Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

sábado, 27 de junho de 2009

Traição em uma noite cizenta


A noite de vinte de Janeiro estava fria, não havia luar, um nevoeiro denso cobria toda a cidade de Valparaíso. As poucas lâmpadas não tinham claridade suficiente para iluminar as ruas, indício de madrugada cinzenta e lúgubre. Rajadas de vento não conseguiam dissipar o nevoeiro, quem se encontrava nas ruas só conseguia enxergar a um palmo de distância. O relógio da Igreja marcava vinte horas. Barulhos irritantes de janelas batendo nos batentes, provocados pela ventania, obrigaram os habitantes de Valparaíso a trancá-las. Valparaíso é uma cidade tranquila, onde dormir com janelas e portas abertas é normal. Nunca uma noite foi tão escura como aquela. Uma orquestra de latido cortava a noite, ouviam-se os donos ordenando aos seus respectivos cães que parassem de latir, passava das vinte e duas horas, não havia uma alma viva nas ruas. A ventania arrancava toldos, levava galhos de árvores, era assustador. Os cães haviam parado de latir, ouviam-se bem baixinho somente gemidos, mas não dava para determinar de que animais eram. Todas as luzes de todas as casas estavam apagadas, exceto uma, a do médico da cidade. Todos os habitantes de Valparaíso tinham como hábito deixar uma luz acesa na entrada de suas casas. Algo de estranho deve ter ocorrido, percebia que todas as lâmpadas estavam quebradas, menos a da casa do médico. Eram vinte três horas e vinte minutos quando um vulto passou em disparada pelo nevoeiro em direção a única luz acesa da cidade.
Ouvem-se três batidas bem fracas, passam alguns segundos e as batidas tornam-se mais fortes. Dr. Fernando põe a touca na cabeça, veste um roupão, calça suas pantufas e vai atender. Uma criança de aspecto assustador veio pedir ajuda para um homem que estava gravemente ferido na cabana no lado norte da mata e explica-lhe como chegar lá. Lídice, sua esposa, pede para ele não ir, pois era tarde e a carroça tinha quebrado o eixo ontem e ele teria de ir a pé. Não adiantava, Dr. Fernando sabia que era seu dever como médico salvar qualquer pessoa, Lídice também sabia disso e não fez nenhum esforço para demovê-lo da idéia, apesar de saber que se insistisse conseguiria. Após se arrumar e equipado com sua maleta, lanterna e foice, na eventualidade de ser atacado por algum animal, ele se despede de sua esposa. Ao chegar à porta a criança havia desaparecido. Ele vai até o quintal e com a lanterna acessa observa que o eixo da carroça estava cerrado e não quebrado como sua esposa falara. Mesmo assim Dr. Fernando ruma em direção a mata. Ao adentrá-la ele ouve uivos, grunhidos e gemidos. Aqueles sons e o tempo fechado amedrontava-o. Repentinamente uma árvore caiu a sua frente, desesperadamente empregou uma força descomunal, provocada pelo medo, até então desconhecida. Ele destroçou toda a árvore e seguiu em frente. Entrou na primeira picada a direita que o levou a cabana. Vultos o cercaram, não distinguiu se eram fruto de sua imaginação ou real. Fechou os olhos e ficou assim por segundos, quando os abriram um alívio o invadiu e ele seguiu. Por hora os vultos sumiram. Ao chegar a cabana um homem estava deitado na cabana com feridas nas costas, provavelmente feitas por punhal. Ele estava deitado de lado. Quando o examinou havia um rasgo na barriga. Ele o apertava com um pano tentando parar o sangramento. Ele relatou para Dr. Fernando que fora atacado por um bicho que ele não saberia descrever, pois estava escuro. Só sabia que não era desse mundo. Após costurar o corte da barriga, fazer curativos nas suas costas, medicá-lo com antiinflamatório e analgésico para as dores, Dr. Fernando o tranquilizou indicando-lhe repouso que no outro dia viria buscá-lo, pois àquela hora da madrugada nada poderia fazer.
