Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Um presente de Natal


   Houve um tempo, uma criança sabia que seu mundo iniciava nas
margens do rio São Francisco e se encerrava na linha do horizonte
entre o rio e o céu. Houve ele, ainda pequeno, de ganhar um presente.
Os presenteadores, seus pais, lhe ensinaram que quanto mais ele o
usasse mais valor dava a si e mais valorizado se tornava o presente. E
assim ele fez durante os primeiros doze anos de sua vida.
   Houve de o tempo passar, e a criança se tornou adolescente. Seus
pais, querendo que ele soubesse mais, atravessaram a linha do
horizonte e ele soube coisas do outro mundo. Luzes, cores e sabores
tinham outros significados. A aceleração diária neste novo mundo
tornou os dias mais curtos, os meses menos demorados e o passar dos
anos imperceptível. Então, ele deixou de usar o presente de criança e
perdeu valores.
  Tendo esse novo mundo como espelho ele se tornou ignorante.  Porém
já homem feito, soube que ignorância não é falta de saber, mas
sinônimo para falta de amor. Sozinho percebeu que não mudaria as
pessoas desse novo mundo, também não era enterrando em si aquela
criança que se adaptaria a esse mesmo mundo. Passou a ser o que sempre
fora e começou a usar o presente de criança.
  Meus amigos, essa história não é fruto da minha imaginação, é real
e a criança da crônica sou eu. Meus pais sempre me ensinaram, mais do
que isso, frisou que compartilhar o presente durante a minha
existência valorizaria não só a mim, mas também aqueles que comigo
conviveria. Aproveito o Natal e o significado de iluminação que ele
tem para mim e lhes presenteio com o mesmo presente dado pelo meu pais
quando eu era criança. Estendendo as minhas mãos para lhes presentear
na esperança que não guarda esse presente somente para si. Não abra
ainda, quero que saiba que dentro desse embrulho encontra-se a
GENTILEZA.
   Que na sua ceia de Natal a congregação em família - sendo que
família é formada pelos filhos do mesmo Pai, Deus - possa haver a gentileza em
abundância e que em 2012 vocês possam recolher e distribuir amor.
   São os sinceros votos da minha Família. A Luz sempre permaneça em
nosso lar. Perceba-A e ilumina-se.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Depois - Parte final


   Pedro estacionou o carro em cima da calçada, sabia que estava errado, contudo, a pressa não lhe permitia outra ação senão essa. Ele retirou dois sacos de sessenta quilos do porta-malas do carro e colocou na garagem do salão de distribuição de sopa, em seguida saiu em disparada, sendo observado por Salvador. Voltou meia hora depois com duas caixas pequenas e as colocaram próximas dos sacos.
   - Pedro, posso saber o que se passa. Não me diga que vai tirar Jesus da cruz com toda essa pressa. - Salvador disse entre risos.
  - Não. - Pedro disse sorrindo, também. - Recolhi alguns sonhos nas padarias do bairro e algumas latas de doce de leite de alguns supermercados.
   - E o que pretende com isso, aqui só distribuímos sopa. Você sabe disso.
   - Sei, Salvador. Vou distribuí-los na rua para os famintos.
   - Pedro, depois de vinte anos, você ainda me surpreende. Isso é bom. Precisa de ajuda?
   - Desculpa, irmão, quero fazer isso sozinho.
   - Vá com Deus, Pedro. Ele te guiará aonde você quer chegar.
   Pedro partiu incomodado por Salvador ainda não chamá-lo de irmão depois de vinte anos de convivência.

   Socorro corria, mas a fome estava lhe tirando as forças das pernas, se descansasse, ela sabia que não levantaria, por isso passou a andar lentamente.

   Pedro havia distribuído todos os sonhos. Foi em direção ao carro e quando jogou os dois sacos vazios no porta-malas sentiu um ruído, então, ele enfiou a mão no saco e encontrou um sonho. Olhou para todos os lados para ver se encontrava algum faminto, como não encontrou, ele levou o sonho à boca. Neste mesmo instante, ele ouviu um ruído de algo se chocando no carro. Foi na direção de onde o ruído havia vindo e encontrou uma criança caída no chão.
   - O que lhe aconteceu? - Pedro perguntou ansiando uma resposta, pois estava preocupado.
   - Você é o anjo que veio me trazer o sonho recheado com doce de leite.
   Pedro não havia entendido a resposta, somente se deu conta quando a criança avançou sobre a sua mão retirando o sonho e o comendo vorazmente.
   Esbaforido, Pedro entrou no salão de distribuição de sopa, carregando a criança no colo e já explicando a Salvador o que se passara. Após pedir às voluntárias que desse um banho na criança, a alimentasse e a acomodasse num dos quartos do salão, Salvador, pela primeira vez, viu Pedro orando.
   - Pai, um dia, eu não dei valor a vida que me deste, atentei contra o bem maior que deixara para mim. Pai, sei que sou pequeno, ainda não merecedor de Sua graça, por isso, peço-Lhe, não para mim, mas para essa criança, não deixe que a Luz lhe expire, ilumina-a.
   Salvador, emocionado, se encaminhou a Pedro e lhe deu um abraço demorado.
   - Pedro, a sua fé trará Luz a ela. Você é um iluminado, irmão.
   Pedro, enfim, ouviu o que tanta ansiara, ser chamado de irmão por Salvador. Segurou mais um pouco aquele abraço para si e o agradeceu por não ter desistido dele. Salvador lhe sorriu e beijou a sua testa, abençoando, em seguida saiu da sala deixando-os a sós.
   Ainda emocionado, Pedro viu os seus olhos retrocederem em câmera lenta para o passado, no momento que encontrou com Angélica pela primeira vez na escola e voltar ao presente lestamente ao encontro dos olhos da criança que acabara de acordar. Gelou, o olhar das duas eram parecidos. O seu coração disparou, um sentimento que há muito tempo estava adormecido aflorava. Ela é uma criança, Pedro, disse para si. Agora sem controle dos olhos, esses voltaram para o dia que ele fez amor com a Angélica na padaria e foram trazidos de volta para o corpo da criança que remexia no sofá. A simetria dos corpos era idêntica, as curvas mais ainda, um detalhe as diferenciava, Angélica era clara, a criança é morena. Se não fosse pela magreza de uma em relação à outra, poderia dizer que eram a mesma pessoa. Olhou mais detalhadamente para o corpo dela, e ela percebera, gostara até. O delineamento simétrico das curvas do corpo dela já não lhe dava a certeza de que era uma criança. Perturbado, ele resolveu falar com Salvador, mas antes a criança lhe falou:
   - Posso saber o nome do meu anjo salvador?
   - Pedro, e o seu?
   - Socorro.
   - Pois bem, Socorro, eu não sou anjo e muito menos salvador, sou apenas um praticante do amor cristão. Agora preciso ir. - Pedro disse tartamudeando, nervoso e perturbado.
   Ele encontrou Salvador no jardim cuidando de suas flores.
   - Pedro, amar é exercitar o Deus em nós, isso você fez ao salvar esta garota, reduzir o amor a superfície do físico é diminuir o Deus intrínseco, é deixar de verbalizá-lo, é emudecer a Sua voz, é regá-Lo ao depois. Pense bem irmão, o conhecimento nos dá a oportunidade de saber escolher, e escolher é saber pôr em pratica as nossas vontades. Saiba das suas e escolha.

