar forma, por mais nítido que parecesse, não era ele. Preso as personagens que representava, sua vida foi um ato de erros contínuos, não que agora não fosse mais, pois por mais que errasse, pior não ficaria. Descaracterizado, ele não convencia nem a si, sem platéia e consequentemente sem ganhar pela sua atuação, sozinho, tornava-se invisível. A invisibilidade não o protegia, ao contrário, o deixava vulnerável aos seus fantasmas que de tão reais estavam sempre em cena contracenando com ele. Em estado permanente de demência, no palco da vida, era um péssimo ator. A linha que separava a lucidez da loucura era curta, e ele sempre a ultrapassava. Somente é normal aquele que reconhece a sua loucura, ele não reconhecia a sua.
Percebendo a luz e passos de pessoas, ele colocou o espelho em cima do caixote, o seu chapéu já estava no chão. Iniciou o espetáculo sapateando, a sua voz não era melodiosa o suficiente para lhe permitir o canto. Com os atributos artísticos que tinha ele não estava agradando. O desespero o levou a dar um passo que sua capacidade física não permitia. Os passos acrobáticos que ele tentou o levaram ao chão, arrancando gargalhadas de todos. A dor no corpo devido à queda não era maior do que a dor devido à inanição, e doía mais ainda saber que nenhuma mísera moeda, qualquer que fosse, havia ganhado. A garrafa de pinga escondida atrás dos caixotes servia como alívio para suas dores.
Sentado cabisbaixo e com o olhar triste fixado no chão ele ensimesmou-se. A necessidade do alimento incitava os seus pensamentos a cometer um delito, mas ele ainda tinha o controle de si. Mesmo com o mau cheiro, o cachorro aninhou-se a ele. Todo animal acostuma-se com o cheiro do seu dono, e divide com ele as suas dores, as suas preocupações. Nas patas dianteiras, uma sobre a outra, ele deitou a cabeça, dobrou as patas traseiras enfiando o rabo entre as pernas, inclinou as ancas até tocar no chão e, entristecido, mostrou solidariedade ao seu dono. Era o único que não precisava representar para dizer de si os sentimentos que tinha. Entrementes a maioria dos transeuntes que passava pela calçada, envolto em sua arrogância, os desprezava; outros traziam em si uma comiseração sem o intuito da ajuda, apenas consternavam; a minoria presa a sua ignorância, os detestavam.
O cachorro foi despertado pelo som de moeda quicando no chão, e ele pelo latido do cachorro. O cachorro ia e vinha em um perímetro de dois metros quadrados, parando de vez em quando, latindo e apontando com o focinho na direção sul. Uma criança puxada pela mão, violentamente, apontava para a moeda que ela havia acabado de jogar, no seu rosto havia um sorriso inocente que fazia com que a tivéssemos como anjo de deus. A dor em seu rosto, devido à fome, não lhe permitia a retribuição, mas como ele ainda carregava intrinsecamente um anjo divino, com muito esforço, lhe esboçou um sorriso. A mãe, brutalmente, puxou a criança desviando o seu olhar da direção dele.
Após atravessar a rua, o cachorro, despercebido, entrou na padaria, apoiou as patas dianteiras, dobrou os joelhos traseiros sentando, e com o olhar chamou o seu dono. O balconista da padaria colocou as duas mãos no balcão, tomou impulso, flexionou os joelhos e saltou. Atendendo ao chamado do cachorro, ele com um dos pés na calçada e o outro dentro da padaria sentiu o impacto do pé direito do balconista lhe atingir o tórax, levando-o ao chão. O cachorro, balançando a cabeça, suavemente, olhou aquela cena sem entender o motivo da violência. A maioria dentro da padaria, mesmo entendendo o motivo, apenas olhou, desdenhamente, para a cena e voltou para o seu desjejum.
Ajoelhado, com uma das mãos no chão, tentando levantar, e a outra gesticulando para demonstrar que nela havia uma moeda de um real, ele, aos prantos, implorava por um pão com manteiga. A moeda saiu rolando pelo chão até se perder no bueiro, ele a acompanhou com os olhos torcendo para ela parar antes. Quando ela se perdeu na boca de lobo, ele percebeu que gotas de sangue manchavam o chão. O segundo pontapé do balconista não havia apenas lhe tirado a moeda da mão, acertou-lhe também a boca. Todos assistiam aquela cena como se não lhe dissessem respeito. Todos, dentro e fora da padaria, se sentiam confortáveis como se o ato de solidariedade se encerrasse quando era feita uma doação, estimulados por alguma campanha de algum programa televisivo em apoio a algum programa social. Havia alguém naquela padaria que lhe era solidário, e não era humano. A mordida foi tão violenta que ele desmaiou, restos de carne da coxa do balconista desprendiam da boca do cachorro.
A duração do tempo não é sentida da mesma forma por todas as pessoas. A dor intermitente, causada pela fome, lhe tirava qualquer brevidade do tempo, o dia sempre lhe era custoso de passar, parecia interminável. À noite, anestesiado pelo álcool, ele dormia sem a certeza do acordar.
Carros em alta velocidade passavam pela rua diante de seus olhos e ele não via; no céu as nuvens desapareciam para dar lugar aos pássaros metálicos voadores; sobre a órbita de sua cabeça circulavam satélites de comunicação; a lua estava tão próxima que ele conseguia ver as pegadas de Neil Armstrong; há pouco uma nave espacial turística rasgava o céu rumo a Marte. A noite havia chegado lhe trazendo dores insuportáveis no estômago, e consequentemente os delírios contumazes. O cachorro havia saído em busca de restos de comida na lixeira da padaria, mas ele não tinha coragem para fazer o mesmo; mesmo em estado de demência, ele tinha dignidade.
O cachorro, alimentado, o puxa pela barra da calça roída, o guiando até os caixotes. Ele retira o litro de cachaça que estava atrás dos caixotes e o seca em goles abruptos, dobra uma caixa de papelão ao meio, várias vezes, até alcançar a altura desejada, a coloca no chão e deita encostando a cabeça na mesma. O cachorro puxa uma manta carcomida com os dentes e cobre metade do seu corpo, vela o seu sono por alguns minutos, depois deita próximo a ele curvando todo o corpo.
Horas depois começa a chover torrencialmente, o cachorro, latindo, tenta acordá-lo, como não conseguiu, o puxa pela calça com os dentes. Era inútil, ele não acordaria.
O barulho da chuva batendo no telhado de zinco da padaria lhe chega aos ouvidos como aplausos. Todo de branco em um cenário também branco, ele, no teatro da vida, era ator principal, enfim.
Noite de lua cheia, o cachorro, com a cabeça apontada para o céu, teatro da vida, uiva. Se houver lágrimas em seus olhos, elas se misturavam com as gotas da chuva.