Dr. Fernando chegou em casa, o dia não queria amanhecer. Parecia que o tempo andara dois dias. Ele estranhou, mas mesmo assim não quis ver as horas, deitou e dormiu. Quando amanheceu ainda estava escuro, o nevoeiro persistia. Lídice não estava na cama. Ouve barulho e vai até a janela, vê vultos. Aproxima sem se deixar perceber. O imponderável acontece. Sua esposa e o estranho que ele acabara de atender estavam conversando. Ele se aproxima mais, esconde atrás da carroça, percebe que o eixo não está quebrado. Olha no relógio e o dia marcava vinte de Janeiro, às vinte horas. Estranhou e percebeu que o relógio estava parado. Ouve o estranho falar para sua esposa que teria que matá-lo, se assim não fizesse eles não seriam felizes. Ela concorda. Os dois se beijam.
Os olhos dilatam, o nariz inflama, os lábios são mordidos incessantemente, as primeiras lágrimas escorrem pelo rosto. Dr. Fernando fervia de ciúmes. A foice se debatia em suas mãos. Controlou-se. O estranho diz para a sua esposa que o mataria agora. Dr. Fernando apressa-se, pega a foice e sem fazer barulho entra em casa. Deita com a foice do lado e se cobre. Passos são escutados adentrando na casa. Abrem a porta do quarto, a passos lentos o estranho aproxima da cama enquanto Lídice tranca a porta. Ele vê duas mãos enormes erguerem-se, ao levantá-las o estranho deixa a mostra metade da barriga. Dr. Fernando percebe que não há ferimentos nem cicratriz em sua barriga. Quando olha para cima ele nota as mãos do estranho descendo com uma faca. Não teve medo, pegou a foice e num golpe só partiu a metade da barriga do estranho. Este caiu estrebuchando. Lídice se desespera. Dr. Fernando só ouve-a pedir para que não a matasse. Ele estava surdo, em um movimento desesperado a acerta no pescoço, a cabeça cai rolando em direção ao corpo morto do estranho. Após sentar na cama, suavemente a foice desliza da sua mão e cai no chão. Deita, chora e grita o nome de Lídice.
Uma voz desesperada lhe chega aos ouvidos, sente ser tocado freneticamente. Assustado ele abre os olhos e fica mais assustado ainda quando percebe quem estava chamando-o e tocando-o. Ele dá um pulo para fora da cama, olha em volta e não ver nenhum corpo no chão. Olha para cama, lá está sua esposa que há pouco lhe chamava, viva. Olha no relógio, datava o dia vinte de Janeiro às vinte horas. Pela janela ele vê um céu azul carregado de estrelas, a lua dava o ar de sua graça, brilhante e cheia. Neste momento ele percebe que tudo fora um pesadelo. Dirige-se para o banheiro, passa água no rosto, vai até a cozinha preparar um leite quente quando ele ouve três batidas bem fracas na porta, passam alguns segundos e as batidas se tornam fortes. Ele abre a porta, estranhamente a noite estava fria e o nevoeiro era denso, ele olha no relógio e vê que estava funcionando. Abaixa o olhar e uma criança de aspecto assustador pede-lhe ajuda para um homem que estava ferido na cabana no meio da mata. Ele bruscamente fecha a porta, dirige-se até a janela e admira a beleza do luar e do céu estrelado. Deita-se, esta noite não irá a socorro de ninguém. Dormiu o sono dos justos

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Cumplicidade


