Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

sexta-feira, 25 de junho de 2010

História

Eu nunca fui afeito a tecnologia, considero-me um “intecnológico” inveterado, e olha que não é por falta de conhecimento, mas uma opção. Lembro-me de ter sido apresentado a uma máquina de datilografar Remington, em 1972, um monstro para a época, e, por imposição do meu pai, sempre severo na educação dos filhos, fui obrigado a aprender usá-la, apesar dos meus minguados oito anos. Aprendi, mas usá-la... Fui engolido pela máquina. Anos mais tarde ganhei uma Olivetti compacta laranja, e para desespero do meu pai, eu preferi o bom e usável papel e lápis.
Anos sobre anos depois, eu comprei um celular com a intenção de usar o editor de texto para escrever do que o próprio telefone para telefonar, mas quase sempre as mãos, ao digitar, não acompanhavam o pensamento, então, o bom e usável papel e, agora, caneta permaneceram para o celular ter um uso mais apropriado, como despertador e relógio. Como o avanço tecnológico, o celular adquiriu tantas utilidades que usá-lo para receber e fazer chamadas é raro.
Era época de haver e ter, os estudos e o trabalho passaram a ser o foco principal; eu, precisando maximizar o tempo, passei a escrever no transporte público que me levava de casa para o trabalho e deste para a escola. Com o passar do tempo, eu adquiri uma técnica em escrever no ônibus em movimento, mantendo-a até hoje. Contudo, houve época que pensei comprar um minigravador na intenção de gravar as minhas histórias e depois transpô-las para o papel. Desisti da ideia, pois, certamente, iam querer me pôr em camisa de força, apesar de São Paulo ser uma cidade de, e para, loucos. Mormente se literatura e loucura, além de rima, no fim das contas, habitarem o mesmo teto, ou seja, a cabeça de um escritor. Por isso, eu permaneci, até a data de hoje, com o bom e usável papel e caneta, rascunhando as minhas histórias.
Isso dito, eu tenho como hábito acumular vários pedaços de papeis com as minhas histórias, e talmente as bordadeiras quando obram colchas de fuxico, eu vou costurando-as até ganharem formato definitivo após várias revisões.
Devido à insistência de alguns amigos que vêem valor literário nos meus escritos, incentivando-me a escrever e publicar um livro – escrever possa ser conseguível, publicar cabe aos amigos moverem mundos e fundos, mais fundos porque mundos se movem por si só -, eu estou, se não me engano, na minha quarta tentativa de escrever um.
Como havia dito que loucura e literatura, além de rima, habitam o mesmo teto, eu, na minha loucura literária, quando escrevo parto sempre do final para chegar ao início e alcançar o meio. Neruda já havia dito que escrever é fácil, inicia-se com uma palavra e termina com um ponto, no meio, enche de ideais. Portanto, com a história com fim, meio e início pronta, como a escrevo em retalhos de papel, eu fui costurá-la; para minha surpresa, eu tinha perdido o meio da história, ou, como muitos gostam de dizer, o fio da meada. A personagem da história, que de louco não tem nada, vive me perturbando para eu dar um fim na sua história, ou seja, reescrever o meio, pois ele sabe que é devido o quê lá está escrito, a razão do seu fim, apesar de ter tido um início promissor.
Agora eu vivo um dilema, não sei se mato a personagem por não agüentar a tortura da cobrança, e, consequentemente, dou fim a mais uma tentativa de escrever um livro, ou, dou ao livro outro fim, melhor dizendo, dou a história outro fim reinventando um novo começo, nem que para isso seja necessário contar a mesma história, e entre o fim e o começo encher de ideias.

