Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

sábado, 31 de julho de 2010

Milagre

A ciência faz milagre que até deus duvida. Digo isso porque uma mulher, usando uma saia abajur que tampa a lâmpada, mas deixa o bocal de fora, passeava pelo shopping acendendo o pavio de todos os homens que a observava. Mulher esta que fecha o trânsito, quebra as pernas, e, principalmente, fura o bolso de qualquer cristão. Eu, observador, prestava atenção – não nela, pois, conhecedor dos ciúmes da minha esposa, diz ela provocados por mim, mas quando os ciúmes são meus, diz ela devido a minha insegurança -, mas no velhinho que não conseguiria suster com as duas pernas que tinha, nem mesmo se usasse a terceira perna, ou seja, a bengala, deixou cair o jornal, o queixo já estava caído a tempo, e o que deveria estar caído, caído não estava devido o tal milagre da ciência, o remédio azul. Eu dei uma olhada no que tinha provocado tudo aquilo no velhinho que estava mais para lá do outro lado da vida, e percebi que não só a ciência faz milagre, pois aquela mulher levantava até defunto. Não é que o velhinho levantou, deixou para trás a terceira perna e partiu com o binóculo em mãos, apontando para o sul da mulher querendo apertar bem o bocal para ver a lâmpada acessa. Foi aí que percebi que não só a ciência ou deus faz milagres, mas também a mulher.

domingo, 25 de julho de 2010

O casamento do seu Pedro

Sempre ouvira dos meus amigos que a natureza fora benéfica para com minha família por não deixar no nosso corpo as marcas do tempo. Quando adulto meus amigos ao perguntarem minha idade, e ao respondê-los, todos, sem exceção, falavam-me que eu aparentava dez anos a menos. Portanto para não passar por mentiroso eu passei a contar meu primeiro aniversário aos 11 anos.
Após os 30 anos, os aniversários não tinham o peso que deveria ter por o tempo passar ao longe, e mesmo depois dos 30 envelhecer para nós era o bom de se viver, por isso cada comemoração era uma festa, seja do 1° ou do 93° aniversário.
Meu avô Pedro morto aos 93 anos, quando do seu 80° aniversário, fez de sua festa uma grande surpresa para todos. Nos comunicou que realizaria seu 3° casamento. Quando apresentou sua noiva houve uma balburdia intensa. A noiva era de menor, tinha apenas 40 anos. Uns dizia que ele enlouquecera, outros que estava senil, os mais ousados que estava procurando encrenca, e como na família tem sempre uma ovelha negra, o neto mais novo do vô Pedro assim disse: “Ele quer alimentar o apetite sexual dos vizinhos”. Todos caíram na gargalhada, apesar do constrangimento dos noivos.
Após os festejos fui ter-me com Seu Pedro, e constrangido, perguntei-lhe se o “dele” levantava. Sem entender o que eu queria dizer, ele respondeu-me que se levantava, pois estava vivo. Tentei ser mais loquaz sem o ser e disse-lhe: “Vô, o pedrinho ainda levanta?” O soneto saiu pior do que a emenda, e assim ele respondeu: “Aquele insolente do teu irmão tanto levanta que elevou a voz a tal altura que todos ouviram ele dizer que meu amor seria alimento para os vizinhos”. Para me fazer entendido eu tive que falar no seu linguajar, mesmo receando que poderia ofendê-lo, mas como eu era por ele bem quisto, ele me deu uma grande lição. Assim perguntei-lhe se ele ainda dava no couro.
Vivi com vô Pedro toda minha infância e começo da minha adolescência, e durante todo este período quando ele queria me contar um dos seus causos, pegava um banquinho que ele chamava de tamborete e mandava eu sentar. E desta feita não fora diferente.
“Pelé, assim por ele eu era chamado, senta no tamborete que vou contar como reconhece se o cabra é macho ou não só de olhar para sua casa”.
Sabendo que ele era um bom mentiroso, e para não demonstrar que eu sabia, fingi surpreso e lhe perguntei: “Como assim vô?” Respondendo-me que os jovens coloca o sexo antes do amor, onde deveria ser o contrário, e por amar muita sua nova mulher, já bastaria para certificar que ele dava no couro, mas sabendo que os jovens dão pouco crédito ao que os mais velhos falam, ele iria contar o seu causo e assim eu teria certeza de sua macheza.