CINCO ANOS DEPOIS

   Contristo e cabisbaixo, Pedro alimentava os pombos, fazia isso para ter companhia. Com cinquenta anos, os vincos no rosto, a rigidez da pele e dos sentimentos o envelhecera muito. Sombreava por onde passava, perdera a luz depois que abandonou o serviço voluntário no salão de distribuição de sopa. O alarido dos pombos, após ele jogar as migalhas de pão despertava em seu rosto o sorriso de antes. Repentinamente, o bater de asas dos pombos voando por sobre a sua cabeça o assustou, uma sombra no chão encontrava com a sua. Ele levantou a cabeça e não acreditou no que estava vendo.
   - Angélica? - Pedro disse, incrédulo.
   - Não, Pedro, sou eu, não me reconhece mais.
   - Socorro. - Pedro disse se refazendo do susto.
   - Pensou que ia fugir de mim. Demorei, mas te achei. Levante.
   Socorro pegou-o pela mão e o ergueu, Trazendo-o para junto de si. Parados, se olharam demoradamente, um procurando no outro quais eram as suas vontades. Não precisou de muito tempo para saber.
   Pedro voltou para o serviço voluntário e reencontrou Salvador. Deu-lhe um abraço demorado segurando as lágrimas.
   - O bom filho a casa torna. - Salvador disse sorrindo.
   - Ele torna porque sabe que o Pai sempre estará de braços aberto para ele.
   - Sempre, Pedro, Ele sempre estará com e será por nós.
   E durante mais cinco anos Socorro exercitou o amor divino ajudando aos necessitados, juntamente com Pedro, Salvador e outros voluntariados. Em um dia comum, um dia de sol brilhante, ela se foi, alegre. Sofrera, aos vintes e cinco anos, um ataque cardíaco fulminante. Pedro estava ao seu lado, mas quando o resgate chegou já era tarde. Antes de ir, ela, segurando na mão de Pedro, disse:
   - Meu amor, estou indo pelas mãos do amor, o amor divino, por isso não sofra, sempre há um depois.
   - Eu sei, amor. Vá em paz.
   Pedro disse escondendo a sua tristeza em um sorriso sem convicção e deixando as lágrimas jorrarem assim que os olhos de Socorro foram fechados por ele. Aos poucos, ele foi perdendo a tristeza ajudando aos outros no serviço voluntário. Permaneceram em si as saudades e as boas lembranças vividas.
   Aos sessenta anos, ele não aguentava mais o serviço voluntário, o seu corpo não fraquejava, cansava fácil. Sentou, arcou o corpo levando a cabeça ao braço do sofá, adormeceu. Em seu rosto havia sorrisos da época que ele amara a Angélica e Socorro, os mesmos sorrisos.
   - Você voltou, veio realmente me buscar como havia prometido.
   - Sim, Pepito. Eu sempre lhe disse que há um depois. Vem meu amor, me acompanha.
   - Mas, onde está Socorro?
   No rosto de Angélica havia um sorriso que não era seu, o sorriso de Socorro. Pedro entendera. Foi para amá-la até um novo depois.

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domingo, 11 de dezembro de 2011

Depois - 5ª Parte

   - O que você fez? - Pedro disse, nervoso, agitando os braços.
   - Calma irmão, eu que lhe pergunto o que você queria fazer. - Salvador disse, sereno.
   - O que você pensa que eu queria? É um ignorante? Estava tentando me matar, não percebeu? - A exacerbação das palavras era exagerada na boca de Pedro.
   - Não só a você. O que intentava com isso? - Salvador mantinha a calma, pois percebera que aquele homem estava sofrendo.
   - Eliminar o meu sofrimento, a minha dor. - Mais calmo na resposta, as palavras saíram chorosas, e os olhos de Pedro se perderam longe se procurando.
   - E você pensa que a morte elimina a sua dor. Ela não encerra com a morte do corpo, estará sempre com você, na tua alma, e essa, por mais que você morra e renasça, sempre estará contigo...
   - Vá à merda. Não me venha doutrinar com a tua religião, daqui a pouco me convidará para ir para a tua igreja e dirá que lá eu serei salvo. É o que eu menos preciso agora. - Pedro disse repetindo o impropério.
   - Irmão, talvez você não saiba o verdadeiro significado da palavra religião, ela quer dizer religar a Deus e para isso você não precisa de igreja, a religião, o religamento não está em um templo, em uma sinagoga, em uma igreja, mas em você, intrínseco. Liga e acenda a tua luz interna, ilumina-se, religa a Deus, sinta-O. - O brilho dos olhos de Salvador era intenso e suas palavras tornavam o que dizia verdade.
   - Deus? Você vem me falar de Deus uma hora dessa. Onde estava Deus quando tirou a minha Angélica, onde Ele estava quando tirou o meu pai? - Apesar das queixas, não havia raiva nas palavras ditas por Pedro.
   - Irmão, Ele está onde sempre esteve, em você. A pergunta correta era onde estava você para não percebê-Lo tão próximo, estendendo as suas mãos para confortá-lo. Irmão...
   - Pare de me chamar de irmão que eu não sou seu irmão, me chame de Pedro. - A rispidez de Pedro ao interrompê-lo, não assustou Salvador, quanto mais ríspido e ignorante era Pedro, mais calmo e sereno era Salvador nas respostas.
   - Pedro, somos filho do mesmo Pai, Deus. Portanto estamos irmanados pelo seu amor, pois, como ia dizendo antes de ser interrompido, somente lembramo-nos Dele quando perdemos alguém apenas para culpá-Lo por causa dessa perda e esquecemo-nos dos ganhos que Ele...
   - Irmão - Pedro disse irônico. -, ganhos? Isso é piada? Como você pode falar em ganhos se eu só tive perdas.
   - Pedro, Deus lhe deu algo de importante e você despreza, a sua própria vida.. As perdas estão aí para aprendermos com ela, pois elas são um processo natural da vida. Deus nunca deixou de assisti-lo. Receba-O, sinta-O e você perceberá os ganhos. Agora preciso ir, estou atrasado.
   - Por favor, me ajude! - A necessidade impôs a Pedro a serenidade e a calma necessárias para quem estava precisando de ajuda.
   Salvador não poderia negar aquele chamamento, a Luz havia acendido no coração de Pedro, caberia a ele intensificá-La.
   - Pedro, primeiro você precisa se ajudar para depois ser merecedor de ajuda, você entende isso?
   - Sim, quero ser curado.
   - Mais uma coisa, Pedro. Não será somente Deus que vai te curar, mas você também. Quando você tiver a compreensão disso, você estará curado. Agora vamos, me acompanhe.
   Ao chegar ao local de distribuição da sopa, Salvador cumprimentou a todos os voluntários chamando de irmãos. Todos estavam a postos com concha em mãos, no caldeirão os alimentos ferviam, as cumbucas estavam dispostas em uma mesa retangular circundando toda a cozinha. Então, ele se dirigiu a Pedro.
   - Pedro, pegue uma concha, uma cumbuca e sirva a sopa para os sem-tetos.
   - Mas, Salvador, você me disse que ia me curar, quero dizer, eu ia me curar, e o que você faz é me dar trabalho. - Pedro disse constrangido.
   - E quem lhe disse que a ocupação não opera a cura. Pedro olha aquele quadro e...
   - É o Chico Xavier. - Pedro disse, interrompendo Salvador.
   - Pedro, não atenta para a imagem, mas para o que está escrito embaixo.
   - Trabalhe para o bem dos outros, para que possa encontrar o seu próprio bem.
    Ao terminar de ler, Pedro compreendeu porque Salvador era tão sereno e feliz, agora ele entendia o porquê de tanta pureza nele. Sem esperar que ele pedisse, Pedro apanhou concha e cumbuca.
   - Vamos, Pedro. Vamos, irmãos. Os nossos irmãos famintos precisam ser alimentados. - Salvador disse, entusiasmado.
   - Salvador, por que você chama a todos de irmãos, a mim não?
   - Acorde o Deus em ti. O aceite como Pai para que eu possa lhe chamar, sinceramente, de irmão. Vamos, passou da hora de alimentá-los.

VINTE ANOS DEPOIS

   Seu corpo, apesar de esquálido devido à desnutrição, era um corpo de mulher com saliência e curvas simétricas. Sentada na calçada jogava biriba, sozinha. Ainda tinha a alma de criança, as nuvens no céu ainda eram algodões-doces, o céu era gelatina com gosto de anis, o chão era um pão salgado sem manteiga. No seu mundo fantasioso, ela não tinha como fugir da fome.
   - Socorro. Socorro. Tá surda desgraçada. Levanta daí, vem cá miséria.
   Ela reconheceria essa voz onde estivesse, no mundo real ou fantasioso, mesmo que decorressem mil anos.
   - Tou indo, mãe. - Socorro disse, jogando as pedras no ar e imaginado-as como pipocas doces caramelados.
   Ao aproximar de onde sua mãe estava, ela viu um homem gigante e gordo com uma pedra de Ox não mão. Ele a entregou e caminhou em sua direção. Ela entendera que a sua mãe estava fazendo uma negociação e ela era a moeda de troca. Saiu dali correndo sem olhar para trás.
   A sua mãe, ainda radiada, retirou a roupa e nua se ofereceu como moeda de troca. O traficante retirou a pedra de Ox de sua mão lhe dizendo que o seu corpo não valeria o valor pago para a mesma.
   - Socorro, desgraçada, volta aqui, merda. - A mãe de Socorro descabelava desesperada. O seu corpo começava a sentir falta da droga.
   Montada em suas fantasias, Socorro corria, corria e corria. Adiante, ela via um sonho recheado com doce de leite, e ela corria atrás desse sonho. Corra, Socorro, corra, um sonho recheado de doce de leite te espera. Essa era a voz que ouvia quando corria.