sábado, 5 de setembro de 2009

Fronteira final

Ao entrar na casa a encontrei sentada de costas para mim com a bíblia na mão balbuciando, “Ore, ele vai chegar”. Gotas ininterruptas jorravam dos meus dedos, eu já havia perdido o dedo mínimo, o médio estava pela metade se transformando em líquido, logo eu seria uma poça de água se infiltrando na terra, desapareceria sem deixar um túmulo, como todos os outros. Meu tempo havia acabado.
24 HORAS ANTES.
Seu corpo leitoso, nu, sobre a cama ganhava a forma do número perfeito, curvas sem desalinho, sem erro de geometria, com exatidão matemática, banhadas pelos raios dourados matinais do sol lhe dava uma aura divina. Ela descansava, eu, na sala, após uma noite em claro gozando o prazer carnal, fumava assistindo tv.
“O governo alerta a população para uma doença desconhecida...
Eu dei pouca importância ao noticiário, Voltei os meus olhos em direção ao quarto para, mais uma vez, admirar as curvas do seu corpo, mas ela não se encontrava na cama. Deduzi que ela estava na cozinha, “Quero o meu café bem forte, preciso me despertar, afinal paguei bem caro pela tua companhia”. Não obtive resposta.
... chamada peste negra devido ter dizimado toda a população africana, e...
Fui ao banheiro, nem um sinal dela.
... cientificamente denominada H2O SANGUÍNEO, a doença ataca os glóbulos vermelhos e brancos, ao mesmo tempo...
Entrei na cozinha. Estava como a deixamos noite passada.
... o sangue torna-se aquoso. Depois de infectado, após vinte e quatro horas, o corpo humano transformar-se em água...
A última frase do locutor amplificou de tal forma que ao chegar aos meus ouvidos não teve como não prestar atenção. Preso ao que o locutor acabara de falar, mas com uma pressa de ir ao quarto para dizimar as dúvidas, eu, paralisado pelo medo, percebi gotas de água escorrendo pela borda do lençol. Não restavam dúvidas, ela tinha aguada.
... o governo alerta que o contágio se dá através da relação sexual, e não há nenhuma barreira que impeça o vírus, nem a camisinha. O governo enfatiza que não haja nenhum contato com africanos ou descendentes. Voltaremos com mais notícias assim que o governo souber mais sobre a síndrome H2O SANGUÍNEA, a peste negra”
Não haveria medo que me deixaria plantado naquela sala, corri até o quarto e revirei a bolsa dela, minhas suspeitas se confirmaram, ela era sul-africana. Eu tive que me conter para não desesperar. Minha mãe sempre me disse, “Na ora do desespero, ore.”
As pessoas de cor começaram a ser assassinadas brutalmente quando a imprensa noticiou que o vírus não era transmitido apenas pela via sexual, mas também pela via oral por africanos e descendentes de africanos a não africanos. Não demorou muito, independentemente da cor, para que cada um visse o outro como africano.
Havia passado oito horas, restava-me mais dezesseis horas de vida. As horas iam se passando e as palavras da minha mãe se tornavam audíveis, “Ore, a salvação está na bíblia.” Ouço barulho de um objeto caindo no chão. “Mãe?” Não haveria possibilidade de ser ela, estava morta havia muito tempo. O objeto no chão era a bíblia, e ela caiu aberta no evangelho segundo São Matheus capítulo vinte e seis, e como por milagre uma luz advinda do céu iluminava os versículos vinte e seis, vinte e sete, vinte e oito e vinte e nove. A desconsidero e a coloco de volta na mesa. “Ore, meu filho, a salvação está na bíblia”. Novamente a bíblia cai aberta no chão, mas agora no evangelho segundo São Marcos capitulo catorze. Uma candeia que até aquele momento servia apenas como peça de decoração igniza-se, trazendo a lume os versículos vinte e dois, vinte três, vinte e quatro e vinte e cinco; ignoro a leitura por achar que estava delirando, não me dou ao trabalho de colocá-la na mesa, novamente.
O silêncio, lá fora, era perceptível. Pelo vidro da janela via-se que metade das pessoas estava liquidada, morta, a outra metade havia desaparecida, por entre a terra, em estado líquido. Não me senti bem em abrir a janela por saber que estava sozinho, a fechei virando de costas. Um estrondo atrás de mim me joga no chão, a janela passa por sobre o meu corpo, espatifando na parede. A voz da minha mãe é trazida pelo vento, desesperada ela me pede, “Ore, a salvação está na bíblia”. O vento cada vez mais forte folheia a bíblia da esquerda para a direita, depois da direita para a esquerda, amiúde, arrancado sua folhas. Quando finalmente para de ventar, eu percebo que no apartamento somente havia eu, todos os objetos haviam sido levados pelo vento. Dou os primeiros passos para sair daquele ambiente aterrorizador sabendo que lá fora não seria diferente, quando tropeço em algum objeto no chão não percebido por mim, era o que sobrara da bíblia, nela havia somente o livro de São Mateus, o livro de São Marcos e a primeira epístola aos Coríntios capítulo onze, com destaque para os versículos vinte e três a vinte e nove, grafados com caneta marca texto. Meus olhos não passaram despercebidos por aquelas folhas, a li avidamente, quando terminei dei crédito as palavras da minha mãe, a salvação, realmente, estava na bíblia.