Acomodei-me melhor no tamborete e prestando muito atenção ele começou a falar que dividiria a casa em garagem, sala, banheiro, cozinha e quarto, e se na garagem ao invés de um carro houvesse uma espreguiçadeira, ali naquela casa o macho não dava no couro, pois ao invés dos afazeres do amor ele perderia tempo lendo, descansando ou escrevendo na dita cuja e com toda certeza se achava um poeta ou conhecedor das letras. E acrescentando me disse que na sua casa, na Bahia, não havia carro e muito menos espreguiçadeira. Na sua analogia ele começou a falar sobre a sala dizendo-me que se houvesse um sofá com um “ó” bem fundo no lado esquerdo e direito, e se os braços do mesmo estivesse engordurados e gastos, certamente naquela casa o cabra não era tão macho como se supunha, pois o mesmo ao invés de nutrir do mel do amor, de pijama, ele passava a maior parte do tempo sentado no sofá assistindo tv para nutrir informação para seus escritos e com certeza se achava o melhor cronista e sabia tudo relacionado ao meio artístico, e do amor, bem, pouco conhecia. Ele nem precisou falar que em sua casa não havia sofá e que ele detestava tv e muito menos queria saber qualquer coisa relacionada ao mundo artístico, isso eu sabia desde pequeno. Após uma pausa para água, Seu Pedro disse-me que se na porta do banheiro houvesse um tapete e após sair do mesmo o cabra passasse o pé no dito cujo, ou ao sair, deixasse a tampa do vaso abaixada, era porque ele mijara nos pés ou mijara sentado, e em quaisquer situações o cabra de longe não seria macho. Após esta analogia eu o peguei, pois sabia muito bem que quando ele saía do banheiro a tampa estava abaixada. Ele riu e me disse que quando conheceu minha avó, e perguntando-lhe qual a maior qualidade que ela via num homem, ela lhe disse que era, ao mijar, o homem levantar a tampa, abaixá-la, dar descarga, e principalmente lavar as mãos. O que ele fazia por amor acabou virando hábito. Assenti que sim, pois isso foi passado de geração a geração.
Não demonstrando nenhum cansaço ele me disse que se um cabra passasse longe de uma cozinha era porque ele conhecia pouco da arte de amar e se assim agia era porque nada tinha de cabra muito menos de macho, pois a melhor forma de conquistar uma mulher era pelo paladar. Portanto se não conhecia a arte de cozinhar não conhecia as artimanhas da conquista, não conhecendo ambas, o cabra era um pústula. “Sim vô, eu sei, você é um excelente cozinheiro”. Assim respondi-lhe quando me perguntou se ele era cabra macho ou não.
Satisfeito que eu o estava compreendendo e que ele falava a verdade, passou para o último cômodojacarandá e reforçada, era porque só a usava para dormir e nem adiantava eu lhe dizer que as artimanhas do amor não se faziam somente na cama, porque para ele a melhor forma de amar era na horizontal e num colchão macio. Como eu sabia que em sua casa a cama além de ser de jacarandá, era reforçada e, portanto com as analogias por ele feitas estava mais do que provado que ele era um cabra macho que dava no couro.
Antes que as más línguas falassem, após esta conversa com meu avô Pedro, eu percorri várias lojas de móveis para comprar uma cama de jacarandá reforçada, fui achá-la depois de duas semanas, paguei uma fortuna. Como diz o ditado, o seguro morreu de velho.
Muitos e muitos anos se passaram e estava eu sentado no sofá, e, diga-se de passagem, com a tv desligada, lendo quando minha esposa adentra a sala e sem fôlego me disse que tinha uma surpresa na garagem. Logo pensei que ela havia batido o carro. Qual nada, antes fosse. Quando vi aquele objeto na garagem enfureci-me a ponte de querer quebrá-lo, mas educado como sou fui arguir com ela o motivo daquele infame presente. Disse: “Sua mãe ia jogar fora, então mandei reformar. É uma linda espreguiçadeira de jacarandá. O marceneiro disse-me que ela durará séculos. Assim amor, você pode ler e escrever confortavelmente”.
Nervoso o suficiente a ponto de ter um AVC, e já pressentindo que aquele presente era um aviso, mesmo com as marcas do tempo ainda não desenhando no meu rosto seus traços, mas com cabelos brancos o suficiente acusando minha velhice, fui até a cozinha, abri a geladeira e sem importar-me com os bons modos, sequei um litro de água pelo gargalho. Entrei no banheiro, sem me dá conta que a tampa do vaso estava abaixada e sem acender a luz, mijei quase o litro de água bebida. Acendi a luz e minuciosamente olhei para os meus pés e em volta do vaso e percebi que não estava mijando fora da bacia. Dei um urro de alegria, o “edinho” ainda era pau para toda obra.
Mulher assustada por em questões de minutos eu sair de um estado de braveza para um de euforia, perguntou-me se eu tinha visto passarinho verde. Respondi-lhe que tinha visto era um lindo cardeal que levantaria voos durante muito tempo. Minha filha sem compreender nada perguntou a minha esposa o que era cardeal, e ela lhe respondeu assim: “É um pássaro de cabeça vermelha com um lindo canto”.