* Este texto é dedicado ao meu querido Amigo Osvaldo do blog  http://mautristeefeio.blogspot.com por tanto me incentivar a escrever um livro e por achar valor literário no que eu escrevo.

domingo, 20 de junho de 2010

Desatino de um nordestino

 
    Quando eu saí de Brasília com o meu cabelo a lá Pepeu Gomes, ainda tinha muito da minha baianidade, pois Brasília, com os seus dezesseis anos, procurava uma identidade e pouco importava se você era baiano, mineiro, carioca ou gaúcho, acolhia-o como seu.
    Antes que alguém se pergunte quem é esse tal de Pepeu Gomes, explico, é um cantor baiano, cuja música de maior sucesso tem esses versos, “se deus é menino e menina, sou masculino e feminino...”; portanto, provavelmente, essa música deve ter sido composta em sua homenagem, não que ele fosse deus, mas como aquele cabelo liso e comprido abaixo dos ombros, ele estava mais para menina, mesmo sendo menino. Concluindo, eu tal qual ele cagado e cuspido, lógico, sem a sua fama.
   Quando cheguei a São Paulo com o meu cabelo a lá Pepeu Gomes, as pessoas colocavam uns olhos sobre mim como se buscassem uma identidade, um gênero específico, e isso me aborrecia, pois quando se nasce no sertão, macho, você não opta, não muda de gênero, grau ou número, é macho e ponto, mormente quando o sertanejo carrega uma jeguice genética para lhe dar sustentação e agüentar todo o peso de ser quem é.
   Quando aprocheguei-me em São Paulo trazendo no cocuruto um cabelo de Pepeu Gomes fiquei maravilhado com o mundaréu de carros quase embucetados um atrás do outro, alumiando os letreiros das Casas da Banha, Buriti, G. Aronso, Mesbla, Mappin e Arapuã, e deu nos meus miolos que seria rico. Mas menino, quah! Besta, tabaréu, tabaroa de dar nos quartos, eu não assuntei que São Paulo é um mundinho onde se come sonhos e caga arrogâncias.
   Oxente! Mainha, que não é besta não, não ia querer que eu desse com os burros nágua; bastou painho ter dado, diga-se de passagem, para ficar bem entendido, meu pai deu foi os burros nágua, pois como nordestino paidégua, para não aperrear com o peso de ser quem é, a sua jeguice é porreta de arretada. Como ia dizendo, mainha, que de besta não tem nada, sabida que só ela, cortou o meu cabelo como quem soubesse que eu sofreria um sertão de preconceito, não de gênero, mas de regionalidade.
   Mas menino, quah! Sofri tanto preconceito que fiquei cuma reiva da gota serena destes cabruncos que mangavam deu. Esses chibungos, filhos de uma égua raparigueira, boiolas chinfrins, chibatas, baiotolas trim-trim assim-assm, cabrobós empertigados. Fiquei tão zureta, arretado, zuruó da vida, aporrinhado e avexado até, por ser chamado, na escola, no trabalho, ora de baiano burro, ora de burro baiano por falhar e até por não que eu joguei fora a régua e o compasso e munido de lápis e borracha reinventei a minha própria história. 
   Quando São Paulo chegou a mim, Pepeu Gomes se encontrava no ostracismo, o cabelo estava cortado a lá reco como se dizia na época, a régua e o compasso há muito tempo eu havia perdidos pelo caminho. A minha história havia sido reinventada em outra língua, sem a musicalidade baiana, sem os oxentes, porretas, mainha e painho, carregada de palavras com tantos erres e aprendidas em noites trancado no quarto.
   Ô meu! Somente agora, passados trinta anos, após trocar de vocabulário, percebo que não me signifiquei, mais do que perder a identidade, mano, vejo que de nordestino eu só tenho o tino. Puts! Perdi foi muito mais. Pô meu! Perdi foi o meu norte.
   O meu norte permaneceu escondido nas mãos do vô Pedro que chorou ao me ver partir, e sentado embaixo do pé de amêndoas esperou-me por um sertão inteiro.
   Oh, vida paidégua, vida da peste que não se recupera o que se perdeu. Isso é mais que vida Severina, é desatino de um nordestino. 