CONTINUA EM 14/12/11

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quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Depois - 4ª Parte



DEZ ANOS DEPOIS

   Havia dez anos que Angélica havia morrido, Pedro estava para completar vinte e cinco anos. Durante todo este tempo ele se entregou a tristeza, a dor da perda tecia em seu coração elos difíceis de serem desembaraçados. No início do seu sofrimento, ele procurou alívio na bebida, depois, achou a tranquilidade ao fumar maconha e por fim a cocaína retirou qualquer sentimento de dor, ele estava fora de si. Todas as tardes, ele sentava no toco da árvore que o caminhão havia se chocado. Tentou por várias vezes ressuscitá-la, porém a morte encerrava qualquer tentativa de revida. Ele mais morto estava, sentia isso. O alívio que as drogas davam era momentâneo, o depois era devastador. Sentado, ele pegava alguns pedregulhos na rua e jogava no ar, qual a sua intenção com isso ninguém sabia. Ele sabia, tentava matar os seus monstros, imaginários ou não, sabia que não conseguiria. E se se matasse, fez essa pergunta pela primeira e única vez.

   Seu pai o acompanhou na sua travessia de tristeza e dor, tentando animá-lo e reforçando o que Angélica havia dito, sempre há um depois. Orava todos os dias, pois não tinha mais de onde tirar energia para continuar esta luta inglória, usava a sua última arma, a fé. Tinha conhecimento que todo viciado em drogas começa com um inocente cigarro de maconha e toma um caminho cujo retorno é difícil de conseguir, se livrar das drogas pesadas. Pedro tomou este caminho, se houver uma volta, terá de ser pelas mãos de Deus, as suas não eram suficientes.
   O cachimbo de crack estava em cima da cômoda, Pedro o olhava, porém, além dele havia alguém lhe chamando, era um dos seus monstros, a morte. A pedra de Ox também lhe chamava, animada pela sua abstinência, ganhou vida e sussurrou em seus ouvidos: "Para que se matar, se me possuindo, você morre aos poucos, com prazer". Pedro foi em direção ao cachimbo e ao tentá-lo pegar, surpreendido, foi a morte que o agarrou. Seu destino estava selado.

   Seu Edson olhou para as suas mãos e se fez uma pergunta: "E se Deus usar as minhas mãos para salvar o meu filho". Não esperou respostas, ele saiu da padaria correndo, entrou dentro de casa e foi direto para o quarto do filho. O bilhete estava debaixo do cachimbo de crack, ao lado estava a caneta que ele usou para escrever e uma pedra de Ox recém-usada. Percebeu que chegara tarde demais.
   "Pai perdoa-me, você sabe que eu tentei, percebi que esse depois nunca chega, além disso, dia após dia, eu vivia a espera desse depois. Pai, eu quero o agora, e o agora, perdoa-me, é o meu fim". Apesar do bilhete deixado por Pedro estar ininteligível devido às letras disformes, seu pai entendeu muito bem o que estava escrito. Então, ele prostrou ajoelhado na cabeceira da cama, chorando, estendeu as suas mãos sobre a cama e as levou para o alto.
   - Pai, essas mesmas mãos que castigaram quando ele errou, não souberam retirá-lo do fundo do poço quando ele sucumbiu. Pai, o Senhor, como eu, também é Pai, por isso Lhe imploro, ao invés de levar o meu filho, leve a mim. Falhei por não ter dado ouvidos a Angélica, o anjo que o Senhor mandou para nos alertar, por isso, Pai, leva-me, eu não conseguirei suportar essa perda.
   Levado pela emoção, após fazer suas orações, o coração do Seu Edson não resistiu. A janela do quarto abriu-se brutamente, uma corrente de ar gélida levou consigo o bilhete. Seu Edson, antes de fechar os olhos definitivamente, ainda movido pela emoção, balbuciou: "Angélica, você veio salvá-lo?". Um lampejo de luz que ainda resistia ouviu a resposta. Ele se foi tranquilo.

   Os passos, imprecisos, de Pedro não tinham direção, o mesmo não podia dizer de suas intenções. Cambaleando entre o meio fio e a avenida, a iminência de ser atropelado era provável, se não foi até agora era porque o fluxo do trânsito estava lento no sentido bairro centro, por isso, os carros conseguiam desviar dele. No sentido contrário, centro bairro, o trânsito estava intenso e parado, nada movia, somente o tempo.

   O tempo de Salvador estava expirando, ele precisava chegar ao seu destino, com o trânsito parado, ele não conseguiria. Como não tinha nem tempo para pensar, instintivamente, entrou à direita, estacionou o carro e resolveu fazer o resto do percurso a pé, seria mais quinze minutos de caminhada. O começo de noite estava claro e fresco, o inverno não era intenso, e isso era bom para os sem-teto. Lua e estrelas, além de darem ao céu luminosidade, davam, também, a Salvador esperança necessária para que a distribuição de sopa trouxesse aos desvalidos alívio para as suas dores, afinal, para ele, aquela sopa era o pão que Deus amassou. Ele atravessou a avenida, ergueu a cabeça, olhou além, sorriu para si mesmo e foi feliz, pois carregava intrínseco a intenção de ajudar os outros.

   Pedro olhou além e viu uma luz bem distante e tomou uma decisão, o seu fim também seria o fim da sua dor. Se ele tivesse fé enxergaria nessa luz a sua salvação, mas não era. Os dois faróis do caminhão vinham altos, a avenida estava livre, o motorista pisou no acelerador, obedecendo aos limites de velocidade. Os sem-tetos, alguns metros dali, estavam formando fila para retirar a sua sopa, preocupados com a sua fome, eles não sabiam da intenção de Pedro.
   A felicidade de Salvador aumentava assim que ele se aproximava do local de distribuição da sopa. A luz alta do farol do caminhão ofuscava a sua visão, porém, a luz que iluminava o seu caminho era outra, por isso ele continuou andado sem dar importância à luz do caminhão, a luminosidade que o fazia enxergar era outra. O mesmo não poderia dizer de Pedro, sem intentar para a luz que mudaria o seu destino lhe dando conforto e compreensão, ele divisou a chegada do caminhão e se jogando embaixo dele, abreviando a sua dor com o fim da vida. Pedro não sabia que a morte não encerra a vida, nem abrevia a dor. O céu trabalhava movido pelas orações do seu pai e de sua namorada, e uma luz maior os iluminou, o céu e o Pedro.
   Pedro se jogou no exato momento que Salvador ia passando, os dois caíram na avenida. O motorista do caminhão de lixo ouvia a sua música preferida, ia levando o caminhão para a garagem, ele tinha pressa, esposa e filhos o esperavam. Uma interferência provocou um ruído na estação de rádio sintonizada, e ele tentando resolver o problema viu os dois corpos no asfalto, em sua mente veio a imagem do acidente na rua da padaria, a culpa que ele levava por ter matado aquela adolescente, a árvore. Não havia nenhuma árvore na avenida, a calçada estava lotada de sem-teto, no sentido contrário da avenida, um tapete de carro o impedia de ir na contra mão para livrar dos dois. O motorista, sem poder de ação, não freou, não desviou, apenas orou e passou. Ele não sentiu o impacto dos corpos no caminhão, nenhum solavanco, assustado, olhou no retrovisor e sentiu um alívio imenso. Olhou para o céu iluminado e agradeceu. Os dois estavam em pé na calçada se refazendo do susto. O rádio, sozinho, voltou à sintonia anterior tocando a canção Jesus Cristo na voz de Roberto Carlos.

CONTINUA EM 11/12/2011

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segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Depois - 3ª Parte


    O motorista do caminhão de lixo estava no fim do seu turno, ele iria entrar na última rua para coletar o lixo quando ao acionar os freios, as rodas não frenaram. Sem poder fazer a curva para entrar na rua devida, pois o caminhão tombaria, ele seguiu reto, ladeira abaixo. O motorista afivelou o cinto de segurança e começou a ciciar as suas orações. Estava sozinho, os garis haviam pulado quando percebeu que o caminhão não faria a curva. Ele não estava sozinho, suas orações foram ouvidas. A rua estava deserta, o sol surgia na linha do horizonte, adiante, ele viu uma árvore, era a luz que ele havia pedido a Deus. O aroma de pão fresco ele sentiu sendo trazido pelo vento. Era a rua da padaria.