*Seu Pedro, veio à luz a 30/01/1907, e foi à luz às 20:00 do dia 11/10/2000 ao lado de sua amada; viveu com ela 13 anos de puro amor.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Será so imaginação?

Mas, essa história de amor, de encontro de almas, união de gente, não começou aqui. O início está no Rumo à escrita, da Deia . Só lendo o começo do texto para entender por que tudo isso  terminou aqui (?)...


   Amanhecia gélido. Agora ela se perguntava que rumo escrito ou imaginado a sua vida daria. Mas que importância tinha isso, os rumos que damos a vida são imaginados por nós, e escrito também, no decorrer da própria vida, pelas marcas, pelos significados deixados. Se não, não somos personagem e autor de nós mesmo, mas de um livro qualquer, de algum escritor qualquer. Ela pôs os pés no chão certa que estava no céu, deslumbrava-se pelo encontro de si proporcionado pelo encontro na livraria. E pensar que na livraria só encontramos histórias de outros, sem perceber que a nossa, também, pode ser escrita ali. Então, ela pôs os pés no chão e percebeu que o som estava ligado. O descobrimento do Brasil, da Legião Urbana estava sendo cantada pelo Renato Russo: “A gente quer um lugar pra gente/A gente quer é de papel passado/Com festa, bolo e brigadeiro/A gente quer um canto sossegado/A gente quer um canto de sossego/Estou pensando em casamento”. No chuveiro, ele repetia a letra da música, sem cantar, como um mantra. O chuveiro estava ligado, o vapor da água embaçava o ambiente, ele, agora, cantava: “Eu sou rapaz direito/E fui escolhido pela menina mais bonita”. Ela que pensara nesta música como a realização do sonho de ter o príncipe encantado. O príncipe, e se ele virasse sapo, pulasse para fora da sua vida da mesma maneira que pulou para dentro, assim, repentinamente. Porém, ela sabia que os melhores encontros se dão fortuitamente, sem nada esperar deles, e pode ser dado, sim, por uma mão forte intentando segurar a porta do elevador, por ser essa mesma mão dona de um corpo másculo que traz intrínseco uma alma doce, feminina até, intrépida ao se mostrar assim, fêmea, extrínseca. Pode ser dado, também, por duas mãos percorrendo a lombada do mesmo livro, afinal, como sua mãe disse-lhe, são os livros que nos escolhe, e se aquele os escolheu, mais do que para ser lido, foi para inspirá-los a escreverem as suas próprias histórias. Ela sabia disso, como sabia também que ele está embaixo do chuveiro, tomando o seu banho para depois, envoltos em lençóis, se darem ao amor como dois adolescentes apaixonados, novamente.
   Depois de cinco chopes a mulher não é mais a mesma. Será? Ela não foi.
   Eu não fui, pensou em voz alta. Continuou pensando, sem verbalizar. Fui eu quem o convidei para o chope, fui eu, também, quem o convidei para estar aqui na minha casa embaixo do chuveiro, depois de um dia e uma noite de amor – riu descompromissada. Quem sabe foram dois dias, nem eu mesmo sei se primeiro foi o dia, depois a noite, quanto mais quantos foram. Quando amamos, somos dadas ao esquecimento às coisas pequenas – perguntou-o sem obter respostas. Mas que importância tem isso, ele está aqui, ele é meu, isso sim é que importa. Nada perdi entre esses lençóis, dei foi um rumo diferente a minha vida, o amor sendo escrito em meu corpo virgem – riu impudicamente – por gotas de poesias, um tanto prosaica, mas escrita por ele. Meu Deus! Porque nós mulheres analisamos tanto os nossos relacionamentos. Ufa! O amor! – disse por fim.
   Coisas de imaginar. Era assim que ela dizia ao terminar de ler um livro. Ela não sabe a quantidade de vezes que leu Romeu e Julieta e imaginou um final diferente, os dois felizes para sempre; ou então Dulcinéia de Toloso se rendendo aos braços de Dom Quixote, após este sair vencedor em todas as batalhas. O homem certo – pensou ensimesmada – deveria ter um par de sapato de cristal, uma boa carruagem e bons livros para a sua amada. A vida seria um conto de fada sem as tragédias shakespeariana, ou as batalhas cavalariças de Cervantes.
   Então, ela pôs os pés no chão certa de que estava no céu, e não caiu. Despiu-se. Entrou debaixo do chuveiro e ele segurando com as mãos fortes cada gota de água, desenhou sobre a sua pele as curvas do seu corpo. Trêmula, ela o sentiu desbravá-la geograficamente. Relva, fenda, montanhas, campos e rios, rios e mais rios. Rios de dentro dela saíam. Os dois em um só corpo entrelaçados pelas almas, sem saber qual alma era de quem, pois até nisso eram iguais. Olharam nos olhos um do outro e se viram como estrelas lucilando em céu de apaixonados coberto por nuvens de algodão-doce. Ela disse, melíflua, eu te amo; com a mesma doçura, ele a repetiu.
   Ela foi a primeira a sair do banho, feliz. Passou a mão no espelho do armário do banheiro para desembaçá-lo. Não acreditou na imagem que estava vendo. Virou-se, gotas nada poéticas desabavam do chuveiro no chão do banheiro, tomando o rumo do ralo, límpidas, sem nenhum corpo entre elas. Onde ele estava, se perguntou.
   “Ta tudo morto e enterrado agora/Já que também podemos celebrar/A estupidez de quem cantou/Essa canção”. Melhor dizer de quem escreveu esta página. Não, não era a minha vida que estava sendo escrita, pensou ao cantar trecho da música Perfeição da Legião Urbana.