Ao chegar em sua casa ele ouviu dela que o matara, pois a sua cobardia não o deixara tomar alguma atitude, que ele fosse homem o suficiente, pelo menos, para se livrar do corpo. Por mais indelicadas que fossem as palavras, elas tinham que ser pensadas quando são ditas, mormente quando são por quem se ama. Dizíveis, as palavras, invenção do homem, deveriam ser ponderadas, visto que os atos não os são. Ditas por sua esposa com tanta propriedade, mesmo inverídicas para ele, as palavras tornavam-se verdadeiras, conquanto quem o visse, os atos falavam por si. Portanto relatamos os atos para que as palavras não sejam incongruentes. Ele foi ensimesmado querendo colocar para fora, pela boca, o jantar que comera minutos antes. Corpo no saco, segurando a ânsia e evitando pôr os bofes para fora, ele se deu por contente, afinal, com isso, as palavras de sua esposa deixavam de ter significado. O saco não estava tão pesado, da sua consciência não se poderia dizer o mesmo. Mesmo que a palavra cúmplice tenha um significado diferente de criminoso, como criminoso ele se sentia, a vista disso a cumplicidade, neste caso, é um crime. Corpo no saco, saco nas mãos, ele, periclitando, andou em círculos amiúde. Era como se um pé quisesse seguir adiante e o outro retrocedendo quisesse voltar. Mas quando se comete um crime ou se é cúmplice de um, o que queremos é nos livrar das pistas que possam nos incriminar, quiçá, também, se livrar da culpa de consciência. O que lhe preocupava era o corpo, como se livrar dele sem ser visto, da consciência o tempo era juiz. Porém pensou, e se houvesse outras pistas, se houver que a esposa cuidasse de se livrar delas, concluiu. O medo exsudava pelos seus poros. Com olhos curtos ele olhou se não havia alguém na rua, com olhos longos ele pressentiu dois casais vindo, esperou eles desaparecerem de suas vistas e ele das deles, visto que ele foi visto. A natureza estava colaborando na ocultação do delito, a garoa fina que caía nas primeiras horas da manhã aprisionou as pessoas em suas respectivas casas. O caminho estava livre, e usando as palavras apropriadas, para ocultar ou cometer um crime. Atabalhoado, guiado pelo nervosismo, carregando o saco nas costas, tropeçando, ora no ar, ora nos próprios pés, ele virou na primeira viela, como sempre faz quando vai ao trabalho, e deixou o saco escorregar pelo corpo até atingir o chão. Desfeito do corpo, ele olhou para trás certificando-se que ninguém o observava. Talmente a criança que maldosamente quebra a vidraça do vizinho, corre para a sua casa e após horas nenhuma reclamação o chega à porta, esbalda-se de felicidade. Assim ele estava a caminhar. A felicidade durou pouco, pois a sua consciência além de o acusar pela ocultação do corpo, o acusava também pela felicidade de a ter feito. Entrementes sua consciência o pedia para delatar o crime, o seu coração pedia o contrário. Ele obedeceu ao coração, pois quando se ama e é amado em demasia, o amor por si só oculta qualquer delito. Na volta do trabalho para casa ele percebeu que tardava anoitecer. Todos os olhares em todas as casas eram para ele. Como ele e sua esposa, mais a esposa do que ele propriamente, eram os únicos que não tinham o morto como querido, os olhares para eles sempre seriam os mais acusadores possíveis. Percebendo que todos deram falta de quem morto estava, ele apressou os passos sem perceber que agindo assim se incriminava. Ao abrir a porta da sua casa ele sentiu alguém o puxando pela barra da camisa. Certamente deveria ser um daqueles que o acusava com o olhar pela morte daquele animal. Era uma criança com um olhar meigo, nem por isso menos acusador, que lhe perguntou se o tinha visto. Foi dito, e as palavras foram inventadas para serem ditas e escritas, para o bem ou para o mal, que uma mentira dita amiúde pode se tornar uma verdade, e ele que disse a si mesmo repetidas vezes o que dirá a criança não se convenceu por dois motivos, um, que ele conhecia, usando de pleonasmo, a verdade verdadeira, e outro, que a sua consciência não permitia uma mentira qualquer que fosse. A criança voltou a lhe perguntar se ele o tinha visto e antes que o silêncio, como resposta, fosse prova do seu crime, e assim lhe pareceria pois todo silêncio é dúbio, ele lha