   O pai de Pedro estava assando a última fornada de pão, puxando a última fila de pão do forno com a espátula de madeira, quando Angélica tentou passar despercebida, pois não suportaria uma despedida, e seu Edson a notou.
   - Angélica, ia sair sem se despedir?
   - Sim. Seu Edson.
   - Por que, filha? Fiz alguma coisa que lhe magoou. Se fiz, diga-me para lhe pedir perdão.
   - Não, seu Edson, você não me fez nada. Eu que vou fazer. Vou me separar do Pedro, e caberá ao senhor apoiá-lo para que ele não sucumba.
   - Como assim, minha filha. Separar para quê? Vocês se amam, parece que têm a mesma alma em corpos diferentes. Diz para mim, é apenas uma briga de casal, comum a todos os mortais. Vocês farão a paz depois e perceberão que é inútil até brigarem de novo, sucessivamente.
   - Sim, seu Edson, faremos as pazes e nos veremos depois. Lembre ao meu Pedro que sempre há um depois. Sempre. Nunca se esqueça de dizer a ele.
   As despedidas são sempre dolorosas. Angélica abraçou lacrimosa o pai de Pedro e saiu apressada da padaria. Ela não percebeu que Pedro assistira toda a cena escondido atrás do cilindro de massa. Receoso de interferir na cena, ele a perseguiu com os olhos e pressentiu algo de ruim. Correu desesperado pela padaria e antes de alcançar a calçada, ele viu o caminhão de lixo em alta velocidade vindo ladeira abaixo.
   O sol firmava no horizonte brilhoso, ao olhar para ele, ela o sentiu maravilhoso, um lume grandioso da presença Divina; ao olhar para o chão, ela o sentiu revestido de Deus, e não pisava sobre ele, pois Ele o elevava; a estrada estava aberta, ela seria acompanhada por Ele. Enfim a paz.
   Pedro travava uma guerra contra o tempo na tentativa de salvar Angélica, mas sem saber como, alguma mão o prendia no chão. Ele guardaria até o fim de sua vida essa cena, e a culpa por ter, de alguma forma, matado Angélica ao chamar a sua atenção quando gritou, desesperado, o seu nome.
   - Angélica. - O grito de Pedro saiu como de despedida, pois vinha acompanhada de lágrimas.

   O sol ofuscava a visibilidade do motorista do caminhão, no seu campo de visão o único objeto visível era a árvore, tudo em volta tomava a coloração branca, uma brisa gélida tomou carona na boléia do caminhão, assustando-o. Ele não viu mais nada quando o caminhão foi de encontro à árvore, arrastando-a por alguns metros até parar na calçada da padaria.

   Virando o rosto em direção ao grito pronunciado por Pedro, Angélica não percebeu o caminhão arrastando a árvore.
   - Cuidado. - Gritou mais desesperado ainda, Pedro. A sua luta para retirar os pés do chão era agonizante.
   Angélica olhou em direção ao apontamento que Pedro fazia, com os dedos, desesperadamente, percebeu o veículo arrastando a árvore em sua direção e sorrindo disse a Pedro em voz consoladora:
   - Amor, nunca esqueça, sempre há um depois. Sempre.
   Mesmo que Angélica tentasse se erguer, os seus pés não sairiam dali, não haveria mais tempo de se salvar, além disso, ela sentia mãos, não lhe prendendo ao chão, mas a acolhendo. A sua falha na missão de trazer Pedro à Luz havia abreviado a sua vida, ela teve o livre arbítrio, havia feito a escolha, por isso, aceitava a morte, sabia que não era o fim em si e lutaria por mais uma oportunidade para tentar novamente salvar Pedro. Sempre há um depois.
   Os galhos da árvore se tornaram em grandes braços acolhedores, o tronco em um colo aconchegante, as raízes em pés ligeiros que lhe retiraria do plano físico. O seu chão estava revestido de Deus, as nuvens no céu, pinceladas de laranja pelo sol matinal, era a estrada que levaria ao colo do Pai. Seu caminho era de luz.
   Pedro conseguiu se livrar do que lhe prendia ao chão e retirando o último galho que estava em cima de Angélica implorou chorando.
   - Amor meu, não vá. Deus não a deixe ir. - Suplicou, Pedro, olhando para o céu.
   - Meu Pepito, não esqueça, sempre há um depois. - As últimas palavras de Angélica foram ditas com doçura. 
   Movido pelo ódio, Pedro exacerbou:
   - Seu desgraçado, é assim que você quer que eu creia na sua existência. Eu te odeio hoje, eu te odeio sempre e vou te odiar depois.
   O pai de Pedro que havia assistido a cena de atropelamento de Angélica, e estava em estado de choque, ficou estarrecido com as palavras pronunciadas por Pedro. Temendo pelo seu destino, pois sabia que a palavra tem poder, ele orou ao Supremo o perdão para o filho.
   Nuvens negras trazidas pelas palavras odiosas de Pedro entraram em seu coração o entrevando. Ao mesmo tempo, as orações de seu Edson foram ouvidas, cabia ao Pedro fazer as suas para alcançar o perdão.
   Após o sepultamento do corpo de Angélica, Pedro se isolou, fechando em si todos os seus sentimentos. Ao voltar para casa, ele não permitiu que seu pai se aproximasse. Em casa, ele se trancou no quarto e somente abriu a porta porque seu pai insistiu. O pai de Pedro tentava consolá-lo, mas este o repelia, e na terceira tentativa de abraçá-lo, Pedro o jogou contra a parede. Com o impacto, seu Edson gritou de dor, mesmo assim não desistiu, e o pegando de surpresa fechou seus braços sobre o seu corpo e ciciou nos seus ouvidos:
   - Filho, não se entrega a dor, tanto ela quanto a perda nos serve de aprendizado. Aprender com nossos erros pedindo perdão e perdoando é um grande passo na nossa evolução como ser humano.
   - Não consigo, pai. Está sendo difícil. Pedir perdão não arrefecerá a minha dor.
   - Dá ao tempo a oportunidade de te curar. O Altíssimo olha por ti.
   - É a você pai que tenho de pedir perdão.
   - E peça também a Deus. O perdão Dele lhe trará alívio. Eu o perdôo filho, e Ele também fará, afinal Ele é Pai, mais ainda.   
    Pedro emudeceu, não dizendo ao seu pai se pediria ou não.

CONTINUA EM 08/12/11

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quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Depois - 2ª Parte


   Angélica não esperou o pai de Pedro finalizar a frase e saiu correndo, dobrando a primeira esquina em direção à sua casa. Pedro que chegara ao fim da conversa saltou o balcão e a seguiu com os olhos. Ele havia se encantado ao deparar-se com tanta beleza, novamente. Emudecido e ensurdecido pelo encantamento, fechado em um mundo só dele, pensamentos envoltos em nuvens de algodão doce, provando do mel, Pedro não ouviu seu pai chamá-lo.
   Noutro dia o pai de Pedro amanheceu ensimesmado com a previsão de Angélica, mais ainda por ela saber que ele tinha um filho chamado Pedro. Como? - Perguntou-se.
   Pedro já se encontrava na padaria, antes mesmo de seu pai descerrar as portas ao público, sentado no banco, esperando Angélica. Desde a primeira vez que a viu na escola, ele sentira algo muito forte, até aquele momento incompreensível. Quando ela entrou na padaria, o seu coração disparou. Inquieto, ele desassossegou no banco.
   - Tá com comichão, Pedro. - Seu pai lhe perguntou.
   Pedro enrubesceu sem responder a pergunta do pai. Com um sorriso envergonhado, ele respondeu ao cumprimento de bom dia da Angélica.
   - Vocês se conhecem?
   Ao mesmo tempo, os dois responderem que sim. Somos colegas de classe na escola. Uníssono, completaram a resposta.
   Aliviado, o pai de Pedro entregou a sacola com os pães, leite e o tablete de manteiga à Angélica. As previsões dela, ele deu como coisa de criança e as guardou na gaveta do esquecimento.
   Assim que Angélica pegou o rumo da rua, Pedro saltou o balcão apoiando-se no banco, este foi ao chão enervando o seu pai. Pedro olhou na direção de Angélica e sentiu que um pouco dele a acompanhava. Ela olhou para trás e o percebeu parado na esquina, e também sentiu que um pouco dela estava indo na direção dele. O que eles não sabiam era que suas almas se reconheceram. A energia do amor os estava contagiando. Agora as suas auras tinham uma só cor.

