Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

sábado, 28 de setembro de 2013

A família encantada - Primeira página

Toda bola de gude sonha em permanecer na mão de um menino, pois sabe que ao ser jogada no chão deixará rastros a serem perseguidos por ele. Assim, a história de ambos será escrita pelos rastros percorridos. Contudo, nem todas as certezas são compartilhadas por todos, menos ainda quando se tratam das certezas de uma bola de gude.

Quando ouviu o Senhor do tempo dizer-lhe: “Segue o seu destino Cacau...”, a bola de gude sabia que havia chegado a hora em que ele se transformaria em um rapaz. No entanto, assegurava-se que, enquanto nas mãos do rapaz estivesse, sentiria nas suas linhas a essência do menino.

Foi com um sobressalto que a bola de gude notou que escapava da mão esquerda de Cacau, e, naquele instante, teve a certeza de que nunca mais percorreria as linhas de suas mãos. A bola de gude rolou até a bicicleta e disse-lhe:

- Seremos esquecidas. Você enferrujará e eu trincarei, não pelas dobras do tempo, mas pelo esquecimento.

Incrédula, a bicicleta olhou para a bola de gude, depois para os dois. Eles de mãos dadas e olhinhos brilhantes, como a enxergar a vida mais colorida, não os viam.

 - Será? Por que você diz isso?

- Você não percebeu bicicleta. O encanto dele agora é ela.

A bicicleta girou o guidom em direção a eles, depois em direção a bola de gude, a eles novamente e por fim disse:

- Você está é como ciúmes da Mel.

A bola de gude olhou para a bicicleta bufando, depois pondo os olhos na Mel disse:

- Mel só mesmo no nome, mas ela não é nem um pouco doce.

- Não precisa dizer mais nada. Isso não passa de ciúmes e despeito por não ser mais queridinha do Cacau.

A bola de gude virou as costas para a bicicleta entristecida e não olhou mais em direção a Mel e ao Cacau.

O céu não era o mais o mesmo, e mesmo que fosse, as suas cores eram mais intensas; o brilho das estrelas fulgia mais demoradamente; os raios solares irradiavam em uma só direção, trazendo-lhes alegria; a lua, não importa qual fase, estava sempre cheia; o aroma trazido pelos ventos, em quaisquer das estações, era primaveril.

Continua quarta às 18hs00min


TEXTO DE ÁGUA E ÓLEO MISTURADOS

AUTORES:



Água: Déia Tolda

Óleo: Eder Ribeiro 

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quarta-feira, 25 de setembro de 2013

A vida me ensina IV

Reflitam sobre essa cena: Uma grávida entra no transporte público e os assentos para especiais estavam ocupados por uma idosa e uma adolescente com deficiência auditiva. A acompanhante da deficiente auditiva se dirige para a grávida e fala que a mesma é especial.
Uma pergunta tola: O assento melhorará a acuidade auditiva da especial adolescente?
A ignorância encontra solo fértil onde prevalece a falta de bom senso e germina com a falta de amor ao próximo.
Em tempo, uma pessoa amável que estava num assento que não é reservado para especiais cedeu o seu lugar. A acompanhante e a especial adolescente seguiram a viagem conversando pela língua dos sinais.

Lição:um gesto de amor vale por qualquer palavra, não importa a língua que se fala.

Por falar em amor, o nascedouro desse sentimento é na família, portanto, olha o que vem por aí:

"Toda bola de gude sonha em permanecer na mão de um menino, pois sabe que ao ser jogada no chão deixará rastros a serem perseguidos por ele. Assim, a história de ambos será escrita pelos rastros percorridos. Contudo, nem todas as certezas são compartilhadas por todos, menos ainda quando se tratam das certezas de uma bola de gude".

Aguarde o próximo conto de Água e Óleo misturados, A família encantada.

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domingo, 22 de setembro de 2013

O menino encantado - Última página

Ouvindo essas palavras, sua visão ficou turva, o chão começou a girar e perdeu a estabilidade. Perdeu a noção do tempo e, quando deu por si, estava deitado, melhor dizendo, caído, no chão. Abrindo os olhos, pode ver o halo do sol, quase lhe cegando, e cachos acobreados pendendo de um rosto de anjo. Será que estou no céu?

- Cacau? Cacau! Acho que ele está acordando!