* Tanto este texto como o anterior bebeu de sua inspiração no blog  http://rumoaescrita.blogspot.com da minha amiga Deia.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Papagaiando entre búfalos

É sabido que em época de copa do mundo os brasileiros tornam o verde mais verde, o azul mais azul, o amarelo mais amarelo e o branco, na possibilidade de ser por ser branco, mais branco. E vestem estas cores com tanto entusiasmo que os vemos passarinhando pelas ruas talmente papagaios. Porém, em dia de jogo do Brasil se assemelham a uma manada de búfalos caçando ou sendo caçado, ou seja, atropelam o quem veem pela frente para assistirem vinte e dois marmanjos correrem atrás de uma bola para enviarem na meta um do outro. A ordem e o progresso, nessa hora, tanto quanto a educação, não é meta. Por isso este blog se veste de brasileiro, tentando ser mais papagaio e menos búfalo.
Não sei quem cunhou a frase: São Paulo não para; provavelmente, quando a fez não tinha carro, ou então o crédito para ter um não era tão fácil como é hoje, onde se compra um talmente móveis nas Casas Bahia, em suaves prestações a perder de vista. Por isso não me arrisco a sair de carro, em São Paulo, em dias úteis, posto que eu fique parado, apesar de que todos os dias parecem ser dia útil em São Paulo, ou seja, a cidade não para.
De volta do meu trabalho para a minha casa às treze horas, chegando à estação do trem, eu me senti como Cabral ao achar o Brasil em 1500, pois os papagaios pululavam vindos de todas as direções. Porém, bastou o trem chegar, abri as portas para eles se transformarem em búfalos. Os guardas ferroviários, que tem como função dar segurança aos passageiros, vêem-se obrigado a empurrá-los para dentro do trem – em detrimento a duas mulheres que foram impossibilitadas de descerem – para que as portas do mesmo fossem fechadas. Esperei o trem seguinte, pois como nordestino cabra da peste, macho da moléstia, mesmo antes de minha mãe saber o gênero da cria que vinha, muito mais ao ter nascido, e mais ainda e para sempre quando morrer, posto que eu não admito ser enterrado, mas cremado, para não ouvir nenhum engraçadinho dizer que jogou terra no meu buraco, jamais permitirei ser empurrado, mormente se é por trás.
Sou o primeiro passageiro no ponto de ônibus, e, como de hábito, permito uma senhora de idade, uma grávida e outra com uma criança de colo entrarem na minha frente, uma pessoa atrás de mim resmunga por eu ter permitido, alegando que não era horário apropriado para as mesmas estarem na rua. Às vezes, quando sou atacado pela ignorância, eu me calo para não me assemelhar a ela. Olho para trás e vejo atrás de mim um búfalo bufando travestido de papagaio. Isso é bem brasileiro.
Por fim chego em casa dez minutos passados do primeiro tempo do jogo do Brasil contra a Coreia do Norte. Sou recebido por beijos e abraços dos meus filhos, convidando-me a sentar no sofá e assistir o jogo. Preferindo assisti-los ao jogo, fico apreensivo ao ver minha filha roer as unhas devido ao resultado do placar do jogo até aquele momento ser de 0x0. A apreensão logo esfuma ao ver arvorar nela o entusiasmo quando o Brasil faz o primeiro gol, eu permaneci impassível no sofá, assistindo-os como se o jogo nada dissesse a mim. Até me perguntei o porquê de tanta imparcialidade diante do jogo. O entusiasmo somente me veio no segundo gol ao vê-la dando pulos e urros de alegria juntamente com o irmão. Talvez o meu desentusiasmo e entusiasmo dela sejam porque ela tem nove anos e eu cinco vezes mais; ou, plausivelmente, o entusiasmo me arvora quando os vejo felizes não importando qual o motivo.
Quando a esposa chegou a vitória do Brasil era tão certa quanto a alegria das crianças; e movido por esta alegria, eu me vi no ano de 1970, a transmissão televisiva chegava a minha cidade, e como éramos uma das poucas famílias que possuía um aparelho de televisão, eu cobrei cinquenta centavos de entrada para alguns garotos assistirem os jogos, sem o conhecimento dos meus pais, pois eles me ensinaram, muito mais em atitudes do que em palavras, a ser demasiadamente humano, ou seja, justo e bem-educado tanto em família, quanto em qualquer lugar, mesmo se neste lugar eu me sinta entre búfalos.
Eu sou trazido de volta pelo beijo da esposa e pelo pulo das crianças sobre nós, alegres em demasia pela vitória do Brasil.
Eu me nutro desta alegria e entusiasmo, diga-se de passagem, bem brasileiro, sabendo que amanhã será mais um dia de vaqueiro, vestirei minha alma de verde, amarelo, azul e branco pra papagaiar entre búfalos a boa educação e a justiça.