DEZ ANOS DEPOIS

   Angélica não sabia como dizer a Pedro o que ia lhe acontecer. De Antemão, ela sabia que a sua vida seria curta para que, com a perda, ele voltasse para o Senhor. Teria de fazê-lo entender que a dor não é um castigo divino, mas a oportunidade de aprender, de evoluir espiritualmente. Cabia a ele escolher o sofrimento como castigo ou como aprendizado para o perdão pelos erros do pretérito. Usaria o livre arbítrio da mesma forma que ela usou o seu e conseguiu a redenção pelos mesmos erros do pretérito.
   Ela não encontrou outra forma de dar a notícia senão com alegria, afinal, o fim em si não encerra a vida, a morte é apenas física. O tempo pedia pressa, ainda não havia amanhecido, apesar da escuridão, ela rumou para casa do pai de Pedro.  Angélica atravessou a padaria volitando. Seu Edson percebeu e sorriu. Ela havia se tornado o seu sol de todos os dias, enchendo a sua alma de felicidade, dando a sua aura mais cor, mais vivacidade.
   - Por que está aí parada na porta. Entra logo. Meus lábios anseiam pelos seus. - Disse Pedro floreando as palavras.
   - Meu Pepito, estava admirando a tua beleza física, mas ao mesmo tempo preocupado por não fazer com que essa sua beleza não seja também percebida intrinsecamente.
   - Pode deixar, meu amor, eu me virarei do avesso e todos perceberão que sou belo tanto por dentro como por fora. - Disse Pedro entre risos.
   Angélica não teve como se segurar e se desfez em gargalhadas. Cobertos de alegria, os dois se amaram ali mesmo, entre sacos de trigo. Cobertos pela farinha, misturados, não dava para perceber quem era quem. Havia uma sintonia entre as suas almas que poderia dizer que era a mesma. A completude se deu quando no ato final do amor, o prazer atingiu a plenitude nós dois.
   Angélica embebeu um pano na água e delicadamente foi retirando a massa formada no corpo de Pedro pelo suor durante o ato sexual.
   - Pepito, como gostaria de retirar a massa que cobre a tua alma para acordá-lo para a Luz, iluminá-lo para que a escuridão, as trevas, não fortaleça a sua descrença. - Angélica, em ato continuo, limpava o corpo do Pedro e mentalmente o energizava, porém não conseguia penetra em sua alma, a energia ficava na superfície do físico. Retirando suavemente as mãos de Angélica de cima do seu corpo, Pedro levantou-se, sentou-se em um saco de farinha de trigo com a cabeça entre os joelhos e as mãos na nuca. Angélica retirou as mãos dele da nuca, ergueu a sua cabeça e olhando em seus olhos lhe disse:
   - Pepito, todo ser sem fé se afasta do Pai e descaminha sem rumo, não vive a vida, mas apenas passa por ela sem dar um sentido, pois lá no íntimo se sente vazio e não percebe que o que lhe falta é crer, não em si, mas no Deus em si e assim deixar de estar e ser. Ser em Deus com Deus.
   - Deus, Deus. Quem é Deus? Deus não passa de uma invenção humana assim que buscou conhecer o mundo que o cercava no início de sua história, e por não saber, por medo ao deparar com o desconhecido, foi mais confortável inventar deuses para solucionar os seus problema, e depois um Deus único, este que você acredita, para a nossa salvação, com um porém, a salvação só vem depois da morte. Não preciso Dele para lidar com os meus medos e nem para me salvar.
   - Não precisa mesmo Pedro? Saiba que dizendo isso, você está abreviando a minha vida.
   - Por que você insiste tanto com este assunto, Angélica. Desde o início eu lhe disse que não acredito em Deus.
   - Por que, Pepito, essa é a minha principal missão, trazer você para a Luz, se não conseguir pelo amor, será pela dor. Eu não quero que você sofra para aprender.
   - Fique tranquila, eu não sofrerei.
   - Quero que você lembre que, haja o que houver, sempre há um depois.
   - Lá vem você de novo com essa de vida após a morte. Morto o físico, morto o anímico.
   - Não vou discutir contigo sobre as minhas crenças. Dou a batalha como perdida. Só lhe peço um favor, quando estiver sofrendo, lembre-se de que sempre há um depois. Nunca se esqueça disso.
   - Lembrarei, Angélica. Sempre há um depois. - Pedro repetiu com desdém.
   - Agora vou tomar um banho e em seguida irei embora. Essa nossa conversa me cansou um pouco.
   - Ok. Você nunca vai me entender.

CONTINUA EM 05/12/11

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domingo, 27 de novembro de 2011

Depois - 1ª Parte


   - Você realmente voltou, veio me buscar como havia prometido.
   - Sim, Pepito. Eu lhe disse que sempre há um depois. Vem meu amor, me acompanha.

SESSENTA ANOS ANTES.

   O pai de Pedro, devido a sua profissão, conhecia todos na cidade, peculiarmente. Por isso se algum estranho aparecesse na cidade, ele logo percebia e se interava sobre o mesmo.
   - Bom dia seu Edson! Quero dois reais de pão.
   Aquela voz melíflua, os seus ouvidos acusaram como estranha, aguçando a sua curiosidade e o fazendo debruçar rapidamente sobre o balcão para saber de quem se tratava. Quando viu que era uma criança, ele estranhou o seu discernimento e a capacidade de comunicação sem atropelos de palavras e uma dicção de causar inveja a qualquer adulto.
   - Meu anjo, como sabe que me chamo Edson?
   - Está escrito no letreiro, Padaria do seu Edson. Como ninguém colocaria o nome de padaria em uma pessoa, você só pode se chamar de Seu Edson.
   Aos risos, o pai de Pedro se encantou com a criança.
   - Mas você sabe ler? Quantos anos têm?
   - Sim, desde os dois anos de idade. Eu tenho quatro anos.
   - Eu não acredito no que estou ouvindo. Por acaso sua mãe é professora?
   - Meus pais são professores, assim como meus avôs. Somos uma geração de educadores. Uma dádiva de Deus sobre a nossa família.
   - Hum, interessante. Bem, deixe-me adivinhar o seu nome. Peraí, me deixa pensar. Hum, o nome tá vindo, peraí que eu vou pegá-lo. - Levando as mãos para cima, como se fosse pegar algo suspenso no ar e o tivesse deixado cair, o pai de Pedro abaixa e pega um papel no chão, abra-o e mostra para menina ler.
   - Angélica. - Disse a criança com cara de surpresa e espanto. - Você é um bruxo. - Completou a frase levando o pai do Pedro as gargalhadas.
   - Não meu bem, não sou não.
   - Mas como adivinhou?
   - Está escrito no bolso do seu vestido. Porém, com esses cachos dourados brotando da sua cabeça; um sorriso simpático nos lábios e, também, em cada olho; uma pele aveludada e um rosto carregado de céu, você só poderia ser um anjo.
   - Obrigado, seu Edson. - Disse Angélica e juntando as palmas das mãos fez uma reverência para reforçar o agradecimento.
   - Pronto aqui está o seu pão. Foi um prazer te conhecer.
   Angélica saiu abraçada ao saco de pão, assim que pôs os pés na calçada, voltou para dentro da padaria.
   - Algo errado Angélica?
   - Eu percebi uma coisa e não poderia guardar para mim.
   - Então fale meu anjo.
   - Sua aura é colorida, deve ser uma pessoa muito alegre, Seu Edson. O Pedro precisará do seu apoio, pois ele sofrerá muito. Não deixa a tristeza dele acinzentar a sua aura o levando a tristeza também.
   - Como sabe que eu tenho um filho e que seu nome é Pedro? Hei mocinha, espere, por acaso você...

CONTINUA EM 30/11/11

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quarta-feira, 23 de novembro de 2011