   Da parte que me toca, ela pensa que alguém escreve nossa vida, traça nosso destino, como se as intempéries não fossem fruto das nossas escolhas.
   Ela jogou algum objeto pontiagudo na tentativa de acertar este escritor, pois achava que o rumo escrito da sua vida estava em outra página, em outro sítio. Pobre tola, não se situou.
   Tresloucada, desvairada, ela gritou alto e mais. A sua voz saiu entre a fresta da porta até se perder distante em um tênue murmúrio: Onde ele estava.
   O livro. Sim, o livro. Ele me provará que ele é real. Qual era o nome mesmo? Esqueci. Mas mesmo que eu lembrasse o nome, não o acharia. O livro não existe, porém, isso não prova que ele também não. A livraria, ele pagou com cartão de crédito. Vou lá e constatarei a sua existência, e a do livro. Como? Se onde eu moro e trabalho só existe uma velha biblioteca repleta de alfarrábios. Eureca. O local onde nós trabalhamos. Se ele estava no elevador é porque trabalha lá, ou não? Oh! Meu Deus, porque estou me torturando tanto. Eu não passo de uma quitandeira, uma gata borralheira a espera do meu príncipe.
   Chorosa, ela não percebeu a janela entreaberta. O dia passara rápido, ou a dor da perda o fez passar. Anoitecia e as luzes do bar estavam acesas. Desmiolada, ela vestiu a roupa mais próxima que encontrou e tomou o rumo do bar. Se tivesse demorado alguns segundo para atravessar a rua, ela teria sido atropelada. Perguntou a um, dois, três, dez e obteve sempre a mesma resposta. Não. So-zi-nha, lhe disse o dono do bar, soletrando a palavra, acentuando as vogais por conta própria. Como sempre, quando você entra e sai do meu bar, enfatizou.
   Lerda e lesa, ela atravessou a rua sem perceber o farol alto do carro iluminando o seu rosto, desviando à direita para não atropelá-la, e entre impropérios ditos pelo motorista e a cantada do pneu motivada pela frenagem, ela passou incólume, sozinha e solitária.
   Ao chegar em casa foi direta ao quarto e não percebeu os embrulhos na cabeceira da cama. Retirou o vestido e com o mesmo enxugou as lágrimas. No rosto trazia um olhar sofrido e entristecedor. Esquecera de desligar o som, e não tinha certeza se tinha fechado o registro do chuveiro, pois a água escorria a rodo. Aproveitou a ocasião e foi jogar água no corpo para aliviar as amarguras. Sentiu o corpo ser envolvido por uma aura cálida, imaginou ser o vapor da água quente. Porém, abraçada ao seu ventre estavam as mãos fortes que não deixou a porta do elevador fechar, as mesmas mãos que percorreram a lombada do mesmo livro que as suas mãos, também, percorreram. Ela tentou se desvencilhar dos seus braços, contudo ele a apertou mais para próximo de si. Suavemente tocou no seu queixo, inclinando para trás o seu rosto. Com o dedo nos seus lábios requereu silêncio, com os seus lábios nos dela ele o obteve. Seus corpos exsudavam eflúvios aromáticos de prazer que ao misturarem-se a água fazia do banheiro um jardim de apaixonados.
   Após se darem ao prazer corpóreo, ela conseguiu se desvencilhar dele. Pegou o pote de creme para o cabelo e o derramou, encheu-o de água e jogou no espelho. Desembaçado, a imagem no espelho estava indecifrável devido à água. No rádio Renato Russo cantava: “Será só imaginação?/Será que nada vai acontecer?/Será que é tudo isso em vão?”. Ela saiu do banheiro e desligou o som e começou a cantar, modificando a letra, O descobrimento do Brasil: “Eu sou moça direita/E fui escolhida pelo menino mais bonito/Estou pensando em casamento”.
   Ele encostou-se ao batente da porta do banheiro e perguntou:
   - Tá mesmo?
   Ela nada disse, no entanto os seus olhos diziam que sim, o sorriso no rosto também, o corpo trêmulo idem, a alma não precisou dizer, ela já expressara no banheiro. Foi neste momento que ela percebeu os embrulhos, ele com gestos a pediu que os abrisse. Ela, fazendo gestos com ombros, queria saber qual. Ele apontou o da direita. Estupefata, ela se viu diante dos dois livros de Ricardo Neiva, A rede do amanhã, autografados. Ele piscou para ela e apontou o embrulho da esquerda. Queria abrir o do meio, então ele foi até o embrulho apontado, abriu-o e lhe mostrou o par de sapato de cristal, coube-lhe como uma luva. O último pacote, ele pediu que ela abrisse com cuidado. Era uma caixa de bombom com um coração, escrito no meio: Eu te amo. Ao abrir ela foi surpreendida com dois estojos pequenos. Em um deles havia um diamante, no outro um par de alianças.
   Ele abriu o acortinado, ela viu pela janela entreaberta o céu de um azul intenso, vivo e estrelado; a lua lucilava, clareando a noite tal o sol o dia. Feliz ela abaixou os olhos e viu uma carruagem na porta da casa. O cocheiro perambulava de um lado ao outro da rua sem dá importância ao céu. Então ele disse:
   - Vamos. Apronte-se que o cocheiro está impaciente.
   E não importa para onde eles vão. Deste encontro, somente pode ser para a felicidade o rumo. Á escrita este destino estava traçado, não por um Deus, mas por uma Deusa, melhor, como ela gosta de dizer, por uma Deia.




