Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Solipso - o epílogo de uma vida


     Um espelho de água, uma chapa de aço, um vidro de uma vitrine de loja, ou, simplesmente, qualquer objeto que reflete a sua imagem provoca nele sensações aterrorizadoras. Consome o seu tempo sentado no banco da praça jogando comida aos pombos para não se dar ao trabalho de ter que olhar no rosto de quem passa, pois se alguém tiver a felicidade estampada, se culpa por não ter construído a sua; e se, ao invés disso, tiver a tristeza, é a sua maior ainda, e se maldiz.
     Aos poucos, os pombos famintos se aglomeram em volta das migalhas de pão, penas voam dos seus corpos ao se debaterem por um espaço no chão. Se há felicidade ou tristeza entre eles, ele não sabe, afinal é da natureza dos pombos irem atrás das migalhas, e como todo ato instintivo, não traz em si felicidade ou tristeza, pois os pombos sabem que se ali não houver migalhas para a sua sobrevivência, alhures haverá de ter, o instinto os levará até lá.
     Passivo, ele não alça voo, a felicidade é uma meta distante cujos passos ele não dá para alcançá-la; estoico, envolto por tristeza, é indiferente ao seu sofrimento. De pouco riso, - somente quando um pombo dá voltas, sobrevoa por ele e pousa em seu ombro, ou então, quando come em suas mãos, ele se permite o riso. – mas quando ri, o sofrimento se desprende do seu rosto, como se fosse a sua segunda pele, deixando à mostra as covas no meio da bochecha, apagando qualquer traço de envelhecimento. Os seus olhos tornam-se dois lumes incandescentes, espargindo vida; uma vida que não é dele.
     O tempo passa como sempre passou, com as suas divisões cronológicas e suas peculiaridades, porém ele o sente linear. Não importa qual a hora do dia, qual o dia da semana, qual a semana do mês, qual o mês do ano, ou qual ano que fosse, para ele, todos os dias são imutáveis, como se a mudança, perceptível, do dia para a noite, do dia de hoje para o dia de amanhã não lhe chegasse aos sentidos. A não percepção da mutabilidade do tempo o faz não perceber, também, a mutabilidade que o tempo inflige ao seu corpo. Envelhecido, as únicas cores que distingue são o branco e o preto com as suas nuanças. Solitário, ele ouve apenas o silêncio, sua voz há muito emudeceu. Enfim, se ele tem algum sentido, sua mente não o verbaliza, pois não se visualiza nenhum traço de sentimentos em seu semblante.
     Os pombos alimentados tomam o seu rumo, alçando voos curtos em busca de abrigo. Ele os vê se distanciar, permanecendo-lhe um vazio inelutável, uma solidão silente e desarrazoada. A ociosidade não o desespera e nem tampouco o faz se sentir inútil. Pega um jornal deixado no banco da praça, não com o intuito de ler, mas se fechar em si, criando uma bolha invisível, com um desapego à vida, como se a vida somente lhe tivesse significado ao alimentar as aves. Por um instante ele desvia o olhar do jornal e procura a si mesmo, e se o achasse quereria saber se foi o inconformismo que o levou ao nervosismo, e este a ignorância e consequentemente a perda da família. Porém, a pior perda foi a de si mesmo. Uma lágrima quis vir à luz, mas ele, incólume, cerra os olhos a retendo.
     Contristo e circunspecto, ele está morto em si, o seu corpo é ataúde para a alma.  
    