O ambiente fora do apartamento não era menos aterrorizador. Os carros incendiados, as portas arrombadas de estabelecimentos comerciais, as árvores arrancadas pelas raízes, as casas com suas fachadas destruídas e por todas as ruas, onde quer que eu olhasse, corpos se deteriorando davam a dimensão do quanto seria sofrível viver sozinho. Nunca me foi necessário outro ser humano, vivo, para a minha sobrevivência como estava sendo agora. Sozinho, as horas passavam diferente de como normalmente passam; a morte, a bela senhora do tempo, as controlavam, e dava a elas uma pressa descomunal. Meu fim estava próximo, eu tinha somente duas horas de vida e um ser humano, vivo, a encontrar, quem e aonde eu não sabia. O silêncio permanente tornava esta busca inglória.
O barulho do motor do carro ligado quebrava a monotonia agora presente. Após percorrer, em alta velocidade e em todas as direções, um longo percurso, encontro somente o silêncio como companheiro. Nunca a terra me foi uma ilha desabitada como estava sendo agora. Sigo por carro mais trinta minutos. Um campo rodeado por árvores é meu destino final, giro cento e sessenta graus e não encontro nenhum espécime animal vivo, eu era o último. Restava-me dez minutos e minhas mãos estavam suando, logo chegaria ao estado líquido. Sento-me debaixo de uma árvore e a brisa traz o cheiro de flores, ou então era a morte que estava chegando, adormeço. Sou acordado por uma ventania que me impulsiona a seguir adiante, meu dedo mínimo se desfazia em gotas, não tive mais coragem de olhar as horas.
Uma casinha simples com chaminé borrifando o ar de fumaça cheirando a sândalo, cercada de flores rodeadas de colibris e borboletas, árvores frutificas serpenteadas de pássaros preenchendo o ar com seus cantos melódicos davam a dimensão de quanto era consolador viver cercado por outro espécime, seja humana ou não. Senti-me no paraíso, não sei se levado pelas minhas próprias forças ou se pela ventania.
A grama aparada, recentemente, a altura do chão levava à porta de entrada da casa. Ao entrar a encontrei sentada de costas para mim com a bíblia na mão balbuciando, “Ore, ele vai chegar”. Gotas ininterruptas jorravam dos meus dedos, eu já havia perdido o dedo mínimo, o médio estava pela metade se transformando em líquido, logo eu seria uma poça de água se infiltrando na terra, desapareceria sem deixar um túmulo, como todos os outros. Meu tempo havia acabado.
Eu não sei se a minha visão tortuosa me permitiu interpretar corretamente o que estava escrito na bíblia, somente sei que não teria coragem de fazer o que tinha que ser feito, mormente se vai de encontro à sua crença, mas se eu quisesse ter uma chance de cura teria que agir. Não tive tempo.
Ouvi suas botas arrastarem pelo chão, eram pretas. Ela, com uma calça jeans bem alinhada, preta e um agasalho com capuz lhe cobrindo toda a cabeça, também preto, se encaminha em minha direção tirando peça por peça. Seu corpo é lívido, sua pele ao encostar-se à minha é tenra e quente, dos seus poros sinto exalar um calor infernal, mas ao me beijar seus lábios são gélidos, seu beijo tem sabor de morte, se não fosse ela a própria bela senhora do tempo. Envolvido por sua beleza não percebo que ela traz na mão um punhal. Somente percebo o punhal no ar quando ela levanta o braço. Procuro levar a mão direita ao rosto, mas não tinha mais mão, procuro pela mão esquerda e me desolo, não tinha mais braço esquerdo, uma poça de água está se formando em volta de nós. Ela me abraça e beija, novamente, meus lábios e diz, “Não tenha medo, ela me disse para orar e que você viria para cuidar dos escolhidos. Ela enfatizou, a salvação está na bíblia. Eu li e entendi a escritura sagrada, você veio para salvar a humanidade. Não se preocupe, a morte será suave, não haverá dor”.
Ela ergue o braço, novamente, com o punhal na mão e, automaticamente, eu fecho os olhos esperando o golpe final. Como, após alguns segundos, não sinto o golpe, eu abro os olhos e vejo gotas de sangue jorrando do seu pulso. Ela o enfia na minha boca dizendo, “Beba do meu sangue, ele é o teu alimento”, e em seguida, com o punhal, ela corta um pedaço do seu corpo, a carne, trêmula, ainda viva é empurrada para dentro da minha boca. “Coma, a minha carne é o teu alimento”. Animalescamente eu a deixei no osso. Desmaiei.
12 MESSES ANTES.
“Atenção, falta cinco segundos para ir ao ar. Um, dois, três, quatro, cinco. Vai Presidente, no ar”.
“Senhores e senhoras, o céu não é mais divino, não existe mais fronteira no espaço, posso afirmar que sabemos de onde viemos, atingimos, por assim dizer, a casa de Deus...
Atrás do Presidente um telão mostra imagens do avião espacial Infinity no espaço.
...Daqui a pouco veremos, no telão, o avião Infinity pousando em solo sul-africano, mais detalhes da missão será dada pelo diretor da agência espacial. Boa noite.”
TEMPO ATUAL, 25ª HORA.
Sou acordado por duas crianças, curiosas. Sólido, percebo meu corpo em estado perfeito, braço e mãos haviam regenerados. Pergunto as crianças os seus nomes, e elas em coro me respondem, “Adam, Eva, e você?”.
Deus, só Deus sabe a resposta.