sábado, 12 de junho de 2010

Meu jeito de dizer que te amo


   Criado entre mulheres, eu sempre tive meu pai como referência. Na infância foi maravilhoso, pois todo pai é um herói para o filho. Na adolescência foi o meu inferno, pois de herói, o pai passou a ser o bandido, e num processo de afirmação, passei a ir de encontro a tudo que ele acreditava, a tudo que ele era. Sem saber, eu me sentia sozinho; quando fui perceber, eu já era “balzaquiano”, tinha passado dos trinta, solteiro e solitário.
   Com todas as irmãs casando, a casa foi ficando vazia, eu mais ainda. Vindo de relações frustradas com mulheres casadas, eu prometi a mim mesmo que não casaria, muito menos, amaria.
   Em 1996 o sistema público de transporte na cidade de São Paulo estava um caos, principalmente nas áreas periféricas. Os clandestinos, como eram chamados os perueiros, tomavam conta de ruas e avenidas, transportando as pessoas, devido à incapacidade da prefeitura de administrar o transporte público. Quem era transportado no banco traseiro destas peruas (assim era denominado os automóveis Kombi), para descer, tinha que esperar a pessoa à frente descer, inclinar o encosto do banco, e depois o próprio banco, dando passagem a quem quisesse desembarcar. Ser transportado assim causava medo às pessoas, pois os clandestinos eram perseguidos pelos fiscais da prefeitura, às vezes acompanhados por policiais. Muitos perderam a vida. Quem, em sã consciência, poderia imaginar que no meio deste caos o amor haveria de nascer. Mas até no chão mais árido pode brotar a mais bela das flores.
   Quando eu a vi pela primeira vez, ela estava plantada no ponto de ônibus, esperando a perua, toda encolhida, sentindo frio apesar de estarmos em setembro. Ainda acompanhado dos meus preceitos, a vi, mas não lhe dei atenção. Estava cumprindo a minha promessa de não mais amar. Porém, até no coração mais árido pode brotar o mais belo dos amores quando é polinizado pela mais bela das flores. Ano mais tarde eu viria a saber que ela havia prestado atenção em mim, mas como sempre me via lendo, ela me tomou como homem casado.
   Houve o tempo de regar o meu coração árido para umedecê-lo. Bastou uma semana para eu vê-la e mais outra para enxergá-la. Quando eu a olhei na terceira semana, eu não intentei o físico. As minhas relações anteriores foram todas vistas com os olhos pra o corpóreo, e as frustrações decorridas destes relacionamentos me fechou para o amor, pois ao olhar desta maneira, eu não soube enxergar. Quem olha e não enxerga, não consegue sentir. Então eu a olhei além do físico, onde o amor realmente habita, na alma.
   Na sua magnificência, deus a fez do melhor barro, moldurando o seu corpo simetricamente, dando-lhe uma beleza exótica; porém, em sua sabedoria, ele lhe soprou o que mais belo há nela, a alma. Neste dia ela nasceu para mim, com corpo de mulher e jeito de menina, uma alegria exuberante, difícil de ser encontrada, mormente se passou por intempéries. E não era a alegria dos tolos, mas a de quem sabe levar a vida com leveza. E ela soube me levar.
   Quando entrou na perua, ela sentou atrás do banco inclinável, e eu do seu lado. Próximo ao ponto final havia somente eu e ela de passageiros. O motorista freou a perua jogando-a sobre o banco inclinável, deixando-a em uma posição incômoda. Pensei que ia ouvir impropérios e reclamações. Ela saiu incólume, entre risos soltos. Persegui-a com os olhos até sumir da minha vista, sempre sorrindo. Anos mais tarde nosso terceiro filho seria agraciado com esse mesmo sorriso, essa mesma alegria.