PS: Urgência médica


Sempre ouvira do meu pai que a fé remove montanhas, como até hoje as montanhas que tive que ultrapassar não passava da altura de minhas pernas, não tive que ter fé para ultrapassá-la, bastou-me pulá-las. Não sou uma pessoa dada à oração, pois não rezo para nenhum santo por achar que humano algum é bom o suficiente para ser santificado, nem tão pouco acredito em Deus, pois se o deus da medicina é a ciência, da economia é o mercado, da computação é o Bill Gates e o da política é a prostituição, porque justo eu tenho que rezar para um Deus único, então rezo para a ciência, afinal como médico é ela, a ciência, que faz com que curo e salvo vidas.
Meu dia seria um dia de cão, pois minha secretária havia faltado por recomendação do seu pai de santo que a proibia de sair de casa numa sexta-feira treze. E hoje além de ser sexta-feira treze, era uma sexta-feira do mês de Agosto. Quanto a isto já havia acostumado e aceitava, afinal ela é muita prestativa. O que eu não aceitava era ela ter levado minha agenda. Passo na sala de espera perguntando a cada paciente o seu nome assim: “Qual o nome do senhor?”.  “Qual o nome da senhora?”. Quando chego ao último paciente, um velho na faixa de sessenta anos, com uma bíblia em mãos, chapéus sobre os joelhos e um crucifixo no pescoço, pergunto-lhe:
- Qual o nome do senhor?
- Jesus Cristo – respondeu o velhinho.
Volto para minha sala chamando um por um todos os pacientes, por último o velhinho: Jesus Cristo. Chamo uma, duas, três, quatro vezes. Nada do velhinho sair do banco. Vou até ele e lhe digo que o chamei e qual era a razão dele não entrar na sala. Aí ele me responde que eu não o chamei. Digo-lhe que chamei quatro vezes seu nome: Jesus Cristo. Ele me responde:
- Mas este não é o meu nome.
- Como? Você me disse que o nome do senhor é Jesus Cristo.
- Sim, o nome do Senhor é Jesus Cristo, o meu é José de Souza.
Não precisa dizer que deu vontade de mandar o José para Brasília, afinal a maioria dos filhos de messalinas trabalha lá.
Só os gregos sabem em que dado momento da história o homem inventou Deus, por isso, apesar do terceiro sexo, da trindade, da tridimensionalidade, dos tribalistas etc, vivemos em um mundo dual, houve a necessidade de inventar o Diabo. Portanto, a partir daí todo ato deixou de ser humano, nos acertos, obra divina, nos erros, para se eximir das culpas, obra diabólica, ou dos outros, afinal o inferno são os outros.
Neste dia Deus deveria estar de férias, e se o diabo tinha alguma feição humana era daquele rosto que estava se encaminhando para minha sala. O dia estava esquentando, parecia que ia ferver. E ferveu. Estava preenchendo o prontuário quando entra na sala o dito cujo, no caso o homem relatado acima, ou seja, o diabo em pessoa, ferido a bala com um casaco que ia até os calcanhares, achei estranho devido o calor que estava fazendo, afinal o inferno é quente o suficiente. Como ele já estava dentro da sala tive que atendê-lo. Quando toco no ferimento percebo que ele carrega uma arma na cintura, tento tirá-la e ele me dá uma gravata. Percebendo que ele não me soltaria e nem me daria a arma, explico que a única pessoa que poderia cuidar dos seus ferimentos seria eu, e que tiraria uma gaveta da minha mesa e ele colocaria a arma lá dentro e ficaria com a gaveta. Ele concordou. Para meu total espanto ele tira o 38 que estava me ameaçando, uma automática, um AR15 e tantas armas que eu fiquei imaginando qual dos filmes de Bruce Willis ele saiu. Não me espantaria se eu abrisse a porta achasse na sala de espera o Clint Weastwood, Silvester Stallone, Arnold Schwaznegger e Chuck Norris. Após medicá-lo o bandido saiu. Na pressa ele esqueceu o 38. Abri a porta e vi que a sala de espera estava lotada. Com as fichas com os nomes dos pacientes na mão esquerda, eu, com a mão direita, comecei a chamá-los: Luis Silva. Luis Silva. Gritei e gesticulando com a mão direita exaustivamente chamei de novo: LUIS SILVA. E nada do desgraçado aparecer. Próximo: José Genuíno. José Genuíno. Novamente gesticulando com a mão direita gritei: JOSÉ GENUÍNO. Nada de aparecer. Tentei o próximo: Marcos Valerio. Marcos Valerio. Nada. Gesticulei com a mão direita e berrei: MARCOS VALERIO. Quando olho para me certificar se realmente a sala de espera estava lotada de pacientes, o que vejo, senão o tucano empalhado em cima da mesinha de centro. Nenhuma alma viva ali estava. Desesperado, vejo o guarda vindo da portaria em minha direção dizendo;
- Doutor na tua mão.
- Sim, as fichas com o nome dos pacientes, mas sumiram todos.
- Não nessa mão doutor, na outra.
Quando olho na mão direita vejo o 38 que o bandido havia esquecido.   




        Texto escrito em 2007

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sábado, 19 de novembro de 2011

Violência urbana

   Maria fazia, como todos os dias, antes de sair de casa, sua oração ajoelhada em frente do oratório. Tendo Santa Rita de Cássia como protetora, ela perdera a esperança no ser humano, mas não na vida, mesmo sabendo ser difícil desassociar uma coisa da outra. Muito cedo perdera o marido atacado por cirrose hepática. Sozinha, ela criara os três filhos e por deixá-los a sós, para trabalhar, os perdera para o crime. Bola era o único filho vivo, mas havia dez anos que não o via, desde que ele fugira de casa.
   Ao sair de casa, Maria se benze fazendo o sinal da cruz e beijando a medalha de Santa Rita que traz sempre consigo. Ela se dirige ao ponto para tomar o ônibus que a levará a Rua Cascalho.
              
   Rua Cascalho cedo da manhã. O silêncio imperava. De vez em quando se ouvia o vento que trazia um pouco de umidade. Amanhecia seco. Do nada surge um carro em alta velocidade. O barulho da frenagem dos pneus no asfalto interrompe o silêncio.
   - Porra Neto estacione o carro próximo da saída. Que merda cara, você quer nos ferrar?
   - Calma Paco! Você não está falando com qualquer um não.
   - Bola passa as máscaras. Apressa-se porra. Vamos cacete, isso aqui vai ser um assalto, não um piquenique de fim de semana com a família. Atenção, quando entrarmos quero todos com as máscaras. Neto deixa o motor ligado. Bola, você fica com o caixa... Não, você é muito gordo para isso. Neto, você fica com o caixa, e revolver apontado para cabeça dele, qualquer movimento, você estoura os miolos dele. Bola, você fica na porta vigiando. Vamos!
   Os três entraram surpreendendo o caixa e o atendente. Neto já havia pulado o balcão e estava com o revolver apontado para cabeça do caixa. Bola estava na porta da loja desempenhando a sua função. Paco estava com o atendente que lutava desesperadamente para se desvencilhar.
   - Que merda! O que este prego tem, fumou bosta de gado? – Paco dá uma rasteira no atendente levando-o ao chão. Com o joelho sobre o seu peito e o revolver enterrado na sua boca, ele grita:
   - Quieto. – Repetiu a frase só que pausadamente.