sábado, 22 de agosto de 2009

Um gesto


DSC01686
Upload feito originalmente por e.deribeiro



Convido os amigos a visitar minha página no flick clicando na foto

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Eu nunca mais joguei bola


Foi numa tarde de domingo que ele me deu o primeiro presente, uma bola de capotão. Nesta mesma tarde fomos para o meio da rua bater uma bola, e toda vez que eu a chutava ele dizia para toda a rua ouvir, “Gol de Pelé”. Assim durante catorze anos fui chamado em Barra do Rio Grande, cidade do interior da Bahia. Ainda hoje, lá, sou conhecido como Pelé. Outras tardes vieram, e ele sempre esteve comigo.
Ele estava comigo quando aos quatro anos eu fui queimado na coxa por água fervente; aos seis quando, correndo, na padaria do meu pai, atrás do meu bicho de estimação, uma preá, um saco de trigo de cinqüenta quilos caiu sobre mim; aos oito quando, por pouco, eu ia perdendo o dedão do pé cortado por caco de copo de louça; aos nove quando pego em flagrante pelo meu pai, praticando o ofício do prazer em suas criações de aves, mais precisamente uma pata, ele me salvou da sova certa; aos dez quando estava partindo para São Paulo em decorrência da doença que poderia me levar à morte, ele, em lágrimas, não permitiu que eu levasse a bola de capotão, pois assim ele tinha certeza que eu voltaria, e hoje eu tenho o pressentimento que somente voltei para jogar bola com ele nas tardes de domingo; aos catorze quando estava partindo do interior da Bahia para Brasília, ele, em lágrimas, não permitiu que eu levasse a bola de capotão, - de tão velha que estava não parecia mais uma bola. – pois assim ele tinha certeza que um dia eu voltaria. Eu nunca mais joguei bola, nunca mais as tardes de domingo foram iguais.
Ele tinha como nome a fraternidade. Ave Pedro, fazedor de sela. Ave Pedro Seleiro. Ele tinha como nome a solidariedade. Ave Pedro, navegante dos rios Grande, Preto, São Francisco e tantos outros rios. Ave Pedro Barqueiro. Ele tinha como nome o amor. Ave Pedro Mariano Vogado. Ave, sempre, meu avô.