A menina riu, puxou seu corpo para deitar sua cabeça em seu colo, e lhe disse assim:

- Você é o Cacau, não é? Minha mãe é muito amiga da sua, e me pediu para vir aqui na sua casa lhe mostrar minha bicicleta nova. Você queria ganhar uma dessas, não é? Vim lhe emprestar a minha, mas, quando vinha passando vi sua bola de capotão cair bem no meio de sua cabeça e você, desabando no chão. Ai, menino, que susto!

- Menino não, corrigiu ele. Rapaz. O meu nome você já sabe. E o seu, posso saber? Ainda tonto, não acreditou quando ouviu o que ele próprio havia dito.

Enrubesceu-se a menina, e respondeu assim:

- Muito prazer, Cacau. O meu nome é Mel...

E foi quando uma bolinha de gude escapou da mão esquerda daquele rapaz, e foi juntar-se à roda, aro 26, de uma certa bicicleta azul coberta de girassóis.


- Oi Vó! O que você está fazendo?

- Oi meu neto! Preparando seu café, ora essa! E rindo, aquela risada gostosa que sempre fora a marca registrada de Mel, continuou a prepará-lo. Vitor, seu avô está lhe preparando uma surpresa, vá lá fora para recebê-la. Vovó já vai logo atrás.

Vitor saiu da casa em direção à garagem, e encontrou um envelhecido Cacau com linha e agulha nas mãos, pelejando com uma antiga bola de capotão.

- Vô! É para mim? Correndo, pulou no colo de Cacau que rapidamente pousou a agulha longe e agradeceu a falta de sono que o fez começar a empreitada muito mais cedo naquele dia. 

- É sim, Vitor! Você gosta de futebol?

- Amo, Vô! Quando eu crescer vou querer ser zagueiro!

- Ah, mas um zagueiro não nasce pronto, precisa de treino. E eu vou lhe contar um segredo: está vendo essa bola aqui? Ela é mágica. Não ria, não estou brincando, não. Existe uma formiga, mas não uma formiga qualquer, uma formiga encantada, que é guardiã de um portal mágico. Essa formiga chama-se Baba, e, se o Senhor do tempo percebe que algo precisa ser concertado, ele envia sua fiel embaixatriz para que, através dessa bola, leve quem dele precisa de ajuda até a sua presença.

Essa bola foi do seu bisavô, que por sua vez a ganhou de seu tataravô.

Olhos arregalados, Vítor encantou-se com a história de bichos, portais e magia que o avô lhe contava.

- E é minha agora, Vô?

- Só se eu puder treinar junto - para garantir que se Baba voltar, terei chance de lhe dar um abraço e agradecer por tudo que ela fez em minha vida...

- Oi pai, oi mãe! Fauser chega com sua esposa, Carolina. O café está pronto, mãe?

- Quase pronto meu amor! Oi Carol! Usou aquele vestido lindo que compramos juntas ontem à noite?

As duas mulheres entram para a cozinha, finalizando os preparativos da mesa lindamente composta para uma refeição considerada banal. Mas, naquele família, nenhum tempo passado juntos era banal.

Fauser reconhece a bola de capotão que Vítor segura em suas mãos, e, com o coração apertado, procura nos olhos do pai a confirmação do que acontecia. Em um sorriso, Cacau entrega ao filho que a mágica estava finalmente passando de mãos.

- Vô, chuta a bola para mim?

- Claro, Vítor. Mel, oh Mel você não disse que havia guardado algo, também, para dar ao Fauser?

Mel e Carol saem da casa, sorrisos, mãos carinhosas. Duas mães em sua plenitude!

Posicionada ao lado de seu grande amor da vida toda, antes de Cacau acertar o chute na bola, Mel sussurra-lhe em seu ouvido: "Menino bobo".

Cacau a olha com a ternura daqueles que muito cedo encontraram o amor de sua vida. Segura-lhe a mão, como fizera na margem do rio a primeira vez que se beijaram.

Mira na bola e acerta o chute. Mas não foi isso que surpreendeu Fauser. No momento que virou-se para exaltar a boa pontaria do pai, que ele teve a honra de poder comprovar nos muitos anos que se sucederam àquela noite encantada com Baba, viu não o senhor a quem tanto amava, mas sim um menino, de não mais de dez anos.