   



 
    

domingo, 18 de julho de 2010

As histórias que o meu avô contava - ÚLTIMA PARTE


   O sino da igreja badalava a vigésima primeira hora do dia 13 de setembro de 1965, o padre estava no pátio em atitudes suspeitas. Socava o ar como se uma horda de mosquitos sobrevoassem sua cabeça. Proferia frases inaudíveis. Inesperadamente começou a vergar para trás, dava a impressão que alguém o empurrava, mas não existia uma alma viva, exceto eu e ele. Correu desesperadamente até tropeçar e cair, levou as mãos à cabeça, chorava intermitentemente. As expressões de seu rosto eram aterrorizadoras. Por um instante tive pena dele, vi que estava sofrendo. Ele correu para dentro da igreja olhando para trás e pedindo para ser perdoado. O que me causava estranhamento era que não havia ninguém o seguindo. Entrei na igreja e vi o padre José ajoelhado pedindo perdão. Escondo-me no confessionário. Algo inimaginável aconteceu. O padre começou a levitar, e no seu rosto visualizei terror. Ele se debatia, parecia que algo ou alguém o segurava, só que eu não via nada. O padre tremia. O medo tomava conta dele. Aquilo, para mim, era incompreensível, até que o quê não queria ser visto se fez para meus olhos. A coisa tinha corpo humano, era alado, um rabo enorme, sem cabelos na cabeça, suas orelhas eram pontiagudas, dedos atrofiados com unhas grandes parecendo garras, pés curvados, pernas e coxas finas. Era uma aberração. Como não dava para ver seu rosto por que ele estava de costa para mim, parecia que ele cheirava e passava a língua no padre. A coisa enfiou a língua na boca do padre e uma luz negra começou a ser sugada. Aquilo me assustou, e por descuido acabei fazendo barulho. Fiz-me ser visto. A coisa soltou o padre que caiu no chão. Meus olhos deram de encontro com os olhos medonhos e aterrorizantes da coisa. Seu rosto era a própria personificação do diabo. Os glóbulos oculares eram proeminentes, testa larga com dois chifres e maçãs do rosto fundas apavorava qualquer um que o visse. E comigo não foi diferente. Debatia-me no confessionário até me dar conta de mim. Empurrei a porta para sair, mas uma força contrária, e mais forte da que eu estava usando, prendia-me no que poderia ser meu próprio caixão. Eu vi o sorriso sarcástico nos lábios da fera. Ele bateu asas para alçar vôo, quando estava bem alto, fechou as asas e veio em minha direção. O medo tomou conta de mim, a morte estava aproximando. Fechei os olhos e rezei. Ouvi o impacto, não o senti. Quando abro os olhos, uma luz branca com tons azul celeste cobria todo o confessionário. A coisa se contorcia no chão, com uma das asas cobrindo seu rosto, ele tentava se afastar sem olhar para a luz. Eu passei o dorso das mãos nos olhos para enxugar as lágrimas do medo que os haviam inundados e percebi a luz tomando forma. Meu coração se encheu de alegria, não acreditei no que estava vendo. Diante de mim estavam Deco, Armésio, Evidália e Evilásio. Todos suspensos no ar sem nada os segurando, e seus corpos brilhavam, uma auréola de luz os cobriam dos pés a cabeça. Eles sorriam para mim.
   Inesperadamente o teto se abriu e uma luz intensa surgiu do céu iluminando toda a igreja. Uma voz grossa e suave se fez ouvir:
   - Padre peça perdão a eles.
   - A eles não Senhor, a Ti eu...
   O padre não chegou a completar a frase. O teto se fechou, a penumbra tomou conta da igreja. Só havia claridade devido à auréola de luz que dava contorno aos meus amigos. Ao mesmo tempo em que o teto se fechava, o chão se abria e exalando um odor intenso de enxofre. A coisa se pôs de pé, abriu as asas e levantou voo, esticou bem as garras e desceu velozmente. Foi quando ouvi o grito de dor e terror do padre José. A coisa, com as garras fincadas no seu peito, enfiou a língua na sua boca e começou a sugar a sua alma, até restar somente a batina do padre José.
   Novamente a coisa pôs seus olhos em mim e sussurrou. Uma fumaça com odor de enxofre nublou as minhas vistas. Deu para ouvir uma voz gutural dizer: “eu voltarei”. Quando meus olhos começaram a atinar alguma imagem, só conseguir ver o rabo da coisa sumir no buraco que havia no chão. Antes do buracão se fechar de uma vez, ele voltou para pegar a batina do padre.
   A paz havia voltado à igreja. Deco, Armésio, Evidália e Evilásio estavam felizes, a luz que dava contorno as suas imagens estavam dissipando e elevando aos céus. Enfim só havia eu na igreja, ajoelhei e senti o chão quente. Rezei à alma dos meus amigos.
 
   - Pronto meu neto, esta é a verdadeira história dos sumiços ocorridos em Barra na década de 60.
   - Vô por que você nunca contou isso a alguém?
   - Se eu contar ou pôr isso no papel ninguém acreditará. Preste atenção, está ouvindo o apito?
   - Sim vô.
   - Este apito é do vapor Benjamim Constant. Vamos lá vê quem está chegando.
   Ao chegarmos no cais, eu e meu vô ficamos surpresos com a balburdia. Todos diziam em uníssono: “ele voltou, o padre José voltou”. Fomos abrindo passagem em meio do povo, quando eu e meu vô ouvimos uma voz gutural com odor de enxofre dizer:
   “Eu não disse que voltaria”.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