domingo, 14 de fevereiro de 2010

As horas roubadas da minha filha

Está escrito na bíblia que deus criou o mundo em seis dias, no sétimo descansou, mas não está escrito o total de horas por dia trabalhado e nem se continuou descansando após o sétimo dia. Posto isto, é preciso pôr no papel as palavras certas para dizer que o homem achou por bem que o tempo teria 24 horas, sendo 8 para dormir, 8 para trabalhar e as outras 8 para proveito próprio. Ainda é preciso pôr, não querendo ser repetitivo, mas sendo, que deus criou o mundo com apenas um lume para iluminá-lo. Mas achou por bem o homem nomear e dividir este lume em sol para dia e lua para noite, dotando cada um de 12 horas. Explanação feita e sem mais repetição vou me apegar na divisão do tempo em três. Para ser conciso por que não tenho tempo para escrita e menos vocês para leitura, digo-los que gasto 1 hora ao arrumar para o trabalho – não sou metrosexual, o tempo gasto é para o banho, fazer e tomar o desjejum -, 2:30 para ir e o mesmo tanto para voltar do trabalho, 1 hora para almoçar, outra tanta para jantar. Para vocês não perderem tempo com contas, adianto-lhes que me sobraram 1 hora daquelas 8 para proveito próprio, e como a aproveito? Este tempo gasto assim: 30 minutos esperando o ônibus para ir ao trabalho e o mesmo tanto para a volta. Para não dar tempo de vocês terem pena de mim, vou continuar a crônica, pois a intenção não é essa.
Como não sou adepto da gula e como só o suficiente para me deixar de pé, isso quer dizer, quase nada, eu gasto míseros 15 minutos da 1 hora de almoço. Com 45 minutos para usufruto, eu estava meditabundo quando o celular toca e minha filha do outro lado da linha me pergunta quando me veria, pois a última vez que ela me viu foi domingo e hoje já era sexta. Quando ia lhe responder toca o sinal, era hora de trabalhar. Explico que o meu tempo de almoço tinha acabado e que o chefe estava me chamando e que no sábado conversaríamos. A ouvi dizendo: “que saco, preciso de outro pai”. Pai, no caso o celestial, peço-lhe que pare de descansar e olhe para o teu mundo e prolongue o tempo, porque como as coisas encaminham não sobrará tempo para dedicar a ti.
O tempo já me é escasso, estou digitando isso no sábado, minha filha quer todo o tempo que estou em casa para ela, o filho quer colo, e a esposa quer... bem deixamos as reticências. Por isso antes de terminar ia-me esquecendo de dizer que meu tempo, quando vago, é de reminiscência. Tão vivo como o agora são minhas lembranças. Minha tia-avó a pilar o arroz, e meu tio-avô a ralar o coco para preparar a massa de cuscuz, e eu vendo tudo isso, de cócoras, em cima do fogão a lenha esquentando o corpo do frio da madrugada porque o sol ainda não tinha rasgado a cortina escura que cobria o céu dotando-o com as cores do dia. Ralho-me a pensar quais serão as lembranças de infância da minha filha. Ela lembrará que seu pai, aos finais de semana, ia para cozinha fazer a macarronada que ela tanto pedia, apesar da recomendação médica proibindo devido ao seu colesterol alto, e fazia isso por saber que há prazeres que não devem ser limitados. De limites basta o tempo, assim determinado pelo homem.
Ufa! Terminei, e lá se foi meu tempo. Ave o tempo!


24/01/08

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Sob um pé de verso: sobre coxas e sobrecu - Última parte


“Entre as lembranças que cada um de nós possui, há algumas que não contamos senão aos nossos amigos. Há outras ainda que não confessaremos senão a nós mesmos, e, aliás, sob o signo do segredo. Mas existem enfim coisas que o homem não consente nem em confessar a si mesmo. – Dostoievski”

Aqui termina a saga do menino que virou um garoto, e o garoto virou um homem sem deixar de ser menino, pois o homem é feito e refeito todos os dias, nunca completo para absorver e ser absorvido. Obrigado, caro amigo Élcio, por me dar a oportunidade de voltar para trás e perceber que por mais adiante que eu esteja o meu passado me segue, não como se me ensinasse a ser, mas para saber que ser é uma eterna construção de si.

     Aquele foi o último ano de sua inocência. Ele ainda acompanhava a sua mãe nas aulas de Francês e Latim, ajudava-a a moldar na argila os bonecos que enfeitaria a lapinha, mas já não acreditava em Papa Noel. Apesar da proibição do pai, lia livros de bolso de bang-bang. Mesmo com a permissão do pai, folheava as revistas de nu feminino, mas não fazia uso das mãos para conhecer seu corpo temendo o castigo divino. Porém o seu corpo pedia conhecimento, o menino não mais existia, nascia o homem.
     Enfim o menino tornou-se um garoto, e o garoto queria ser homem. Seu pai, necessitando de ajuda na criação das aves, lhe ensinou tudo sobre as mesmas. Diferentemente do que ele pensava, as aves não botavam os ovos com a casca dura. Seu pai lhe ensinou que as aves tinham a cloaca muito quente, e assim que os ovos entravam em contato com o ar frio, a sua membrana externa endurecia. Desse dia em diante ele pensou as aves de uma forma diferente, libidinosa até. Entre o pensar e o agir foram poucos passos. De tanto agir e pouco pensar, seu pai acabou descobrindo, e para lhe dar uma lição matou a sua ave favorita, uma pata. Você aprenderá a forma correta de comer um animal, seu pervertido, lhe disse seu pai.
     Ceia posta, família reunida, o pai empurrou a travessa com a ave assada para o garoto se servir da parte que mais o apetecesse. Não se fazendo de rogado, ele cortou o sobrecu da pata e o mastigou pausadamente demonstrando, com malícia e escárnio, o prazer que aquela parte da ave lhe proporcionava. Seu avô percebendo que a atitude do neto era provocativa, o chamou para perto de si e acarinhando-o disse:
     - Esse meu neto sabe apreciar os prazeres que a carne lhe oferece. E olha que não é guloso, escolheu a parte menor da ave.
     Um dos empregados da padaria do seu pai e ajudante na criação das aves emendou:
     - Ele só é guloso para esta parte da ave quando ela está viva.
     Apesar da ousadia do empregado em verbalizar o que deveria ser ocultado de todos, não teve quem não risse.
     Ah, ia esquecendo. E uma mulher, entre risos, complacente, cacarejou:
    -Meu Deus, esse garoto... Esse lindo garoto... Ah! Em que vai se transformar?
     E a voz da mulher exacerbava gozo.

* A foto é da cidade que eu nasci e onde a história se passa.