disse, sem claudicar, de uma forma peremptória, sem titubeios posto que a palavra tem que ser dita com contumácia para que tenha a sua real significância, que não o tinha visto, visto que provavelmente ele havia sido atropelado ou quem sabe a carrocinha o havia levado, e neste caso deveria estar morto, pois como se sabe, gato ou cachorro levado pela carrocinha vira sabão, e como isso é dito pela voz do povo, sabe-se que é a voz de deus, e sendo a voz de deus não há palavra que a conteste. Ele seguiu com sua verborragia, símile ao político, posto que todo político usa da palavra para enganar, disse-lhe que isso somente acontecia quando não cuidamos de quem estimamos, e concluindo, foi mais político do que o próprio político, é o teu caso. Disfarçando o seu cinismo, ele entrou em casa e encontrou sua esposa cuidando dos vasos de flores, feliz, afinal não havia mais aquele maldito animal a estragar orquídeas, bem-me-queres, amores-perfeitos, tulipas e etc. O morto, ou seja, o gato da criança não mais fazia dos vasos de flores receptáculo de fezes. Por mais que a noite tarda quando se é feliz, o tempo passa a ser uma abstração da criação. Os dois foram para a cama como se estivessem carregando consigo uma felicidade sempiterna talmente os animais no cio, posto que todo animal, quando livre, é feliz. Como a vontade era maior do que a fome, eles satisfizeram a vontade, insaciáveis, como animais, não se deixaram morrer de fome. Porém ele sabia que a vida seguiria o seu curso e, indubitavelmente, que após uma noite prazerosa, segue-se um dia nem tanto. Justamente por ele não querer que a pressa se apoderasse do tempo, foi o tempo que se deu à pressa e por ela foi levado. A manhã chegou. Era de seu conhecimento que por mais que desviasse do seu caminho, amiúde, um dia ele seria levado ao local que ele deixou o saco com o gato morto, mormente se aquele era o seu caminho habitual. Para não dar razão a sua esposa, melhor dizendo, para não dar significado verdadeiro as palavras ditas por sua esposa sobre a sua coragem, ele tomou a si uma coragem somente vista em super-heróis e nesta mesma manhã, sem manha que isso não é dado a um super-herói, virou na viela que havia deixado o saco com o gato morto para enfrentar os seus medos. O animal quando está diante do perigo, ele não se acobarda, pois sabe que para se livrar do seu predador ou ir a busca de sua caça há a necessidade da luta. E que luta foi para ele seguir adiante quando virou em direção a viela. Houve a sua frente um gato com os pelos ouriçados, as unhas afiadas prontas para o ataque. Ele ficou paralisado, não teve reação, não lutou. Por mais que se diz de uma pessoa, as palavras ditas ganham um maior significado quando a pessoa diz de si pelos seus atos. Ele acobardou. O gato, mirando a sua presa, preparou-se para dar o pulo, entrementes, ele, como todo cobarde, fechou os olhos e se encolheu talmente o tatu bola. O gato voou sobre a sua cabeça, ele, agachado, de olhos fechados, ouviu guincho saindo de uma boca próxima da morte. Quando se levantou, de olhos abertos, riu com ri todo cobarde ao se ver livre do perigo. O gato desfiava com as patas um rato preso à sua boca. Se o predador do rato era o gato, do gato poderia ser o homem, do homem quem seria, interrogou-se, e respondendo a si mesmo disse, ninguém. A falta de saber não torna o homem ininteligível, porém imperceptível para as coisas e inidentificável às pessoas. A ignorância somente o faz enxergar a si mesmo. Ele seguiu sem saber que era o próprio homem o seu predador.


* Por mais inverossímil que possa parecer a história, ela foi baseada em fatos reais. Os nomes das personagens, tanto humana como animal estão ocultos para preservar os mesmos.