sábado, 1 de agosto de 2009

Em casa onde a cobra sempre está armada para dar o bote, a aranha não cria teia

Se o humano se conformasse com tudo que a natureza lhe oferecesse, ele nunca teria decido do galho; Maristela, por natureza, era uma mulher que se conformava com tudo, por isso com quase cinqüenta anos, ela ainda engatinhava nos galhos de sua árvore evolutiva. Tal qual Eva esperando a cobra para lhe ofertar o fruto proibido, Maristela, ao invés do fruto, preferiu a cobra e assim levou a vida com prazer total até o dia em que seu marido Bráulio desceu na escala evolutiva, e a cobra que dava sabor ao fruto que Maristela carregava entre as pernas, não mais apreciava o mesmo, e ela, Maristela, resolveu usar o instrumento que tinha em mãos e passou a usar os dedos onde mais cabia, pois o que Bráulio tinha, a cobra entre as pernas, não rastejava mais.
E assim Maristela, com o peso da idade transformando o seu corpo, de tanto usar os dedos, os mesmos estavam tão finos que não serviam nem mais para fazer cócegas na aranha; e Bráulio por não mais usar o vigésimo primeiro dedo, este só servia para que a urina chegasse ao seu destino. Por conseguinte vinha Lua, ia Sol e vinha Lua de novo e a aranha de Maristela ardia em fogos, e como nem os dedos lhe aprazia, ela não deixaria que teias fossem tecidas sobre a mesma por falta de uso. Então ela deu um salto para sua evolução e desceu do galho que lhe prendia, radicalizou. Fervorosa a Deus, novamente, ela apelou para Santo Antonio e quebrou a cabeça da imagem do santo prometendo colá-la assim que ele revivesse o bráulio do Bráulio. O Santo sabendo que não poderia rogar a Deus para que intercedesse, pois Ele não metia o dedo para resolver os problemas carnais humanos, resolveu aparecer a Maristela em sonhos indicando que ela procurasse ajuda a outras religiões.
Ao chegar no terreiro de macumba contando ao pai de santo os seus problemas, ele disse a Maristela que não fazia milagre e mesmo que fizesse, com o corpo que ela tinha não haveria cobra que desse o bote, e que ela precisava era de um médico, mais precisamente de um cirurgião plástico para que pudesse apetecer o bráulio do seu marido.
Entrementes Bráulio ia jogando em tudo que era jogo, até que em um belo dia ele ganhou sozinho a mega sena. Maristela, depois deste fato, resolveu repaginar o seu corpo. Ao chegar na clínica o médico foi logo falando para Maristela que não fazia milagre, e que no caso dela só Deus para melhorar a fôrma e lhe dar outra forma. Usando o instrumento que mudava de idéia, tanto o padre como o político, Maristela derramou sobre a mesa do médico malas de dinheiro, e tal qual o político que é afoito tanto ao poder quanto ao dinheiro, guardou as malas e mudou de idéia.
No rosto de Maristela que mais parecia jenipapo passado, o médico usou tanto botox que transformou o que parecia um maracujá em uma pêra, e ficou tão linda que daria inveja a qualquer atriz da Globo. Os seios de Maristela estavam tão caídos que quando ela tirava o sutiã, os mesmos eram usados como inseticida, pois com a queda matava qualquer inseto; com as próteses de silicone, os seios além de fazerem inveja a qualquer ninfeta, davam de dez em quaisquer seios de qualquer garota Big Brother. Mais lipoaspiração, lipoesculturação, silicones na bunda, retirada de varizes e joanetes, Maristela estavam tão perfeita que Deus não teria feito melhor; isso prova o poder do dinheiro, pena que nas mãos dos políticos, o dinheiro não faz a transformação que faz nas mãos dos médicos. Saindo do médico Maristela foi direto ao cabeleireiro para tingir os cabelos de louro e saiu de lá tal qual manga mastruz chupada, mas mesmos assim linda. Passando numa loja comprou um vestido vermelho e foi fazer o teste de beleza, para isso passou perto de um edifício em construção, e os peões de obra foi logo desfilando suas pérolas:
- Você é a nora que minha mãe queria.
- Com este corpo e o vestido vermelho, queria ser um touro para correr atrás de você.
Não precisa dizer que Maristela saiu dali com a alma lavada e com a certeza que o dinheiro fora bem investido. Chegando em casa ao bater a campainha, pois queria surpreender o seu marido, Bráulio deu um pulo para trás sem reconhecer que quem estava ali era a sua mulher; e o que parecia impossível aconteceu, o fogo subiu a cabeça, mas a cabeça do meio não dava sinal de jeito nenhum. Refeito do justo e já dentro de casa, sabendo que quem estava ali era sua mulher, Bráulio usou tudo que é instrumento que levasse ao amor e conseqüentemente ao sexo, mas o instrumento principal não funcionava nem com reza brava. Olhando para suas mãos, Maristela resolveu usá-las para, quem sabe assim, resolver o problema do Bráulio; não teve jeito, por mais que usasse as mãos, no vai vem, a cobra não batia continência e nem soltava o seu veneno. Novamente dando um passo para sua evolução, Maristela radicalizou de vez, resolveu usar a boca:
- Vamos ao cirurgião plástico.
Com tantas malas de dinheiro na mesa do médico para convencê-lo a resolver o problema do Bráulio, se um político em Brasília visse aquela cena resolveria mudar de profissão, pois se existe uma profissão que dá dinheiro neste país é a profissão de político, pois por um meio ou por outro ele faz um real virar milhões de dólares. Malas recolhidas, o médico pôs mãos à obra, instalou uma haste de silicone no bráulio do Bráulio, e daquele dia em diante a cobra sempre estava armada para dar o bote. E os dois foram felizes para sempre, pois em casa onde a cobra sempre está armada para dar o bote, a aranha não cria teia.

