Parte final
São Paulo havia se
transformado em uma cidade intransitável, os congestionamentos diários e os
meios de transportes público precários tornavam a locomoção um calvário,
aumentando a taxa de estresse da população e consequentemente a convivência
mais conflitante. O seu carro estava imóvel na Avenida 23 de maio. Desceu e viu
a fila quilométrica ao longo da avenida. Um trajeto que demorava uma hora no
máximo, levaria o triplo do tempo. Entrou no caro, esmurrou o volante com as
duas mãos e desferiu palavrões ao governo. Ligou o rádio procurando uma estação
de rádio que estivesse tocando uma música que lhe acalmasse, como não a achou,
desligou-o. Um policial aproximou do seu carro e percebeu que ele não estava
com o cinto de segurança afivelado. Rasgou a multa assim que lhe foi entregue.
Entre todos os bichos do reino animal, xingou o prefeito com o palavrão mais
apropriado - veado -, pois sabia da sua avidez. Uma delas por arrecadação de
tributos, e, também, por estar transformando a cidade de São Paulo, conhecida
pelas suas indústrias, em uma indústria de multas. Quando chegou ao Anhembi não
havia como estacionar nas ruas próximas, todas estavam tomadas pelos carros. Devido
o preço exorbitante dos estacionamentos particulares, foi obrigado a
desembolsar uma grana alta. Com as moedas que sobraram, pediu uma xícara de
café expresso, tomou-o lentamente, não para saboreá-lo, mas para acalmar-se do
estresse paulistano. Encaminhou-se para o seu stand, sentou na cadeira, pegou a
caneta e ansioso esperou o primeiro leitor para autografar o seu livro "O
fim de uma história".
Preferiu não autografar os livros que os
seus familiares compraram. Esperou durante uma hora, nenhuma alma viva se
atreveu a comprar o seu livro, quanto mais a lhe pedir autógrafo. Espichou a
cabeça para espiar o fluxo de visitante na bienal e percebeu que a maioria
estava em um stand adiante. Foi até lá e teve uma decepção. Ali estava o motivo
de não ter vendido nenhum exemplar, fora os que venderam para os familiares. Atrás
da mesa, dando autógrafos com sorriso de orelha a orelha, estava Paulo Coelho. Voltou
para o seu stand desesperançoso.
Horas depois, cabisbaixo, começou a falar
consigo mesmo.
- Ele começa com uma letra, finaliza com um
ponto final e entre um e outro há uma lacuna enorme, não tem conteúdo, como diz
a crítica, contudo vende que nem água.
- Bela citação. Neruda. É fácil escrever, basta
uma letra e um ponto final, depois é só preencher de ideias. Não desista. Um
bom guerreiro é aquele que nunca desiste de um bom combate.
Ele não acreditou no que estava ouvindo, já
tinha lido aquela última frase em um dos livros do Paulo Coelho. Levantou a
cabeça e viu um vulto com os cabelos achumbados se afastando. E assim
permaneceu, sentado, dando ouvidos às moscas, sem forças para reagir a mais um
fracasso.
Ela tentou passar despercebida assim que
ouviu o estampido do tiro vindo do escritório, porém, o nervosismo não a
deixou. No entanto, a indiferença dos transeuntes não permitiu um gesto de
ajuda. Viu quando os pombos voaram do fio da rede elétrica e entendeu a
intranquilidade dos mesmos, pois era também sua. A passos largos, subiu os
degraus automaticamente como se não tivesse controle dos passos. Não o tinha, o
desespero era o seu condutor.
Ele ainda estava com a arma apontada para o
monitor destroçado pelo tiro, quando a viu entrar aos gritos.
- Não faça isso. - Disse quando o viu
apontar a arma para a cabeça.
- Mas esse é o fim que todos esperam, o
prazer mórbido é uma característica humana.
- Mas
não estamos falando de literatura, mas da sua vida.
- A vida, de um jeito ou de outro está sendo
escrita, quanto ao final, nunca saberemos, pois o escritor é desconhecido.
- Pois deixa que eu escreva o final da sua
com um eu te amo.
- Não me provoca risos. O romantismo se
perdeu entre o fim do século dezoito e metade do século vinte. Hoje em dia
ninguém usa o verbo amar, mas sim, fazer amor. O amor deixou de ser um
sentimento, melhor dizendo, deixou de ser sentido como o era, romântico, puro,
para ser um ato mecânico-físico, não um sentimento que vem de dentro para fora,
mas uma ação extrínseca que se consome no ato em sim e depois de consumido se
perde dos parceiros.
- Eu te amo. - Ela disse pausadamente e
acreditava no que estava dizendo, pois sentia.
- Você não precisa dizer isso para que eu
desista...
- Mas eu te amo.
- ... do meu intento. O suicídio é um ato
covarde que precisa de muita coragem para se cometer. Eu não tenho. -
Esmorecido, colocou o revólver no rack e a afastou de si, pois, aos prantos,
ela tentava lhe abraçar implorando que o amasse.
- Por favor, essa história não merece um fim
dramático. Não estamos em um dramalhão mexicano. - Pegou a sua mochila deixando
tudo para trás, filhos, esposa, a profissão e a amante (?).
- A história da minha vida de agora em
diante será precedida por reticências, qual final vai ter eu não sei, só espero
que o autor que a esteja escrevendo não seja tão mau escritor como eu fui. -
Saiu sem dizer adeus.
Ela voltou ao escritório durante um mês,
todos os dias, na esperança que ele voltasse. Como não voltou, seguiu a sua
vida. Divorciou, casou novamente, teve filhos e nunca deixou de amá-lo. Habitualmente,
percorria as livrarias da cidade pesquisando todos os livros lançados. Enfim,
cansada da pesquisa, cabelos achumbados, precisando de uma bengala para se
locomover, viu em uma das livrarias o último lançamento, cujo título era,
"Segui te amando após todas as reticências". No rodapé da capa estava
o nome dele.
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