   Ela havia sumido por uma semana, eu tinha perdido a esperança de voltar a vê-la. Neste ínterim, um primo que afogava as suas mágoas debruçado em cima de latas de cervejas, chamou-me para afogar as minhas. A natureza foi prodígio comigo, dotando-me com um organismo imune as bebidas. Passados sessenta minutos, o meu primo havia bebido seis latas de cervejas, e eu estava na primeira, ainda cheia, quando, repentinamente, eu a vi do outro lado da rua. Até hoje o meu primo me espera no mesmo bar, na mesma mesa, debruçado sobre latas de cervejas; pois saí dali avoado para nunca mais voltar.
   Afoito, eu fui ao encontro dela e lhe fiz tantas perguntas sem perceber que havia deitado uma bíblia em seus ouvidos. Chegada de Santana do Parnaíba sem resolver os seus problemas com a justiça eleitoral, ela me pediu a ajuda para justificar o seu voto; estávamos no dia 14 de novembro de 1996, aproximadamente às 22h00min. - Trezentos e trinta seis dias depois nossos nomes seriam entrelaçados em duas alianças de ouro; entesouraríamos. - Um dia depois, aos quinze dias de novembro de mil novecentos e noventa seis, eu senti o gosto do barro de deus em seus lábios, após beijá-la. Eflúvios seráficos exalavam dela. Neste dia eu havia renascido para o amor, para a vida. Anos mais tarde esta mesma sensação de renascimento eu tive com o nascimento de nossa filha.
   Um ano depois deste dia nos noivamos, e passado mais um ano nos casamos. Anos mais tarde percebi que a unicidade do casal somente se dá se a soma de um mais um tiver o intuito de multiplicar, cujo resultado maior é a família, indissolúvel.
   Nestes treze anos, seis meses e vinte oito dias, minha flor de Liz, minha neguinha, eu lhe disse que te amo de vários jeitos; porém, sempre há um jeito novo de dizer. Portanto este relato com intenção de crônica, ou de romance, ora de novela, ora de conto de fada, quiçá uma intenção de vida perpetua, ainda não seja o meu jeito de dizer que te amo.
   Croac, croac, croac! Esse sim é o meu jeito de dizer-lhe eu te amo, na minha língua. Como, você deve estar se perguntando. Lembra-se que eu espero você dormir? Saiba que faço isso para poder voltar ao meu estado natural, de sapo, sem você perceber. Você, também, deve se lembrar que eu sou o primeiro a acordar; saiba que faço isso para poder beijar-lhe assim que você abre os olhos, e voltar a ser o seu príncipe encantado. Se por algum momento, acordado, fui símile a um sapo, saiba que sempre intentei a similitude de um príncipe para lhe dar uma vida de conto de fada, amando-lhe para sempre, pois este é o meu melhor jeito de viver, ao seu lado.
   Eu te amo, ou seja, croac, croac, croac!
  
  
    

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Herança

Ela arrastou o filho evitando pisar no gramado em volta da trilha calçada com ladrilho português. Ajeitou-o no banco traseiro do Hilux pedindo que afivelasse o cinto. Voltou para dentro de casa sem perceber que havia pisado no gramado. Saiu, novamente, trazendo nas mãos os sacos de lixo separados para reciclagem na noite anterior e os acondicionaram em seus respectivos contêineres. Retirou da bolsa a tiracolo Louis Vuitton um frasco de álcool em gel – hábito adquirido depois da primeira pandemia da gripe suína -, e fez a higienização das mãos ali mesmo, na rua. Já dentro do carro, através do controle remoto, lacrou todas as portas da casa acionando o sistema eletrônico de vigilância, e, cantando os pneus, saiu costurando as ruas, ziguezagueando entre os carros, como se assim recuperaria o tempo perdido nos afazeres.