sábado, 25 de julho de 2009

Em casa onde a cobra não dá o bote, aranha é cutucada com o dedo

Bráulio - quando jovem - por ter uma fisionomia com traços que cabiam mais em uma mulher do que em um homem, era qualificado por outros homens de boiola, fêmeas e afins; lógico que isso não causava nenhum prejuízo a sua imagem perante as mulheres, pois sabia que era a inveja que movia os homens; além do mais, para as mulheres ele era a própria beleza. A natureza que não lhe deu apenas um rosto belo, mas também um corpo; proporcionou-lhe a ter todas as mulheres, desde solteiras até casadas. E foi com o sexo que ele gastou tanto a beleza do rosto quanto à do corpo; ao chegar aos trinta os vincos no rosto eram proeminentes, os cabelos rareavam, a barriga dava o ar de sua graça, arredondando-o; a beleza lhe fugira, tornara-lhe um homem comum.
Como para as mulheres - tanto quanto para os homens - o que é belo tem que ser jovem, Bráulio para ter prazer, agora, tinha que pagar. Em uma noite em que o dinheiro empregado para o prazer da carne foi mal gasto por ser a mercadoria de péssima qualidade, Bráulio resolveu que deveria casar, afinal as despesas seriam menores; pois com alguns trocados e muito sexo satisfazia uma mulher. Dentre as que ele transou, quando jovem, havia uma que lhe tinha muito amor, e além do mais era muito fogosa; vinha lua, vinha sol e lua de novo, e a mulher não se satisfazia. Chama-se Maristela, e com ela Bráulio contraiu matrimônio.
Bráulio sabia que todo casamento tinha pouca duração, eram suficientes apenas míseros anos para o amor esvair e mais alguns para o prazer sexual não mais existir. Houve muitas luas e muitos sóis de amor e sexos satisfeitos, mas decorridos cinco anos, apenas míseros cinco anos, para o amor ter sumido do coração de Bráulio e ínfimos três anos para a libido por sua mulher ter exaurido. Entrementes a outras mulheres não lhe faltava desejos, e recorrer a elas para satisfazê-los não demorou muito; e assim agindo se sentiu jovem de novo, apesar do tempo já ter decorrido, para ele, quarenta anos. Para Maristela não desconfiar de suas traições, ele era obrigado a satisfazê-la; pois ia Lua, vinha Sol e Lua de novo, e a mulher parecia ter fogo entre as pernas; para isso ele recorria ao santo milagroso remédio azul.
Decorridos mais dez anos e o bráulio do Bráulio não batia mais continência às outras mulheres, e o remédio que em casa fazia tanto milagre, começou a ser usado para fazer milagre fora de casa. Entrementes vinham todas as fases da Lua e todos os Sóis, e Maristela não mais tinha fogo entre as pernas, mas sim o próprio inferno em chamas; e Bráulio que era obrigado a apagar este fogo, não mais o pôde, pois o santo remédio deixou de fazer milagre tanto dentro como fora de casa. Para Bráulio começava o seu inferno, enquanto para Maristela seria o seu que não mais seria apagado. Ao Bráulio não houve outro recurso senão se conformar, e procurar prazer onde pudesse haver; ele achou em jogos, propriamente em casas de bingo. Entrementes Maristela teve que se apegar em tudo que era receita que lhe garantisse o renascimento da libido de quem a perdeu. Portanto, tudo que era tipo de salada que houvesse ovo de codorna na receita ele fez; a água para o café passou a ser fervida com canela; o leite era batido com chocolate e amendoim; gemada passou a ser o desjejum de todos os dias; estas e outras receitas exóticas não adiantaram nada, era como se o bráulio do Bráulio morto estivesse. O pior era que Bráulio sabendo que estava, bebia e comia resignado todo tipo de alimento, para ele mandinga, que sua esposa servia. Vendo que não conseguia sucesso com suas receitas, Maristela recorreu a todo tipo de simpatias; pois vinha Lua, ia Sol e vinha Lua de novo e nada do Bráulio ser o bombeiro para lhe apagar o fogo entre as pernas. E quando as esperanças lhe estavam sumindo, o fogo lhe consumindo até a alma, tendo a fidelidade não como capricho, mas sim como condição moral; seu vizinho com a mangueira em mãos a molhar seu jardim, parecia ser a solução, ela teve que se apegar às orações para não pecar. Como Santo Antônio era santo casamenteiro, pensou ela que seria este o santo que resolveria seus problemas; e de tanto orar e rogar as suas preces ao santo, dia sim, outro dia também, ele desceu do céu e deu-lhe o que pareceria ser a solução.
Entrementes Bráulio ia tendo prazer em bingos, ora ganhando muito, ora perdendo tudo. E no dia em que os ganhos foram maiores do que as perdas, Maristela pôs em prática a idéia sugerida pelo santo que consistia em comprar uma fantasia sexual. Por indicação de uma amiga, que de lençol e cama conhecia mais do que qualquer governo em praticar corrupção, comprou a fantasia de Tiazinha. Estava ela sob lençóis com cinta liga, corpete, luvas, máscaras e chicote quando Bráulio chega em casa, feliz por ter ganhado quinhentos mil no jogo, e surpreendido por ver Maristela naquele traje, sai correndo assustado. Tendo pernas o suficiente para lhe levar aonde desse, ele chega no bar vizinho a sua casa, demonstrando que ele estava ruim não apenas da perna do meio, mas das três; pede uma bebida e contrariado solta esta pérola:
- Porra, fui surpreendido pela minha mulher fantasiada de Zorro com um chicote nas mãos querendo me bater.
Como Maristela já havia pedido opinião à amiga, a cidade toda já sabia dos problemas de Bráulio e o que sua esposa estava fazendo para dar solução aos mesmos, então o dono do bar lhe devolve outra pérola:
- Pôxa Bráulio estava faltando uma peça para completar a fantasia de Zorro.
- Qual?
- A espada, se por acaso não houver espada em sua casa, eu empresto a minha.
Estas observações chegaram aos ouvidos de Maristela. Ela aceitava até ser confundida com a Mulher Gato, mas com Zorro era demais. Percebendo que com Bráulio não teria como satisfazer sua libido; que até o santo não resolveria o seu problema; e por medo de um castigo maior se pecasse; e principalmente por ser temente a Deus, daquele dia em diante, houvesse Lua, houvesse Sol, como na sua casa a cobra não dava o bote, a aranha seria cutucada com os dedos.