Ao seu lado, uma menina linda, de mãos dadas com ele, anda em direção a Fauser, e lhe rola uma bola de gude toda trincada, mas que, ao chegar em suas mãos, está redonda, polida, como nova.

Saem caminhando, lado a lado, dois jovens, enamorados, com a vida toda pela frente. A observá-los, Baba e o Senhor do tempo. Em sua forma de formiga, agarrada ao manto do Senhor do tempo, Baba pergunta o motivo de remoçá-los.

- Amor igual ao deles tem que ser revivido sempre.

- Mas eles erraram ao abandonar o filho, não se lembra? Se não fossemos nós, a história seria contada tão diferente...

- Formiga, entenda uma coisa, o acerto não advém de pensarmos que estamos acertando, mas se tivermos a humildade de reconhecer que o erro nos proporciona o aprendizado, então, estaremos no caminho certo.

Olhando para trás a formiga piscou o olho esquerdo. Cacau e Mel responderam rindo, certos de que viverão felizes para sempre.

TEXTO DE ÁGUA E ÓLEO MISTURADOS

E a história não termina aqui, não perca A família encantada. Aguardem.



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Água: Déia Tolda

Óleo: Eder Ribeiro 

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quarta-feira, 18 de setembro de 2013

O menino encantado - Quarta página



Olhando com mais atenção, pode ver novamente o halo do Sol, brilhante, e, como se saísse dele, um senhor, encurvado, mas inspirando muito respeito, que se encaminhou em sua direção. Disse-lhe:

- Ficamos todos muito orgulhosos do seu gesto ainda há pouco, rapaz.

Encabulado, o menino respondeu:

- Meu eu não sou rapaz, sou menino...

O senhor riu, deixando entrever dentes tão branquinhos que pareciam uma fileira de pérolas, e continuou, como se nada tivesse sido dito.

- Sabe, meu rapaz, há muito tempo que lhe observo. Vi seu nascimento, acompanhei quando começou a engatinhar. Estive ao seu lado quando tentava firmar suas pernas, e vibrei quando o vi pela primeira vez com sua bola de gude nas mãos. Você se lembra de quem a ganhou?

- Do meu avô... Engraçado, agora que o senhor falou nisso, sinto mesmo que já o conheço. Como se sempre, por perto, tivesse estado. Somos parentes? Por acaso vizinhos?

- Eu sou o Tempo, meu jovem, e decidi trazê-lo aqui para que você pudesse dar um passo importante em sua vida.

Foi quando o menino viu um garoto menor do que ele, de short, sem camiseta, chinelinho nos pés, correndo porta a fora, exultante com seu prêmio, bem apertado, dos perigos guardados, entre suas mãos. 

E o menino assistiu, como se sentado estivesse em um cinema, a si mesmo em seus tenros anos. A bola de gude, brilhando, novinha em folha. Sua paciência ao lançá-la e esperar que ela voltasse. O canto do pássaro, levado longe pelas ondas do vento. Menino bobo...

O Senhor do Tempo acelerou a imagem, e o menino pode assistir ao dia em que havia trocado o brinquedo pela arma, e acertado seu irmão. Percebeu mesmo que o moleque não tivera intenção em assustá-lo. Um pouco mais adiante, e pode ver a preocupação de seus pais, desprovidos de recursos para presenteá-lo com a tão sonhada bicicleta.

Eu não imaginava, foi tudo o que passou por sua cabecinha transtornada. 

As imagens se seguiam. Ele saindo de casa, não se despedindo da mãe. Ela, entristecida, perguntando ao pai se o filho teria entendido o gesto carinhoso contido na entrega da bola de capotão que era como um pedaço de seu avô. Um pedaço que, por muitos anos, fora guardado por seu pai, com o amor de quem não pode abandonar um objeto tão importante.

A alegria dos pais, e do irmão, quando ele rompeu porta a dentro, encabulado, desculpando-se pela maldade praticada e agradecendo pelo presente que ganhara. Pode ouvir o som de papéis de embrulho sendo rasgados em outras casas, e a alegria genuína de Natal alastrando-se pelo ar, levada nas asas do canário de plumagem amarela...