As histórias que o meu avô contava - 3ª PARTE

Evilásio, com o excedente de sua pesca, oferecia para algumas pessoas os peixes, dentre elas estavam eu, Deco e Armésio. Ele tentou doar para a igreja, mas a mancha na estola maculou também a alma do padre, portanto ele recusou a doação. Não demorou muito para eu, Deco e Armésio termos uma grande amizade por Evilásio, e ele por nós. Mas durou pouco a amizade, não por imposição nossa, mas por circunstâncias que fugiram de nossas possibilidades.
Estamos em setembro, época em que Armésio fazia sua viagem anual de visita a sua família em Barreiras. Antes de partir ele fez uma pergunta pelo alto falante e depois dela, nunca mais se ouviu sua voz. Ele queria saber o porquê do padre vestir vestido se a comida era feita pelo Dandim. Acho que desta vez ele exagerou. Eu, Deco e Evilásio fomos nos despedir dele no cais, mas ele não apareceu para o embarque no vapor Jansen Melo e nunca mais o vimos. Uma semana após o sumiço de Armésio, Evilásio convidou eu e Deco para uma pescaria, aceitei no ato, necessitava afogar as lágrimas e nada melhor do que o rio para se fazer isso. Deco recusou alegando que iria compor uma elegia ao amigo.
Deco mimeografou sua elegia em homenagem ao Armésio, nas entrelinhas acusava o padre pelo seu sumiço. Ao mesmo tempo, eu e Evilásio nos preparávamos para a pescaria. O local que nós iríamos era inóspito, por terra somente de carro, por água somente de barco a motor, como toda aventura precisava ser vivida com emoção, resolvemos ir de canoa. O melhor lugar para a pescaria era na região onde Dandim tinha uma casa de veraneio. Com todos equipamentos em mãos nós saímos, enquanto Deco saía para colar sua elegia nos muros da cidade. Já em águas, remando em busca, no rio, de água em movimento – sinal de que haveria pedras no fundo, esconderijo para caris. – percebemos que estávamos próximo à casa de Dandim, e alguns metros adiante encontramos o local certo para a pescaria.
Desci da canoa com água até o tórax e a ancorei. Eu mergulhei primeiro com um arpão preso a uma corda extensa, enquanto Evilásio ficou na canoa segurando a ponta da corda, caso houvesse um acidente eu daria um leve puxão e ele me resgataria. Visualizei um cari entre as pedras e lancei o arpão. Acertei-o em cheio, a água turvou pelo seu sangue. Emergi da água para puxar o arpão pela corda quando vi Evilásio estático na canoa. Olhei na direção que ele estava olhando, e para minha surpresa o padre cobria o corpo de Dandim com o seu corpo. Eles estavam nus. Nós os vimos e eles a nós. Surpreendidos, eles entraram apressados em casa. Minutos depois ouvimos ruído de arrancada de jipe. Continuamos a pescaria até tarde da noite. Evilásio não entendia, justo o padre, dizia. Expliquei-lhe que ele era humano.
Feixes de peixes nos ombros, cada um foi para sua casa, antes Evilásio me convidou para uma farofada de cari feito por Evidália. No outro dia como eu ia para Boqueirão em visita a um irmão, na volta eu passaria em sua casa e provaria o prato.
Ao chegarmos na cidade havia um alvoroço na rua. As carolas estavam arrancando as elegias coladas no muro por Deco. Despeço-me de Evilásio, pois no outro dia estaria de partida.
Ao voltar de Boqueirão fui direto ter com Evilásio, no caminho para sua casa senti estar sendo seguido, entrei na mata e fiquei espreitando, como não percebi nada, segui meu caminho. Ao chegar no meu destino encontrei Evidália aos prantos, ela me contou que depois que parti, Evilásio foi pescar e não voltou mais. Repentinamente chegou o padre com um recado do delegado. Encontraram um corpo no rio Preto, próximo de Santa Rita de Cássia. Evidália foi reconhecer o corpo, nem sei se chegou a fazer isso. Ela desapareceu, nunca mais a vi. Minhas suspeitas recaíram todas em Dandim. Passei a segui-lo. Desisti quando Deco mimeografou um planfeto contra o padre e o distribuiu no mercado desaparecendo logo em seguida. O delegado não quis investigar, pois, segundo ele, se não havia corpo, a probabilidade de crime era zero, não havendo crime, não havia o que investigar. Depois disso passei a seguir o padre.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

As histórias que o meu avô contava - 2ª PARTE

   Fevereiro de 1963 foi um dos meses mais quente do verão daquele ano. Fazia trinta graus na sombra, a cidade em peso estava no rio para refrescar. Armésio armara uma torre de madeira na margem do rio e instalara seus altos falantes, estava praticando seu hobby favorito. Tirava pilhéria do padre José, e este, devido sua sisudez e ignorância, espantara o coroinha que o ajudava e estava à procura de um outro até o substituto chegar. Deco, num dos momentos que saía de dia, destoava de todos. Trajado todo de preto, ele declamava um poema intitulado de a morte depois da vida. Era uma balburdia intensa, quanto mais ele gritava para ser ouvido, mais as pessoas vaiavam. Mas quando o ônibus vindo de Xique-Xique passou as margens do rio, Deco, finalmente, conseguiu declamar seu poema, pois toda a cidade havia se dirigido para a rodoviária, em busca de notícias para fofoca de fim de semana. Todos ficaram espantados quando um sujeito exótico, vestindo roupa multicolorida e espalhafatosa, com um andar para lá de feminino, desce, e mais espantados ficaram quando souberam que ele estava procurando o padre. Surpresos ficaram ainda mais quando descobriram que ele era o novo coroinha vindo a pedido do padre José, e indicado pelo padre Pedro da cidade de Sítio do Mato. As más línguas diziam que daquele mato saía coelho. Seu nome era Dandim.
   Agosto de 1964, como legítimo baiano, curtia uma boa preguiça deitado na rede, quando fui acordado pelas piadas preconceituosas e pejorativas, vindas do alto falante do Armésio, sobre padres. Ele fazia isso de propósito, pois sabia que naquele horário o padre José passaria pela sua rua em direção a casa de Dandim para almoçar. Se um estranho visse a reação do padre José se espantaria, para nós de Barra a sua reação era normal, pois acumulador de inimigos, o padre os juravam de morte. Assim ocorreu com Deco um mês atrás. Vítima das brincadeiras de dois adolescentes, sabedores que ele era homofóbico e que Dandim nutria-lhe uma paixão, os pústulas surrupiaram um dos seus poemas e imitando sua letra induziu Dandim a ir ao seu encontro. A reação de Deco foi como de todo homofóbico. O surrou até perder suas forças. Padre José só veio saber três dias depois do ocorrido quando Dandim, depois de ter sumido, apareceu com algumas escoriações. Neste dia o padre fez um dos sermões mais duro. Seu ódio por Deco tomou proporções imensuráveis.
   Pés ao vento e o resto do corpo enterrado na rede, fui acordado por latidos de cachorros que perseguiam uma carroça adentrando a cidade vinda de Mansidão. Minha sombra na calçada indicava que eram dezessete horas. O padre deveria estar atrasado, pois além da batina, ele estava com a estola branca e em passos apressados. Ao passar pela carroça, o sujeito que estava com as rédeas nas mãos não o percebeu e deu uma cusparada na sua estola. Mal chegara na cidade e fora, infelizmente, encontrar quem mais tinha tendência a arranjar desafetos. O sujeito, a primeira vista, me pareceu estranho. Ele tinha o hábito de mascar fumo e, devido a isso, uma cusparada gosmenta e volumosa de cor escura. Ao representante de Deus a mancha, deixada em sua estola branca, foi motivos para fazer daquele simples homem seu inferno. Esbravejando, o padre lhe fez juras de morte. O sujeito, sem entender o motivo da reação do padre, desceu, juntamente com sua mulher, e se apresentou. Para mim foi fácil me afeiçoar a ele. Pescador desde criança, ele gostava de pesca submersa. Seu nome era Evilásio e de sua esposa Evidália.