O suor porejava do seu rosto e se misturava na água lodosa que corria pela sarjeta. Monstros inauditos povoavam o seu corpo, intrinsecamente, comendo os seus órgãos. O martelo de Thor timbalejava ao chocar-se com seu cérebro, ensurdecendo-o. Das hordas do inferno, os filhos do lúcifer vinham montados em dragões cuspindo fogo. Ele, em completo desespero, se arrastava procurando uma guimba de diamba para suavizar os delírios provocados pela abstinência ao craque.

A mãe desferiu um tapa em direção ao filho, atingindo-o, de raspão, no rosto por este a irritar devido ao atraso; e, possivelmente, a criança chorou não pelo tapa em si, mas pela possibilidade de chegarem atrasados para o início da sessão do filme “A era do gelo – 6” em quarta dimensão.
A mãe, mais irritada ainda com o choro do filho, fora de si, parou o carro no meio da pista, puxou o freio de mão, desafivelou o cinto de segurança, virou-se e, aos gritos, pediu-lhe para parar com o choro. Um sussurro lhe chegou aos ouvidos, quase inaudível, tartamudeado pelo medo, chamando-lhe a atenção, “maaa... maaa... ê”. Ela viu o filho com dedo apontado para o para-brisa traseiro, assustado com o monstro brilhante se aproximando da traseira do carro. Quando ela olhou adiante, procurando a pista, viu, apenas e somente, uma luz intensa ofuscando os seus olhos. O grito dos pneus sobre o asfalto a fez voltar a si.
Ela virou-se lestamente. Sem afivelar o cinto, ela ligou o carro, pisou fundo no acelerador e olhou no espelho retrovisor. Os faróis do caminhão iluminando o Hilux aproximavam cada vez mais. O estrondo da buzina do caminhão abafou qualquer pedido de socorro, dela e da criança. A atmosfera ao redor do carro foi tomada pelo cheiro de borracha queimada, e o Hilux se viu coberto por uma tênue fumaça gris. Ela havia se esquecido de soltar o frei de mão.
Quando ela voltou a olhar o espelho retrovisor, o caminhão estava com o farol baixo. Não passava de um ponto, em movimento, perpendicular a linha no horizonte, símile a um dos caminhões de brinquedo do seu filho. A criança amuou-se na porta lateral do carro, entremeada por raiva e incompreensão deixou seus olhos se perderem na paisagem.
O shopping ainda distava algumas horas de onde eles estavam; a mãe, ainda rancorosa, irritada consigo mesmo, não menos com o filho, abaixou o espelho retrovisor para avistar o filho e com os olhos o fulminou. O olhar da mãe o culpando, amedrontou-o mais do que o acidente não ocorrido horas atrás. Ela acelerou, mais e mais, o Hilux furando todos os semáforos vermelhos. No centro, na região conhecida como cracolãndia, ela foi obrigada a parar porque os carros a sua frente assim fez obedecendo à sinalização.
Após o semáforo fechar, crianças formigavam saindo de todas as esquinas, batendo nos vidros dos carros; algumas esmolando, outras vendendo, a maioria fazendo malabares em troca de qualquer trocado para não ter que vender seu corpo por um prato de comida. Assim que o semáforo abriu, todas as crianças voltaram para a calçada rindo à toa; não sei se toda criança é feliz por natureza, ou, ali, a probabilidade de felicidade estava no interlúdio do abrir e fechar dos semáforos.
A mãe, antes de o semáforo abrir, já estava acelerando o carro, segurando-o na embreagem. Assim que abriu, os pneus cantaram um som agudo e nervoso. O fluxo estava lento devido à quantidade de carro. O seu filho notou uma criança se arrastando pela sarjeta, com a boca colada ao meio-fio, trêmula, com o olhar perdido. Permaneceu olhando, agora de joelhos sobre o banco, pelo para-brisa traseiro, até perdê-lo de vista.