A máquina do tempo fez um barulho fora de tom e as imagens aceleraram até o ponto em que o menino não reconhecia mais a si mesmo. Estava maior, parecia mais velho. O coração, contudo, descompassou como criança quando viu seu sonho passando em frente a seus olhos: a bicicleta azul com aros amarelos e selim grafitado de girassóis. Exceto que... Estava sendo pedalada por uma menina.

Sem perceber, seu queixo ficou pesado como pedra e pendeu-se, aberto, enquanto olhava, não mais a bicicleta, mas aquela doce criatura que em seu selim sentava. Os cabelos cacheados, de um tom acobreado que ganhavam mais brilho com os raios de sol, a pele sardenta de quem já tomara muito sol, a regata que revelava o ombro e a sandália de couro cru que deixava seus dedinhos tão delicados à mostra.

Olhou novamente para o Senhor do tempo, começando a entender o motivo de tudo aquilo. Mas, temeroso de deixar qualquer detalhe escapar, foi com paciência que esperou que voltassem a lhe falar.

Subindo as roupas do velho, sorria a formiga, e, no caminho que percorria, dobras acima, disse-lhe assim:

- Percebe porque lhe chamamos de rapaz? Já é hora de perseguir outros objetivos. Você provou que tem o coração bom, apesar de sua teimosia inicial. Agora, persegue a bicicleta dos seus sonhos. Ela carrega a chave para o seu futuro.

Com semblante ainda confuso, com medo de deixar um pedaço seu tão importante para trás, foi com alívio que ouviu as palavras finais ditas pelo Senhor:

- Rapaz, entendo o seu medo de deixar a meninice para trás. Não tema! Vou lhe contar um segredo, uma palavra mágica, que trará grande conforto ao seu coração. Por ela, fará grandes obras, mas encontrará sempre o caminho para esse tempo encantado.


Segue o seu destino CACAU...

Continua domingo às 8hs00min
  
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Água: Déia Tolda

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domingo, 15 de setembro de 2013

O menino encantado - Terceira página



Quando o menino olhou para baixo, uma formiga sorridente com as antenas vibrando de emoção lhe disse: Oi! 



Ainda que assustado, não se impressionou como da outra vez. Usando as costas da mão para enxugar as lágrimas, o menino logo lhe contou o motivo de tanta tristeza.



- Foi isso? Simples de resolver! Vá lá dentro, peça perdão aos seus pais e, principalmente, ao seu irmão. Quando voltar não se esqueça de trazer a bola de capotão do seu avô.



- Como você sabe que é dele?



- Essa é outra história que não me cabe contar.



- Posso trazer, também, a bola de gude?



- Sim. Depressa! O portal vai fechar a meia-noite.



Portal? Não entendendo muito o quê estava acontecendo, mas temendo estragar a situação mágica em que se encontrava, não titubeou. Girou em seus calcanhares e correu para dentro de casa.



Quando voltou era outro menino, saltitando, feliz, nada tinha de rapaz.



- Agora, chuta a bola para mim. – pediu a formiga. O menino ficou preocupado, achando que iria esmagar a pobrezinha. Mas, fez como ela havia mandado.



Na vez da formiga devolver a bola, ao invés de chutá-la de volta para o menino, chutou-a para cima.



- No três pulamos.



- Em quê? – perguntou o menino.



- Na bola, ora!



- Qual bola? Você a despachou para o alto!



- Mais atenção menino! Não vê que ela já está descendo? Um, dois, três.



- Espera, minha bola de gude caiu!



A formiga agarrou na perna da calça do menino e chutou a bola de gude para o alto. O menino, com a mão esquerda, pegou-a e guardou-a no bolso da camisa. 



E, assim, a viagem começou tranquila. 

O menino ficou decepcionado quando abriu os olhos.



- Mas estamos exatamente no mesmo lugar!



A formiga, mais do que depressa respondeu:



- Menino, não foi o lugar que mudou, e sim o tempo.


Continua quarta-feira às 18hs00min
 
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Água: Déia Tolda

Óleo: Eder Ribeiro

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quarta-feira, 11 de setembro de 2013

O menino encantado - Segunda página




A formiga lá já não estava, mas, para seu azar, o seu irmão, que havia saído detrás da moita, estava. Rindo desmedidamente, seu irmão repetiu a frase que tanto o apavorara: rapaz bobo, não está me vendo? E, continuando o escárnio, emendou: Você achou que fora a formiga a falar contigo? O deboche crescia, até a gargalhada tomar conta de todos os sentidos do menino.