   Maria já estava no ônibus, um ponto antes de descer ela tem a impressão de que uma voz sussurrava aos seus ouvidos: “não desça!”. A voz era doce e tinha hálito de rosas. Ela não dá ouvido. O cheiro de rosas aumenta, tem a impressão de estar num roseiral. Ela desce.
   Em um momento de descuido, Paco só teve tempo para sentir o chute na região genital. A dor era intensa, mas mesmo assim ele engatilhou a arma, mirou no atendente e, no momento do disparo, sentiu um impacto no ombro.
   - Você tá louco Paco. Estamos aqui para roubar não assassinar. - Neto esbraveja após se chocar com Paco.
   Não ouve tempo de evitar o disparo. A bala seguiu seu destino. Passou de raspão pelo atendente, atravessou a porta de vidro assustando Bola, e acertou em cheio, no outro lado da rua, Maria que a pouco havia descido do ônibus. Ela levou as mãos ao peito e, mergulhada em sangue, desmaiou. Em poucos segundos estava morta. Rodeada por rosas brancas, ela acordou no colo de Santa Rita de Cássia. Alcançou, enfim, para sempre, a paz.
   - O que está acontecendo aí, cara? Porra, tem um presunto do outro lado da rua. Melou, melou. Que merda! – Bola assustado começa a andar em círculos, e só se deu conta que havia outro corpo no chão quando tropeçou nele, desabando de uma vez.
   Após o choque que levou de Neto, Paco disparou de novo. A bala alcançou o atendente antes dele atravessar a porta de vidro, estilhaçada pelo primeiro tiro, e cair na calçada da loja. A última imagem, antes de morrer, que viu, foi um corpo imenso que desabava sobre ele. Era Bola que acabara de tropeçar.
   - Que está acontecendo aí, isso aqui é um assalto ou uma carnificina? – Interroga Bola, aturdido, aos seus amigos.
   O imprevisto havia acontecido e a vida de cada um deles estava em suas mãos, cabia a cada um tomar a decisão. Paco havia tomado a sua e, com a sua decisão, mudou o destino de todos. Após Paco amarrar o caixa, Neto pegou sua arma que havia caído no choque. Com aquele movimento, Neto selou seu destino. Paco não hesitou quando viu Neto com a arma na mão. Apontou-lhe seu revolver sem esboçar nenhum sentimento, a não ser raiva. Instantaneamente, Neto também lhe apontou a sua. Os dois frente a frente, de arma em punho, duelavam.
   - Seu merda, por que atravessou o meu caminho? – Paco esbravejou.
   - Não havia necessidade de matá-lo. – Neto demonstrava serenidade.
   - Agora o bostinha vai dar um de bom samaritano. O merdinha escolheu o crime como opção de vida e agora se acha defensor dos fracos e oprimidos. Há, há, há, me poupe bosta ambulante.
   - Ele é um ser humano...
   - Chega de bobagens, seu riquinho de merda. Por que então você está aqui?
   - Você sabe muito bem, Paco. A culpa é sua.
   - Não me culpa pela tua escolha, seu merdinha filho de papai. O seu erro é fruto somente da sua escolha. Você que subiu o morro atrás de drogas, não fui eu que desci.
   - Meu fascínio pelo crime foi devido à ilusão que você me passou...
   - Chega desse papo. Você já me atrapalhou muito.
   - Se atrapalhei é porque não havia necessidade de você tirar a vida do cara.
   - Não havia, não havia. – Paco imita a voz de Neto. – Chega de bobagens. Para você que nasceu bem, afinal seus pais são ricos, é fácil ter dó dos outros. E eu que vi só pobreza, pergunta-me se alguém teve dó de mim, se teve dó dos meus pais. Meu pai, aos trinta e cinco anos, foi mandado embora do emprego, não conseguiu outro porque estava velho e, além disso, era discriminado por ser negro e favelado...
   - Isso não lhe dá o direito de matar alguém.
   - Cala a tua boca que eu ainda não terminei. Envergonhado, meu pai abandonou a família, entregou-se a bebida e morreu. Alguém teve dó dele? Não. Vivemos num mundo egoísta, onde ninguém dá a mínima para sua dor. Minha mãe foi obrigada a trabalhar de empregada doméstica. Um mês, exato um mês de trabalho, o sacana do seu patrão tentou estuprá-la. Ela o denunciou, o delegado disse que não podia fazer nada, pois ela não tinha testemunha. Na segunda tentativa de estupro, ela o matou. De desgosto, minha mãe, morreu na prisão. Aos dez anos, sozinho no mundo, não tive assistência do estado, só quem olhou para mim foi o traficante da favela que eu morava. E estou aqui vivenciando minha dor todos os dias e você vem me falar de dó. Só há um sentimento em mim: “Ódio”. Agora abaixa sua arma.
   Foi o erro de Neto. Ao abaixar a arma, Paco com um tiro estourou seus miolos. Caído no chão, como último espasmo, riu. Ao se virar, Paco percebeu que ao cair, Neto soltou-se de sua arma, e esta já estava na mão do caixa que havia se soltado das cordas. Paco só sentiu o impacto das balas no seu corpo para perceber que chegara seu fim. Disse suas últimas palavras:
   - Seu merda.
   Bola, desesperado, entrou na loja quando foi surpreendido pelo caixa que disparou sua arma, mas não tinha mais balas. Riso sarcástico, Bola abaixou-se, encostou seus lábios próximos da orelha do caixa e sussurrou:
   - Seu terror vai começar agora. Sabe por que eu estava lá fora? Porque eles tinham medo de eu estragar tudo, pois dos três eu sou o mais malvado.
   O caixa tentou falar alguma coisa. O medo o impediu e ele engasgou com sua própria saliva.
   - Eu quero a chave do cofre. – Agora Bola gritava.
   - Não está comigo. – O caixa conseguiu atinar as palavras.
   A orelha esquerda do caixa foi arrancada, com um tiro a queima roupa, dado por Bola.
   - Eu quero a chave do cofre.- Disse Bola aos berros.
   - Não...
   Bola não deixou ele completar a frase e deu-lhe um tiro na perna esquerda. Quando Bola lhe apontou a arma na direção da sua cabeça, o caixa apontou à esquerda do balcão. Era o local onde estava a chave.
   - Imbecil, não havia necessidade de lhe arrancar a orelha e nem quebrar sua perna. Vou lhe aliviar a dor. Vá para o inferno!
   O estampido do descarrego da arma é ouvido em toda a loja. Bola abre o cofre, põe tudo que tem valor numa sacola e sai em disparada com o carro. Após meia hora dirigindo, ele liga o rádio do carro:
   “Aqui é Amari Terra falando da periferia de São Paulo. Mais um assalto seguido de morte. Por que São Paulo está violenta? A resposta talvez esteja na impunidade que os infratores gozam. Em um país onde os mandatários, que são responsáveis em manter a ordem e a lei, são os primeiros a deixar roubar ou, eles próprios, a roubarem. Em um país onde deputados são pego em ato de corrupção, absolvidos pelos seus pares, só pode passar a sociedade que o crime compensa. Daí advém toda violência que nasce e cresce assustadoramente em São Paulo. Amari Terra falou para o programa Violência Urbana direto da periferia de São Paulo. Bom Dia”.
   - Seus trouxas. – Bola desligou o rádio. 

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terça-feira, 15 de novembro de 2011

Cuidado com o que pede a Deus, senão adeus

     Diz o dito popular que a curiosidade matou o gato, mas cá pra nós, se não fosse a curiosidade, não a do gato é lógico, mas sim a do homem, hoje estaríamos a cozinhar em forno a lenha, a escrever em pedras e a ler e comer com o lume da candeia, e indo mais longe, repito, se não fosse a curiosidade humana em saber de onde viemos e para onde vamos, a saber, não teríamos descoberto Deus, pois de nós ele há muito tempo sabia, afinal tudo que é havido e tido é por obra dele.
     Nós escritores temos a curiosidade no sangue, pois de onde tiraríamos as personagens senão curiando os outros, afinal escrever é cochichar por palavras a vida dos outros. Outro dito popular diz que quem cochicha o rabo espicha. Como a curiosidade é sempiterna em relação aos outros, quer entre escritores ou não, nunca reparei o quanto espichado se encontra o meu rabo, se ele em mim houver.
     Por isso, nobre leitor, o convido a espichar o pescoço para dar uma curiada em José e Maria que neste exato momento travam um diálogo existencial. Adentramos a casa deles, mais precisamente o seu quarto. Veja caro leitor, Maria está nua, quase em prantos; José está nu, totalmente em prantos, cabisbaixo, a olhar por entre suas pernas, Ele, esmorecido, mole, motivo de suas lágrimas e a das quase de Maria.
     “De que me vale tuas lágrimas José, diz Maria”. As lágrimas não são para tu, mulher, mas sim por Ele, por Ele estar morto, inútil. “Morto estás tu, homem”. Ele pode estar morto, mas eu não, mulher. “Estando Ele morto de nada me vale você vivo”. Como diz, mulher. “Se tu não podes matar minha fome, morta estarei eu, homem”. Então é para isso que te sirvo. “Serve-me também para fazer e guardar as compras, abrir uma garrafa, uma lata; mas de que me vale a comida que me entra pela boca se do outro alimento que aviva a alma, tu não me tens serventia”. Agora minhas lágrimas são pelas tuas palavras, mulher. “Lágrimas, lágrimas...”. Não grite, mulher. Alguém pode ouvir-nos. “Deixe ouvir-nos, quem sabe não estejam passando o que estamos passando”. Se estiverem não ouço gritos. “E eu lágrimas”. O que tu queres que eu faça. “Toma catuaba, coma amendoim...”. Eu já fiz isso. “Então, homem, reza por um milagre”. Que Deus te ouça, que Deus te ouça.
     Nós humanos, incluso o escritor destas linhas, achamos que Deus esteja a resolver os problemas da carne, como se os da alma não o desse tanto trabalho. Se assim ele agisse, cegos enxergariam, aleijados andariam, apesar de que a igreja católica vende o milagre para salvação tanto anímico quanto corpóreo, e hoje, como tudo evolui, são os evangélicos que fazem, por si próprio, o próprio milagre.
     Deixando de lado o adendo que em nada esclarece a história, seguimos curiando e cochichando, posto que não morremos por não sermos gato, e nem o rabo espichará por rabo não termos, ainda que em nossa terra, mulher para ser gata tem que ter um belo rabo, mas isso é outra história.
     Fosse como fosse, lá estava Maria de joelhos a rezar, enquanto José, no banheiro, folheava uma daquelas revistas em que gatas, ou seja, mulheres mostravam os atributos que tão bem é a cara do Brasil, e a Ele elevava quando Ele vivo era. Caro leitor importa mais para nossa história saber se as preces rogadas aos céus por Maria serão atendidas do que a mão-de-obra que José está tendo no banheiro, portanto curíamos Maria.
     “Pai elevadíssimo que estás no céu como na terra, criador de tudo que há, fizeste, por bem, ao criar o macho ter criado a fêmea, posto que tudo é dual. Pai, por isso lhe peço ajuda, faça com que meu marido volta a ser o que era antes, ou seja, fazei com que Ele renasça, porque se assim não for, morta sempre estarei, ou então, Pai, leva-me para a morada eterna”.
     Como não podemos curiar o que Deus faz por ele estar em todos os lugares e ao mesmo tempo em lugar nenhum, por mais paradoxal que seja, ou seja, se ele está, como ao mesmo tempo pode não estar. Para que fique entendido, ele deixa de estar, mesmo estando, quando nós nele não acreditamos. Posto isto, é dito que ele escreve certo por linhas tortas, então curíamos José para ver se as linhas tortas têm a certeza da escrita.
     “Mulher, milagre, Ele está vivo de novo. Graças a Juliana Paes”. Não blasfema, homem. O milagre é de Deus. “Sim, e que barro maravilhoso ele deve ter usado para fazê-la”. Foi minhas preces, tolo homem. Joga a revista fora. Deus pôs as mãos sobre tu, quero dizer, sobre Ele. “Não importa se foi Deus ou a deusa, o que importa é regalarmos”.
     Caros leitores cabem a nós, agora, deitarmos as pálpebras, pois se assim não fizermos, não estaremos mais matando nossa curiosidade, mas sim praticando voyeurismo. Deixamos José fazer uso do ressuscitado e Maria tirar proveito do mesmo, mas se há algum voyeurista entre os meus leitores, que fique à vontade e se apeteça, quanto a mim, eu darei aos olhos o desejo do sonolento, o descanso. Por isso não haverá nenhum relato do regalo dos dois, deixo a cargo da imaginação de cada um.
     Como foi dito que Deus escreve por linhas tortas, e que ele está mais a cuidar dos problemas da alma do que os da carne, o que o levou a ressuscitar o quê morto em José estava. Dito isso, cabe a nós investigarmos. Como já passaram mais de dez horas que José e Maria estão trancados, houve tempo suficiente para que eles regalassem, e como não ouvimos mais gemidos, nem ais e nem uis, abrimos os olhos e voltamos a curiar.
     Lá está Jose, feliz, com Ele ainda hirto após tantas horas de regalo; isso só é humanamente possível devido aos milagres de Deus. No seu rosto permanecia um sorriso brando, tal qual no de Lázaro ao ver o mundo novamente após Jesus tê-lo ressuscitado. No rosto de Maria havia uma serenidade, um contentamento desenfreado, um esticar de lábios de uma orelha a outra, tal qual criança sobre bolas de sorvete, com a boca lambuzada pela massa, a escorrer gelada pelo queixo.
     A história poderia terminar aqui com um final feliz, mas como sabemos que a vida está mais para um drama shakespeariano do que um romance açucarado, vide a história de Jesus, temos de desentortar as linhas para ver o quanto Deus escreve certo.
     Maria, mesmo com a fome saciada, queria mais e mais. A fome como a sede tem de ser controlada, pois o sedento de tanto ir ao cântaro acaba quebrando-o, e o esfomeado empanzinado.
     Ouvem-se, novamente, os gemidos de Maria. Mas os uis e ais agora eram de dor. Uma dor forte no coração. O regalo em demasia, a sede em excesso, a fome desenfreada fez com que Maria fosse ao cântaro, ao prato e a cama sem rédeas, a levando à morte. José chorava, não a morte de Maria, pois com os atributos que ele tinha, muitas Marias haveria de ter. Mas não, o seu choro era por os atributos não mais ter, por Ele morto, novamente, estar. Não houve outra solução para José do que pegar a revista e esperar que Juliana Paes fizesse, novamente, o milagre. Ele fez uso das mãos, para folhear a revista e para tentar dar vida a Ele.