Ele se arrastou com os joelhos sangrando, tateando a calçada a procura de uma guimba de diamba. Avistou, também, o garoto e chorou por saber que há tempos atrás, em um carro igual aquele, sua mãe o espancou, com a anuência de seu pai, por ter derramado o sorvete no estofamento do carro. Foi a última vez que ele foi espancado.

Extasiado pelas vendedoras das lojas do shopping devido à similitude as bonecas chinesas de porcelana, o filho foi arrastado pela mãe em direção ao cinema. Com óculos apropriados para assistir filmes em 4D, eles tiveram a sensação de vivenciar o mesmo, pois se no filme chovia, do teto caíam gotículas de água dando a impressão de chuva; se nevava, a temperatura ambiente caía tanto na sala de cinema que se tinha a sensação de estar nos pólos; se alguma árvore fosse cortada, o ar era borrifado pela essência da mesma, dando a sensação que o corte foi real. Eles saíram do cinema entorpecidos.

Ele não teve outra opção. A abstinência as drogas o levou a padaria; frêmito, com arma em punho, ele, tremendo tal qual vara verde, com a voz, também trêmula, tartamudeou o assalto.

Ela entrou no Hilux e acomodou o seu filho no banco traseiro beijando-lhe a testa. Serena, passou a mão sobre os seus cabelos, rosto e a pousou no seu queixo por alguns segundos. A sua irritabilidade diluíra durante a sessão cinematográfica. Quais marcas a sua violência deixará em seu filho é uma herança que cabe ao tempo dizer. O carro dirigiu-se a marginal pinheiros evitando o centro da cidade.

A noite chegara trazendo consigo todas as personagens. Ratos, baratas e viciados se misturavam, na região da cracolândia, as prostitutas, travestis, traficantes e notívagos.
O Hilux ia a setenta por hora na pista local da marginal; os ocupantes pareciam estar em outra dimensão. Quilômetro distante dali, o estrondo da bala propagou no ar, a bala atravessou a rua e se alojou, lateralmente, na cabeça dele. Arremessado contra o balcão, o seu corpo quebrou o vidro e seu sangue se misturou ao glacê do bolo.
O dono da padaria o pegou no colo, apontando a arma para o policial, disse-lhe, “É de brinquedo”.
“Hoje. Amanhã será uma de verdade, e aí? Eu lhe digo. Vocês correm para a TV reclamando a falta de segurança”.
“Mas é uma criança...”
“Ora, as crianças. Disse o policial com desdém. – Olha para essas – disse apontando para as crianças, viciada em craque, do outro lado da rua -, elas não têm isso aqui – ajuntou o dedo indicador ao polegar – de inocência. São frutos podres. O mal tem que ser arrancado pela raiz”.
O policial saiu da padaria tragando um cigarro. Com a boca fez anéis da fumaça expelida, atravessou a rua em direção as crianças, jogou o cigarro no chão e pediu a um deles que o apagasse com a sola do pé, pois os mesmos estavam descalços. Um deles, demonstrando uma coragem inabalável, pisou no cigarro; imediatamente o policial pisou em cima do seu pé, esmagando-o.
“Sabe qual a diferença entre o meu cigarro e você? Nenhuma. Os dois me fazem mal. Porém, garoto – o policial fez uma pausa procurando nos olhos do garoto algum medo; mas, no meio em que ele vivia, ter medo era sentenciar-se à morte, por isso, destemido, ele procurava, de alguma forma, entender a sua vida. Desde que ele nasceu, indiferente as intempéries, tinha conseguido isso até aquele momento - , você eu posso eliminar, o vicio ao cigarro é mais difícil”.
Dia mais tarde, o garoto empunharia uma arma, colocaria uma garrafa de coca-cola sobre a trave do campo de futebol, e, após vários tiros, se contentaria ao derrubá-la tendo em mente a imagem do rosto do policial.