O menino não pensou duas vezes. A bola de gude foi jogada no chão e substituída por um pedregulho, habilmente lançado em direção ao irmão, que, a essa altura, já havia trocado o riso pelos pés, e saído desembestado, rumo ao horizonte. 



Mesmo longe, foi claro o barulho do pedregulho batendo no calcanhar do irmão. Podia sentir o sangue escorrer e viu o seu corpo desabar no chão. Pronto. Naquele instante o menino percebeu que havia acabado com qualquer chance de ganhar a tão desejada bicicleta de Natal. Aquela que ele havia pedido em sua cartinha ao papai Noel, dois meses antes.



De nada lhe adiantou mergulhar o mais fundo que pode e arrancar a melhor argila no barranco do rio para o feitio dos bonecos do presépio. De pouco lhe adiantou modelar o menino Jesus – esta era a sua tarefa em todos os natais - pois pior ficou. Nervoso, o menino Jesus saiu imperfeito, uma perna maior do que a outra, os braços tortos e a cabeça maior do que o corpo. 



Em nenhum momento passou por sua cabeça desculpar-se com seu irmão. Ora, ele havia lhe pregado uma peça, por que motivo deveria se desculpar com ele? Ele não entendeu que deveria pedir perdão ao irmão devido à maldade praticada, e que os atos bondosos, por si só, não fariam com que reconquistasse a bicicleta, pois atos bons são a conduta esperada de toda criança.



Frustrado, ele passou pela sala sem reparar na árvore de Natal montada, pela cozinha despercebido da mãe, que estava temperando o pernil ao mesmo tempo em que fritava a rabanada para o dia seguinte, do jeito que seu pai preferia. O clima da casa era de Natal, o dele de velório.



A alegria, realmente, somente toma conta da casa quando as crianças avançam embaixo da árvore para retirarem os seus respectivos presentes deixados por papai Noel. Para os pais não há satisfação maior do que ouvir o barulho de papel rasgando e a amplificação da alegria no riso das crianças.



Por isso, foi com imensa euforia que seus pais esperaram o dia de Natal. E este, finalmente, chegou. Foi o menino até a árvore carregando uma tristeza desmedida, chutando o ar por saber que a bicicleta não estaria lá. Olhou o relógio e ouviu as engrenagens que movimentam os ponteiros moverem-se lentamente, aumentando a distância que os segundos levam para passarem, e com isso, sua dor tomava dimensões imensuráveis.



Ele foi o último a chegar à árvore, e o seu pacote redondo dava a impressão de que o seu presente seria uma bola. Contudo era mais do que isso, era “a bola” de capotão que pertenceu ao seu avô. Fosse a data outra, ele ficaria eufórico; no entanto, era Natal. 



E, no Natal, o presente a se receber precisava ser o que fora pedido no bilhete colocado na meia, endereçada a papai Noel. E ele sabia que papai Noel lera: “uma bicicleta azul com aros amarelos e selim grafitado de girassóis”. Era o seu presente de Natal. Nenhum outro.



Ele tamborilou a bola de capotão que pertenceu ao seu avô com todos os dedos da mão direita. Triste, um olhar sofrido tomou-lhe os olhos. A bola caiu de suas mãos rolando pelo chão de areia, ele a perseguiu com a vista e imaginou duas rodas, um aro, dois pedais, um guidom e um selim. 



Repentinamente seus pés pedalavam uma bicicleta azul com aros amarelos e selim grafitado de girassóis. Mas eram de outros olhos o sentimento de felicidade estampado nos seus.



Ele se sentou na calçada com a bola de capotão no colo, os dois cotovelos nos joelhos, o queixo nas palmas das mãos e trouxe os seus olhos sofridos de volta. Aos seus olhos vieram lágrimas e a tristeza de sempre.



 - Hei! Você está inundando o meu caminho.



Sem virar-se para trás, respondeu rispidamente:


- Pode parar, seu bobo. Você não me engana de novo.

- Como de novo se eu não te conheço?



- Tá bom! Você não me conhece, não conhece o seu irmão.



- Há! Há! Há! Se eu sou uma formiga e você um menino, me explica como podemos ser irmãos.



