Ouvindo essas palavras, sua visão
ficou turva, o chão começou a girar e perdeu a estabilidade. Perdeu a noção do
tempo e, quando deu por si, estava deitado, melhor dizendo, caído, no chão.
Abrindo os olhos, pode ver o halo do sol, quase lhe cegando, e cachos
acobreados pendendo de um rosto de anjo. Será que estou no céu?
- Cacau? Cacau! Acho que ele está
acordando!
A menina riu, puxou seu corpo para
deitar sua cabeça em seu colo, e lhe disse assim:
- Você é o Cacau, não é? Minha mãe
é muito amiga da sua, e me pediu para vir aqui na sua casa lhe mostrar minha
bicicleta nova. Você queria ganhar uma dessas, não é? Vim lhe emprestar a
minha, mas, quando vinha passando vi sua bola de capotão cair bem no meio de
sua cabeça e você, desabando no chão. Ai, menino, que susto!
- Menino não, corrigiu ele. Rapaz.
O meu nome você já sabe. E o seu, posso saber? Ainda tonto, não acreditou
quando ouviu o que ele próprio havia dito.
Enrubesceu-se a menina, e
respondeu assim:
- Muito prazer, Cacau. O meu nome
é Mel...
E foi quando uma bolinha de gude
escapou da mão esquerda daquele rapaz, e foi juntar-se à roda, aro 26, de uma certa
bicicleta azul coberta de girassóis.
- Oi Vó! O que você está
fazendo?
- Oi meu neto! Preparando
seu café, ora essa! E rindo, aquela risada gostosa que sempre fora a marca
registrada de Mel, continuou a prepará-lo. Vitor, seu avô está lhe preparando
uma surpresa, vá lá fora para recebê-la. Vovó já vai logo atrás.
Vitor saiu da casa em
direção à garagem, e encontrou um envelhecido Cacau com linha e agulha nas
mãos, pelejando com uma antiga bola de capotão.
- Vô! É para mim? Correndo,
pulou no colo de Cacau que rapidamente pousou a agulha longe e agradeceu a
falta de sono que o fez começar a empreitada muito mais cedo naquele dia.
- É sim, Vitor! Você gosta
de futebol?
- Amo, Vô! Quando eu crescer
vou querer ser zagueiro!
- Ah, mas um zagueiro não
nasce pronto, precisa de treino. E eu vou lhe contar um segredo: está vendo
essa bola aqui? Ela é mágica. Não ria, não estou brincando, não. Existe uma
formiga, mas não uma formiga qualquer, uma formiga encantada, que é guardiã de
um portal mágico. Essa formiga chama-se Baba, e, se o Senhor do tempo percebe
que algo precisa ser concertado, ele envia sua fiel embaixatriz para que,
através dessa bola, leve quem dele precisa de ajuda até a sua presença.
Essa bola foi do seu bisavô,
que por sua vez a ganhou de seu tataravô.
Olhos arregalados, Vítor
encantou-se com a história de bichos, portais e magia que o avô lhe contava.
- E é minha agora, Vô?
- Só se eu puder treinar
junto - para garantir que se Baba voltar, terei chance de lhe dar um abraço e
agradecer por tudo que ela fez em minha vida...
- Oi pai, oi mãe! Fauser
chega com sua esposa, Carolina. O café está pronto, mãe?
- Quase pronto meu amor! Oi
Carol! Usou aquele vestido lindo que compramos juntas ontem à noite?
As duas mulheres entram para
a cozinha, finalizando os preparativos da mesa lindamente composta para uma
refeição considerada banal. Mas, naquele família, nenhum tempo passado juntos
era banal.
Fauser reconhece a bola de
capotão que Vítor segura em suas mãos, e, com o coração apertado, procura nos
olhos do pai a confirmação do que acontecia. Em um sorriso, Cacau entrega ao
filho que a mágica estava finalmente passando de mãos.
- Vô, chuta a bola para mim?
- Claro, Vítor. Mel, oh Mel
você não disse que havia guardado algo, também, para dar ao Fauser?
Mel e Carol saem da casa,
sorrisos, mãos carinhosas. Duas mães em sua plenitude!
Posicionada ao lado de seu
grande amor da vida toda, antes de Cacau acertar o chute na bola, Mel
sussurra-lhe em seu ouvido: "Menino bobo".
Cacau a olha com a ternura
daqueles que muito cedo encontraram o amor de sua vida. Segura-lhe a mão, como
fizera na margem do rio a primeira vez que se beijaram.
Mira na bola e acerta o
chute. Mas não foi isso que surpreendeu Fauser. No momento que virou-se para
exaltar a boa pontaria do pai, que ele teve a honra de poder comprovar nos
muitos anos que se sucederam àquela noite encantada com Baba, viu não o senhor
a quem tanto amava, mas sim um menino, de não mais de dez anos.
Ao seu lado, uma menina
linda, de mãos dadas com ele, anda em direção a Fauser, e lhe rola uma bola de
gude toda trincada, mas que, ao chegar em suas mãos, está redonda, polida, como
nova.
Saem caminhando, lado a
lado, dois jovens, enamorados, com a vida toda pela frente. A observá-los, Baba
e o Senhor do tempo. Em sua forma de formiga, agarrada ao manto do Senhor
do tempo, Baba pergunta o motivo de remoçá-los.
- Amor igual ao deles tem
que ser revivido sempre.
- Mas eles erraram ao
abandonar o filho, não se lembra? Se não fossemos nós, a história seria contada
tão diferente...
- Formiga, entenda uma
coisa, o acerto não advém de pensarmos que estamos acertando, mas se tivermos a
humildade de reconhecer que o erro nos proporciona o aprendizado, então,
estaremos no caminho certo.
Olhando para trás a formiga
piscou o olho esquerdo. Cacau e Mel responderam rindo, certos de que viverão
felizes para sempre.
TEXTO DE ÁGUA E ÓLEO MISTURADOS
E a história não termina aqui, não perca A família encantada. Aguardem.
AUTORES:
Água: Déia Tolda