sábado, 18 de julho de 2009

Nem só de milho vive o pinto - a continuação

Quando se chega aos cinqüenta e cinco anos com apenas alguns fios de cabelo a menos, não é de causar preocupação, mas quando além dos fios, a cabeça, não a pensante, aquela que faz o homem sentir-se homem, também cai, aí sim, é de perder os outros fios, de preocupação. Descabelar o palhaço, amassar o macaco, bater uma gordurosa. Na minha juventude fiz muito uso das mãos, quando fiz uso da cabeça, a pensante, deixei de usar as mãos para dar um uso mais útil a cabeça, a não pensante, e até a data de hoje, a cabeça pensante, para funcionar, necessitava que a não pensante, pelos menos quatro vezes na semana, fosse pau para toda obra. E foi, até a data de hoje.
Dizem que o apressado come cru, eu não comi. Ao entrar no trem com ELE babando pela morena, não me dei conta que ela tinha embarcado no trem sentido norte, eu estava no trem sentido sul. ELE caiu vertiginosamente tal qual a bolsa de valores em crise. Perdi a cabeça, as duas, e saí da estação em crise de choro. Pediram para esfriar a cabeça, uma de tão fria que estava parecia morta.
Ao colocar os pés na rua, eu percebo que todos me olhavam rindo, o porquê sei quando o mineirinho me abraçando diz, “resolvido o nosso problema?” Quando lhe disse que não, ele me convida para tomar vinho acompanhado de um delicioso redondo. Creio que ele não sabia que no nordeste quando se nasce cabra, morre-se cabra, ou morre-se antes de ter a oportunidade de virar ovelha. Coitado do mineirinho, quando ele me explica que redondo, em Minas, é queijo, seu rosto estava redondo de tanta porrada.
São Pedro deve ter enchido a cara de cerveja, pois de uma hora para outra começou a mijar na minha cabeça. A chuva era tão intensa que me senti como um pinto molhado, murcho. Entrei na primeira loja que encontrei, e após limpar os óculos me vi cercado por vibradores de tudo que é tamanho, estava num sex shop. Tranquei o meu copinho antes que um dos vibradores criasse vida própria e sendo tarde demais para pedir socorro, eu berrasse igual ovelha quando o bode a cobre.
Dizem que a probabilidade de você encontrar uma pessoa com as mesmas feições de outra era ínfima, não era, pois a morena da loja era idêntica à morena do trem, cagada e cuspida.
É dito pelas mulheres sábias que o tamanho do documento do homem se mede pelo tamanho do seu pescoço ou pé. Foi dito pela minha mãe que eu tinha um pescoço tão grande quando eu era recém-nascido que não conseguia suster a cabeça, a pensante, em pé.
Quem tem cabeça é melhor saber usá-la, usei a pensante para fazer melhor uso da não pensante. Em poucos minutos eu estava na casa da morena da loja. Dizem que se a esmola é demais o santo desconfia, como não sou santo, não desconfiei.
Chegando em casa ela colocou cinco litros de vinho em uma panela e levou ao fogo, acrescentou canela, cravo, hortelã, gengibre e, pasmem, pimenta malagueta. Perguntei-lhe se era para beber, ela disse que sim, e também para embeber os documentos, assim perdia-se a identidade e significava-se de outras maneiras. Ele tremulava na cueca. Ela tirou do rack um cd do Village People, colocou no aparelho de som e começou a fazer um streep trease. “Macho, macho man”, não sei como alguém pode fazer streep com esta música, além do mais eu não estava me sentido “man”, muito menos “macho”, porém quando ela tirou a roupa de cima mostrando seu pescoço longo e grosso, seu corpo musculoso e curvilíneo, seus seios pequenos e tesos, Ele queria ressuscitar. Algumas doses de vinho a mais, uma peça de roupa a menos, a saia, ELe estava ressuscitando, enfim, quando ela estava somente de calcinha, ELE, finalmente, havia ressuscitado. Milagre, ELE esta vivo! Novamente.