 - Formiga?!?!?!?!?!



Continua domingo às 8hs00min
 
TEXTO DE ÁGUA E ÓLEO MISTURADOS



AUTORES:

Água: Déia Tolda

Óleo: Eder Ribeiro 

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domingo, 8 de setembro de 2013

O menino encantado - Primeira página



Era uma vez, um menino que tamborilava com o dedo indicador sua bola de gude antes de jogá-la no chão, e se inquietava por ela não retornar à sua mão. A vida seguia o seu curso normal, a Terra girava em torno do Sol e a Lua em torno da Terra. Somente ao menino essa normalidade não era perceptível. Também pudera, ele tinha apenas três anos. 

O menino continuou no seu mundo silente, às vezes perturbado por um canário pousado em uma árvore, observando-o ali parado, sem entender por que ele esperava a bola de gude subir por sua própria vontade. O canário de plumagem amarela entoou uma canção, lhe dizendo, menino bobo, a bola não subirá. 

Outras vezes era perturbado pelo vento, que lhe dizia, suavemente por entre as moitas, não percebeu, menino bobo, a voz do canário que eu lhe trouxe? O liame do mundo real ao mundo encantado dos pássaros e vento, o menino só perceberia muitos anos depois.

O Senhor do tempo acionou a engrenagem, girando a roda do tempo, e o menino, acometido pela espera de algo que nunca aconteceria, continuou a tamborilar com o dedo indicador a bola de gude para depois jogá-la no chão. Esperou alguns segundos e, como ela não voltava, foi buscá-la, soltando-a em seguida, amiúde. Cansado, o Senhor do tempo deixou-o cobrir o menino com o manto do envelhecimento. 

Faltavam poucos dias para o Natal quando algo incrível aconteceu. Não foi exatamente como o menino queria, mas sim como ele menos imaginava.

Das coisas que fazemos quando criança, há pelo menos uma que nos acompanha pelo resto da vida, sem disso nos darmos conta. Por mais que o Senhor do tempo tivesse acionado a engrenagem do tempo, naquela cidade o que menos se notava era a passagem do mesmo. 

Estava lá a mesma árvore onde pousou o canário que entoou a canção levada pelo vento. Estavam lá, também, o mesmo canário de penugem amarela e o mesmo vento trazendo a voz desse canário dizendo, menino bobo, a bola não subirá. 

Somente o menino não era o mesmo. Já havia completado dez anos, e ainda trazia no bolso a mesma bola de gude, agora trincada pelo manto do envelhecimento. Era um rapaz (outrora fora menino, pois é da natureza o menino primeiro virar rapaz para depois virar homem), no entanto, mantinha-se, em seu interior, criança.

Ele soltou a bola de gude, esperou alguns segundos para que ela retornasse por vontade própria e, como não retornou, repetiu a mesma ação. Nunca deixou de ser menino, por isso, nunca deixou de ser feliz.

Rapaz bobo, não está me vendo? Quando ele ouviu essa voz, vinda não sabia de onde, meneou a cabeça procurando na mesma direção por sua bola. Não achou nem uma nem outra. Ao olhar para cima, o halo do sol no centro do céu cegou-o por uns instantes. Abaixando os olhos teve a impressão de ouvir uma formiga repetir: rapaz bobo, não está me vendo?

São as coincidências que trazem cores à vida. Pois, no exato momento em que ele soltou a bola de gude, uma formiga passava em direção ao formigueiro. Ao cair, a bola acionou o seu sistema de defesa avisando-a do perigo iminente. Alerta, a formiga parou, procurando saber de onde vinha a bola de gude. 

Ao mesmo tempo, a voz do irmão do rapaz surgiu atrás de uma moita dizendo, rapaz bobo, não está me vendo? A sincronicidade dos eventos não deixou margem de dúvida ao menino que, com os pés infrenes, associados ao medo, partiu em disparada, apavorado.

Repentinamente, a coragem o acometeu tão rápido quanto o medo, pois era necessário retornar para buscar a bola de gude que ele havia esquecido. Tomado dessa súbita valentia, voltou atrás, e, pegando a bola de gude, disse à formiga: eu não sou rapaz, sou um menino.