domingo, 11 de julho de 2010

As histórias que o meu avô contava

          1ª  PARTE
Meu avô, descendente de índios, tinha um fôlego inacreditável. Reza a lenda que um dos seus filhos foi fecundado embaixo d’água. O nado para ele dava sentido a sua vida. O seu hobby favorito era contar histórias. Vê-lo nadar e ouvi-lo era, para mim, contemplar a sua beleza. Após atravessar o Rio Grande para se banhar nas águas do Rio São Francisco, ele se inspirava, ao sair d’água me levava no colo até a porta da minha casa e sentado numa roda de carro de boi usada como mesa, embaixo do pé de amêndoa, convidava-me para sentar no tamborete feito de cedro com acento de couro de boi chamando-me pelo meu apelido de infância por ele dado.
- Senta aqui Pelé que eu vou lhe contar a estranha morte do padre José.
Estamos no ano de 1960 na cidade de Barra, interior da Bahia. Como toda cidade do interior tem tipos esquisitos, Barra não seria diferente. Eles chegavam dos lugares mais longínquos em todo tipo de transporte. Uns viam a pé, outros de carroça, poucos de carro, alguns de ônibus e a grande maioria nos vapores Benjamim Constant, Saldanha e Jansen Melo, que navegavam pelo Rio São Francisco. Juntamente com as mercadorias eram notícias na cidade. Quando o sujeito era muito esquisito, Armésio que, para não fugir a regra, também era esquisito, e veio de Boqueirão a pé, anunciava a chegada do dito cujo no alto falante colocado numa torre por ele construída. Quando o padre José chegou, vindo de Santa Rita de Cássia de carro, Armésio não fez cerimônias e anunciou a sua chegada tirando pilhéria, sem respeitar a batina e a autoridade do padre. Pagou caro pela sua ousadia. Nenhum dos seus filhos foi batizado ou casou na Igreja São Francisco de Assis, a única de Barra.
Um fato interessante aconteceu em fevereiro de 1962. Segunda-feira amanheceu nublada, nuvens carregadas cobriam todo o céu. O sol que era presença constante nas manhãs de Barra, naquele dia estava ausente. As horas passavam e nada das nuvens dissiparem, de repente a ventania trouxe um lençol de areia que, quem estivesse nas ruas, cegaria. A cidade emudeceu, todos, sem exceção, fecharam as portas e as janelas. Os cachorros latiam desesperados, as galinhas cacarejavam e batiam asas como querendo fugir daquele cenário apavorante. Os cavalos relinchavam e com suas patas socavam o ar. Ouvia-se barulho de galhos de árvores, arrancados pelo vento, batendo em portas e janelas. Repentinamente as nuvens desabaram. O temporal se instalou na cidade por horas enchendo o Rio São Francisco e o Rio Grande, dificultando o embarque e o desembarque nos cais. O vapor Saldanha, enfim, depois de horas, com muita dificuldade conseguiu ancorar no cais de Barra. Os marinheiros estavam extenuados. Neste dia insólito, vindo de Barreiras, Deco desembarcou do vapor. Todo vestido de preto, cabelos e barbas longas lhe cobriam todo o rosto. Dele só se via os olhos miúdos. Dizia-se poeta, mas para alguns era um louco, para a maioria era um tolo. De hábito noturno, passava a maior parte do tempo no cemitério. Ele dizia que as almas se encontravam à noite na igreja e deixava o cemitério para os noctívagos.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Conversando com Deus