Dizem que hoje em dia as coisas estão tão misturadas que, se não tivermos uma boa cabeça, não sabemos quem é quem. Quem a visse na sua bota número quarenta e dois, somente de calcinha, com seu um metro e oitenta dois, com a caixa de abelha estufada na calcinha querendo sair, não imaginaria que naquele angu tinha caroço.
ELE estava babando querendo experimentar do mel, mas precavido, ELE não foi com tanta sede ao pote. Quando ela tirou a calcinha, finalmente, tanto ELE quanto eu entramos em desespero. Naquele angu não tinha caroço, tinha, isso sim, dois caroços com uma colher de pau no meio. Ela era ele e o ELE dela não era apenas ELE, mas ELLLLLLE! A dita cuja era dito cujo, ou seja, a Benedita era Benedito. Fiquei mais desesperado quando ela, digo, ele disse que gostava de jogar futebol e que não tinha graça ficar no gol segurando a bola, prazeroso era jogar na linha para fazer gol. Meus documentos que antes pareciam dois pontos com um ponto de exclamação no meio, agora, estavam mais para reticências. ELE, quero dizer, ele estava tão assustado que foi encolhendo até desaparecer entre os dois pontos.
Dizem – queria saber quem foi que disse isso – que em certas situações o melhor remédio é relaxar e gozar. Ela, quero dizer, ele colocou suas mãos nas minhas costas e me jogou na cama. Resumindo, ele jogou comigo o campeonato paulista, a copa do brasil, o brasileiro, a libertadores e a copa do mundo com direito a prorrogação e cobrança de pênalti. Não preciso dizer que saí destes campeonatos fodido, literalmente, e sem fazer um único gol.
Não sei como consegui dar os passos necessários para chegar em casa, somente sei que berrei igual à ovelha, diga-se de passagem, de dor. Com pedra ume na água morna em uma bacia, eu coloquei minha bunda para aliviar a dor que estava sentindo, pois mesmo com ele desaparecendo entre as duas bolas, eu precisava do copinho, e que fique bem claro, para saída. Entrada jamais.
Caros leitores, segue um conselho – e não venha dizer que isso não acontece com vocês, pois tudo que sobe um dia cai -, não meu, mas do meu avô que aos oitenta anos, após anos de viuvez, resolveu casar pela terceira vez com uma moça na casa de seus cinqüenta anos. Eu lhe perguntei se ELE ainda dava no couro, ele me respondeu com uma pergunta, “meu neto, para que serve a língua mesmo?”, ou então, nobres leitores, segue o conselho do mineirinho, ou seja, coloca-se o milho no umbigo e espera o pinto levantar para comê-lo.
Caras leitoras, para o teu conhecimento, a esposa do meu avô teve com ele, até a sua morte, noites tórridas de sexo oral, ele era um excelente contador de causos, muita falação e nenhuma ação; quanto ao mineirinho, bem, somente outro mineiro para acreditar em um mineiro, e olha lá, com muita dúvida; portanto se o seu marido falhar de uma vez, segue este meu conselho, troque de marido, e de preferência com menos da metade da idade dele, senão serão noites e noites com o milho no umbigo lembrando dos velhos tempos em que ELE entrava em ação.
Ai, ui, ai, hummmmmmm! Vocês não sabem o que acabou de acontecer, a pedra ume entrou pelo ralo. Mas será o Benedito?



• O autor quer que fique bem claro que é HETEROSEXUAL ASSUMIDO, cabra da peste, pai de um casal de filho e com uma MULHER também HETEROSEXUAL ASSUMIDA, e só tem um desvio, é São Paulino assumido, e esta história somente teve continuação devido aos pedidos dos meus leitores. Gostaria de testar a inteligência de todos, vocês sabem que o cachorro faz “au, au”, o gato “miau”, o bode “bééé”, o boi “múúú”, o passarinho “piu, piu”, e o veadinho que som faz?
• Não sabem?
• Tentem pensar.
• Adivinharam?
• Ainda não?
• Meu deus, tão fácil.
• Tentem pesquisar.
• E aí, não acharam nada.
• Se alguém já sabe é porque entende de veado.
• Que tal tentar um veterinário.
• Dará trabalho?
• Quer que eu conte?
• Tá bom.
• Vou dizer:
• O veadinho diz: SÃO PAULO, ÔÔ, SÃO PAULO, ÔÔ.