Continua quarta-feira às 18hs00min 

TEXTO DE ÁGUA E ÓLEO MISTURADOS

AUTORES:
Água: Déia Tolda
Óleo: Eder Ribeiro 

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quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Era uma vez...



Era uma vez um escritor de contos tristes. Ele tinha o dom de conhecer a morada final de cada um dos seus textos - e elas sempre provocavam lágrimas emocionadas nos olhos de quem as lesse. O começo, esse ele ia procurando. Às vezes, olhava embaixo dos bancos do ônibus que, diariamente, tomava. Encontrava uma tampinha de garrafa, duas moedas de vinte e cinco centavos e, surpresa, um bom começo para o final que já estava fadado.

Apesar de ser o final o seu começo, o escritor de contos tristes buscava outro fim, afinal o fim da vida, no fim das contas, por si só, já é triste. Ele ia tropeçando em “T”, “R”, “I” e “S”, e, por mais que tentasse desviar-se, não conseguia, pois os garranchos sobre a linha o levavam ao encontro, novamente, do “T”. Esse o impulsionava em um chute, como se as letras tivessem pernas, nos braços do “E”, “Z” e “A”. Seu ponto final era a desalegria. 

Do outro lado da mesma cidade, amanhecia a escritora dos contos de fadas. A ela cabiam todos os começos encantados. Ela sabia que, começando com "era uma vez" - fosse nas letras ou na imaginação - a própria história iria se encaminhar para um final feliz. Habitar o mundo da fantasia, da emoção que provoca alegria, essa era sua única regra para tudo o que escrevia.

E, num dia encantado, esses dois escritores "tropeçaram" um nas letras do outro. A Escritora, vaidosa, esticou o vestido, procurando, impacientemente, retirar-lhe os amassados. O Escritor riu, pela primeira vez, vendo graça na impaciência da menina encantada. A Escritora, virando a boca de lado, disfarçava, na verdade, um riso contido, encabulada que estava por ver tão profundo conhecedor das palavras ajudando-a a se equilibrar nas letras.

Os dois começaram a se conhecer. Viam-se através de suas linhas. Sentiam-se por meio de suas frases. A Escritora achava lindo o jeito que o Poeta contava aquelas tristezas. "quantas vidas podem caber nessas histórias?" O Escritor emocionava-se cada vez que a Poetisa semeava um "feliz" aqui e ali ao longo do seu texto. "quantas alegrias podem explodir nessas histórias?"

Vírgula. Era como se ele houvesse tropeçado em uma vírgula, escorregado sobre um til, e diante de um ponto de exclamação, ele, o ponto, significasse o que ele, o escritor, estava sentido ao ler o primeiro texto da escritora. 

O Escritor dos contos tristes buscou o abracadabra, o pirlimpimpim, o plunct, plact e zum. Ele queria uma palavra mágica que o transportasse para o mundo da Escritora de contos de fadas. Ou então, que uma lágrima sua fizesse surgir uma fada madrinha, que tornasse possível a fantasia de um ogro de se casar com uma princesa. 

Enfim, até a possibilidade de seus contos serem uma mentira, e talmente o boneco de madeira que ao parar de mentir se transforma em gente, os seus contos, sofrendo uma transformação, pudessem ter o seu "felizes para sempre". Mas qual o caminho, imaginado ou real, poderia levar à terra de Encanto?
A amizade foi se fortalecendo. E os textos, começaram a ser compartilhados. Como as reticências têm o significado de continuação, ele esperava que o texto dela assim terminasse para adentrá-lo, na esperança que o ponto final nunca fosse encontrado. Afinal o que queremos da vida, real ou imaginada, é um fim com um ponto de exclamação pós-posto a um "viveram felizes para sempre!"

Porém, uma pergunta cismava em angustiá-lo: seria possível adentrar o mundo encantado da escritora e vivenciá-lo? Cabia a escritora dizê-lo, ou quem sabe, escrevê-lo, porque ao Escritor não importava quantas vidas pudessem caber nessas histórias. O que importava, de fato, é que as histórias pudessem ser misturadas, tal qual água e óleo, pois somente na literatura essa possibilidade é plausível. Ou não? 

A Escritora, prosa que só, fazia-se de muito ocupada. Percebia a atenção que o Escritor lhe dispensava, mas, encabulada, não conseguia acreditar que alguém que escrevia sobre a vida de forma tão intensa, tão profunda, pudesse se interessar pelas palavras de sonhos e cantos que ela, tão inocente, contava. O escritor não sabia a admiração que a Escritora lhe tinha.