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sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Vindo à luz - Final


    Pesadelos? Visões? Delírios alcoólicos? Quanto mais pergunta fazia a si, mais acelerado girava a sala, mormente se era sobre o ocorrido ali; contudo ao aquiescer os seus pensamentos, a sala parou de girar, e ele tomou o seu caminho.

    Desolado pelas vidas perdidas, o médico junta as palmas das mãos, encosta as pontas dos dedos indicadores nos lábios, descerra os olhos, pede o desfibrilador e o usa mais uma vez. A descarga elétrica no tórax da quarta vítima faz com que o seu corpo erga-se alguns milímetros e desaba em seguida na maca.
    Com o olhar consternado, no aparelho que mede os batimentos cardíacos, o médico vê no monitor a linha que seguia reta dar um salto, subindo e descendo ininterruptamente. A vida havia tomado o caminho de volta àquele corpo.

    A inquietude não o atacava quando estava nervoso, nem lhe tirava o discernimento para o julgamento, mesmo que fosse somente a tristeza que ele carregava nos olhos por ter provocado a morte dos seus três amigos. Havia marcas que ele levava consigo, invisíveis à primeira vista, inapagáveis, aprisionando-o, fazendo se perguntar o porquê de ter sobrevivido.
    Havia, também, uma mansidão oculta nos seu olhar; uma quietude lânguida perscrutando a sua alma; uma paz de espírito desejando aflorar, porém, um sopro duvidoso silabava na sua mente, mais do que o julgando, o acusando e o condenando. Sem quem o defendesse e lhe desse respostas, ou seja, absolvição, ele vivia em estado de nervosismo constante.
    Ele entrou em uma cafeteria e, sorrindo para si, pensou que as dúvidas tidas antes o levariam a um bar. Ao entrar, ele olhou de soslaio, reparou que o ambiente era lúgubre; diversas velas bruxuleavam em candelabros de bronze, o ar era impregnado com aroma de incenso de sândalo e um balsâmico desconhecido de seu olfato. Ele sentou em uma cadeira rústica - cuja madeira exalava o seu perfume como se tivesse sido cortada agora -, do lado esquerdo, contrário a porta de entrada. Na penumbra, ele não conseguiu divisar a fisionomia do atendente que lhe trouxe o chá pedido, mormente o mesmo estava encapuzado. Ele fechou os olhos, levou a xícara ao nariz para sentir o aroma do chá, era perfumado; provou-o degustando o seu sabor floral e adocicado. Teve a impressão de estar tomando a bebida dos deuses. O chá lhe trouxe uma tranquilidade nunca antes experimentada, como se lhe tirasse todas as dúvidas, absolvesse-o. Foi uma sensação estranha, de leveza, como se seu corpo tivesse perdido toda a massa e somente lhe restasse a alma. Ele levantou para perguntar ao atendente o nome do chá. Repentinamente, ele não conseguiu enxergar mais nada, uma luz rara e intensa irradiava do corpo do atendente.
    Os seus olhos não havia se acostumado ainda com a mudança de luminosidade, da penumbra angustiante à claridade ofuscante; porém, ao acostumar-se, seu cérebro foi delineando a imagem diante de si. Ele tentou correr, mas suas pernas não obedeciam ao seu desejo. Prostrou na cadeira com os cotovelos sobre os joelhos, as palmas das mãos sob o queixo e fitou os seis velhinhos diante de si, sentados a sua volta, a meia altura. Neste momento ele percebeu que andava em círculos e caía sempre no mesmo lugar. Um filete aquoso e morno lhe descia por entre as coxas como se uma veia houvesse estourado e expelisse em gotas o sangue. Ele abaixou a cabeça para localizar o sangramento, pois não sentia nenhuma dor. Fruto do seu medo, a urina lhe escorria pelas pernas sem ele ter percebido.

    Ele acordou assustado, sentindo golpes de água fria lhe tomando o rosto, e um filete de água morna lhe escorrendo pelas coxas. Desperto, ele vê a sua esposa agachar com dificuldade colocando o balde vazio no chão, erguer-se apoiando na cabeceira da cama, pois a barriga de, aproximadamente, quarenta semanas era um peso insuportável para o seu corpo magérrimo. Inquietou ao vê-la se dirigir a cozinha, pegar o bule esfumando e derramar em uma xícara um líquido que devido à distância não dava para definir cor e sabor. Apoiando-se no criado-mudo, ela sentou na cama oferecendo-lhe a xícara, pediu-lhe desculpas por ter usado água fria após várias tentativas de acordá-lo, pois esta foi a solução mais plausível devido a urgência de despertá-lo.
    No primeiro momento, ele não sentiu nem o aroma, nem o sabor do chá, sem saber se fora devido ao susto do despertar, ou ao medo pelo pesadelo. Refeito, os seus sentidos não o deixaria despercebido. A cor do chá era róseo, o aroma perfumado, o sabor floral e adocicado. Assustado, por o chá ter as mesmas características do que tomou na cafeteria, ele, desesperadamente, quis saber de sua esposa aonde ela o tinha conseguido. Ela lhe disse que seis velhinhos o havia ofertado como agradecimento por ela ter lhes dado esmolas. Ele não teve tempo de digerir aquela informação, pois a sua esposa, devido ao esforço ao jogar o balde de água fria, segurava com as duas mãos a barriga, e, assustada, olhava para o chão a poça de água formada em volta de seus pés. A bolsa havia estourada, sua filha vinha à luz. 

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