   Quando a minha amiga Deia ofertou o selo “blogueiros por um mundo melhor -  nós fazemos a diferença”, eu fiquei lisonjeado com o oferecimento e ao mesmo tempo feliz por ser bem quisto por ela, pois toda oferta é nato da bondade, e por ser dela, mais ainda. Posto isto, fiquei pensando em como discorrer sobre o assunto. Dormi, acordei, fiz minhas abjurações e a dúvida permanecia. Então fui me arrumar para trabalhar.
   Estava lá no armário do banheiro desejoso para serem usados os cremes antirrugas, a tintura preto-azulada para as cãs, a tesoura para aparar os cabelos das axilas, a pinça para aparar as sobrancelhas, o barbeador para depilar o tórax e os cabelos das mãos e dedos, o creme umectante para todo o corpo, o óleo de amêndoas para os cotovelos e joelhos, os cremes para as mãos e os pés.
   Conversando com uma amiga, ela me perguntou se eu acreditava em Deus, disse-lhe que mais o sentia dentro de mim do que propriamente acreditava, e se Deus é o bem, praticando a bondade, de alguma forma estaria dizendo que sim. Então ela me disse: “Quando você vai pôr este Deus para fora?”. Essa interrogação me assustou, pois se foi justamente para ela, ajudando-a que eu mais dei mostras da minha bondade, ou seja, pondo Deus para fora. Mas vocês devem estar se perguntado o que tem a ver com o assunto que eu deveria discorrer. Explicitar-me-ei.
   Olhei-me no espelho e percebi que mesmo com todos os produtos usados, não tinha como apagar os vincos e as rugas do rosto, e nem tampouco as cãs, mesmo tintadas, elas voltariam depois de crescidas. Apegado a isso, eu me voltei para dentro de mim e lá encontrei Deus sentado em uma espreguiçadeira, assistindo o que parecia ser a minha vida passada. Então ele me disse apontando para a televisão: “Tudo fruto da tua ignorância. Tu pareces como uma casa nova, por fora, pintada em cores quentes, por dentro, sem mobília, não tem serventia para a morada. De que eu lhe valho se fico a maior parte do tempo aqui sentado nesta espreguiçadeira assistindo a tua ignorância”.
   Eu poderia relatar aqui o que Deus chamou de ignorância, mas me atento a dizer que são pequenas atitudes, pequenos gestos, maus até, corriqueiros a cada um de nós, praticados no dia a dia; pouco valor nós damos a eles por pensá-los pequenos, porém, se nos víssemos praticando, perceberíamos as razões de tanta violência nos dias atuais. Deixo a critério de cada um se perguntar que atitudes são essas. Ao relatar o diálogo que tive com Deus, cada um saberão quais são. Por isso, atente.
   “Mas Deus, são pequenas atitudes, más, mas pequenas”.
   “O nascedouro da maldade está nas pequenas atitudes, pratique o bem no seu dia a dia que no fim das contas o amor vicejará nas grandes atitudes, naturalmente”.
   “Como você chama isso?”.
   “Nomes? A nomenclatura é uma invenção humana para saber, ou seja, adquirir conhecimento, mas nunca para se conhecer”.
   “Não entendi”.
   “Se eu lhe disser – apontando para uma cadeira – que aquilo é uma cadeira, tu sabes; mas tu somente vais conhecê-la se sentar”.
   “Ah! sei. Isso é experimentação, experiência de vida”.
   “Tu dás muita importância a nomenclatura, nomes é a coisificação do sentir”.
   “Mas como saber se não nomeamos?”.
   “Tu tens que entender que a nomeação em si não implica a pratica. Está vendo aquela senhora beijando o recém-nascido, ele não sabe que é amor, pois não conhece a língua; porém, ele conhece que é amor por senti-lo”.
   “Então o segredo para um mundo melhor é praticando o amor nas pequenas atitudes, nos pequenos gestos”.
   “Ok! eu me rendo a tu. Se tu queres nomear, que assim seja”.
   “Amém!”.
   “Sim, Eder, amem a todos, e espalhas isso e pões em pratica o sonho de um mundo melhor”.


  
Indico para receberem esse selinho (à vontade se não quiserem levá-lo para o seu blog, ok?) os seguintes amigos blogueiros:
Angela do Entremeios
Élcio do Verseiro
Carmem do Eu sei que vou te amar
  


quinta-feira, 1 de julho de 2010

Se eu fosse mulher...


   Se eu fosse mulher, não no sentido físico, mas sim no sentido anímico, perceberia a vida sem a inutilidade, necessariamente masculina, de ter para ser, ignorando o outro, não por desconhecê-lo, ma devido à ignorância ser a falta de capacidade humana de amar. Ah! se eu fosse...
   Seis irmãs e apenas um irmão, mais tias do que tios, muito mais primas do que primos, muito mais ainda amigas do que amigos. Por viver em meio feminino, eram por outros olhos que eu percebia a vida, e quando enxerguei assim, a vida me era melhor.
   Se eu fosse mulher, seria como a minha tia-avó Maria Nogueira que se doava aos outros mais do que a si própria. Lembro-me das férias passada em sua casa quando ela acordava na madrugada para pilar o arroz e fazer a farinha do mesmo para a massa de cuscuz cozida com coco, ou quando ela fazia o escaldado com café, farinha de mandioca e manteiga. Eu acordava cedo para assistir tudo isso, sobre o fogão de lenha, de cócoras, menino ainda, e pensava ter as mesmas atitudes, a mesma bondade, quando homem fosse. Ah! se eu tivesse...
   Se eu fosse mulher, seria como a minha tia Neuracy Malheiros que sempre me requisitava para passar as férias com ela. Lembro-me como ela absorvia as dores dos outros como se suas fossem, ora para aliviá-las, ora para ajudá-las a aliviá-las. Eu assistia tudo isso, adolescente ainda, e pensava ter as mesmas atitudes humanitárias, quando homem fosse. Ah! se eu tivesse...
   Se eu fosse mulher, seria como minha mãe, por perceber a vida como ela percebe, sem nada esperar, vivendo cada minuto como se fosse o último, doando-se ao outro por ser este modo de vida que lhe satisfaz. Ah! se isso me satisfizesse, seria como minha mãe. Ah! se eu pudesse...
   Seis irmãs e apenas um irmão, mais tias do que tios, muito mais primas do que primos, muito mais ainda amigas do que amigos. Assim, eu pude perceber a vida por olhos de mulheres. Quem dera, eu pudesse tê-los para sempre, não os tive. Porém, os meus olhos viram mulheres competirem com os homens por uma equidade maior, e sonharam que esses mesmos homens passariam a perceber a vida por olhos de mulher, mas deu-se o inverso. As mulheres passaram a perceber a vida por uma ótica masculina.
   Ah! Se eu fosse mulher, doaria os meus olhos para quem quisesse perceber a vida, sem a ignorância, tão humana, tão arraigada, tão moderna.