A Escritora foi percebendo, ao poucos, a alegria explodindo no rosto do Escritor após cada texto seu lido. Percebeu o quanto ele queria adentrar o seu mundo. Se ao menos ela lhe contasse como!

E ela lhe contou. A pequena Poetisa foi mostrando ao Escritor o poder contido nas palavras. Tanto na vida real, como na imaginada, a palavra pode obrar milagres. Não demorou muito para que as palavras nos textos da Escritora abrissem a porta que ele tanto ansiava. Ele passou a enxergar com os olhos da alma.

O Escritor, antes de contos tristes, ficou em pé para mergulhar na água do saber. Sabia que não tinha apenas a intenção de se molhar, mas se inundar de felicidade. Porém, oleoso, escorregou em um acento agudo, talvez fosse uma crase, ou teria sido um acento circunflexo? Teve a certeza que foi um til ao olhar para trás.

Então se equilibrou na ponta do “E”, tomou impulso e segurou nas pernas do “N”, deu um mortal e
escorregou pelas curvas da letra “C”. Tropeçando em uma cedilha, ele pensou ter se perdido, contudo caiu em cima do “A”, pulou no dorso do “N” e equilibrou-se na cabeça do “T”, fechou os olhos e mergulhou no centro do “O”.

Caiu de olhos abertos em uma terra florida e aromática. Sempre dia, pirilampos não deixavam anoitecer. Pássaros entoavam canções de alegrar corações. Duendes, gnomos, anjos, querubins, serafins, príncipes, princesas, reis, rainhas e seres de diferentes formas e tamanhos davam encanto ao lugar. Sentada em uma cadeira, uma fada com uma pena na mão e papéis – metade em branco, metade escrito – sobre uma mesa, escrevia.

Ao se aproximar, ele percebeu que era a Escritora de contos de fada. Ele se jogou, felicíssimo, em seus braços e ela o recebeu como irmão. Ao ser abraçado por ela, ele percebeu que não era mais gente, mas um boneco de madeira. Deu pouca importância ao fato, o que quer que fosse, ele encontrara a felicidade, e isso já lhe bastava.

Sentados, ele com o queixo sob a palma da mão, ela folheando as páginas do seu livro de contos de fada, liam juntos. Três lágrimas desceram dos olhos dele, significando as reticências do final do livro. Foi então que ele percebeu que através da leitura tinha se transformado em gente, ainda melhor do que já havia sido.

Não importa qual o final da história. Menos ainda se um fim não tiver. Quando se vive um "felizes para sempre", o fim, afinal, pouco importa. Irmanados, de mãos dadas, talmente criança pulando amarelinha, eles pularam as reticências, uma a uma, e começaram uma nova história, assim:

Era uma vez a água e o óleo, misturados...

Autores: 

Água: Déia Tolda e

Óleo: Eder Ribeiro

Imagem: Getty Images (1º)
              Getty Images (2º)
 

domingo, 1 de setembro de 2013

Pensamento - sobre ser diferente





                                                Imagem: Getty Images  

O frustrante em não conseguir montar um quebra-cabeça é saber de nossa incapacidade em encontrar o encaixe perfeito para cada peça e não o fato de alguma faltar. Assim é a vida quando convivendo com diferentes pessoas você não se encaixa em nenhum relacionamento. O pior de tudo é saber-se diferente e só, como uma peça que não se encaixa.


                                             Imagem: Getty Images


Enfim o grande dia está chegando, em 04/09/13, quarta-feira, às 17hs00min, Eder Ribeiro e Déia Tolda convidam todos a mergulharem num mundo encantado de fantasia e beleza. Tragam as crianças e leiam para elas, deixam a imaginação transportá-las para um mundo lúdico. Espero todos vocês.

Agradecimento:
Querida Irmã, Déia Tolda, obrigado por ter me dado a oportunidade de realizar um sonho, escrever contos infantis. Sem as suas mãos, eu estaria até hoje alimentando um sonho irrealizado. Obrigado pela sua entrega e por ter abraçado o desafio. Serei eternamente grato por ter me proporcionado momentos tão felizes.