Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Persona non grata


Capítulo II

   A vela começou a bruxulear no bufê e iluminou um pouco a sala. A pouca luminosidade me fez perceber a avidez sexual no seu olhar, o brilho incomum do seu rosto aveludado além do normal, o seu sorriso transparecendo uma malícia sádica e impudica acentuado por uns lábios carnudos e sedosos. O movimentar da sua língua sobre os lábios aguçou os meus desejos, incitando-me à concupiscência. A minha cupidez por ela fez-me ir ao seu encontro, contudo, o lume da vela foi se intensificando e ampliando o meu campo de visão. Não estava acreditando no que estava vendo, não poderia ser real, eu estava dentro de um pesadelo. Ela girava as contas do que parecia ser um rosário. Retive-me. Desesperado, eu saí correndo em direção contrária a ela, posto que o medo suplantou os desejos. Na pressa, eu bati com a perna na lasca de madeira da mesinha de centro. A dor foi sentida na hora, o líquido aquoso e quente escorrendo da minha perna dava a entender que o que estava acontecendo comigo era demasiadamente real. Estava sangrando. Sem tempo para raciocinar, pois o medo só permite a ação por instinto, eu pulei pela janela.
   Quando eu corri para saltar pela janela, ela poderia ter me retido se assim desejasse, pois a janela ficava próxima de onde estava o bufê, mas não fez. Seus olhos demonstravam uma certeza inaudita que eu voltaria. Ao passar por ela o meu terror aumentou ao divisar o seu marido ao seu lado. A intensidade do lume fez sobressair do seu rosto os seus olhos azuis. Inopinadamente, o brilho que saía de suas pupilas requeria vingança.
   O instinto de salvação fez-me saltar pela janela. Na queda, o raciocínio voltou, lembrei que minha família tinha ficado. Tentei agarrar em algo, porém, fora da casa não havia forma, a cor predominante era o branco e só havia dois estados, o líquido e o gasoso. Se houvesse alguma salvação, ela somente se daria pelo milagre divino.


Imagem MYRA LANDAU

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Uma breve historieta sobre uma vida brega


   Eu tenho uma casa e tristezas, não apenas as dos solitários, mas também, as dos desesperados. E rio dissabores para logo em seguida preencher o meu rosto com rios de desgostos.
   Não sinto mais o cheiro do seu corpo sobre a minha pele. O odor de cebola e alho intricado nas minhas digitais encobre qualquer possibilidade de outro aroma, seja da Avon ou do Boticário. O cheiro de álcool que dos seus poros evola, juntamente com o seu hálito amanhecido, fere mais do que o corte que o machado faz na árvore, se as dores são iguais, os aromas diferem.
   Os caminhos que seus amigos de bar lhe ensinam não são trilhas fáceis de seguir, você ziguezagueia perdido e quando encontra o caminho de casa, ao entrar, sou eu que me perco de mim. Nossos gritos não abafam o romantismo cantado por Amado Batista, estridente, saído da caixa de som do carro estacionado na garagem do vizinho. E eu insisto nesse modus operandi brega, cozinhando os meus remorsos no coração enquanto a panela no fogo coze ossos com filetes de carne. Nos meus cabelos permanece o aroma do mal cozido, engordurando-os. E isso não é um retrato de uma vida brega, cuja trilha é de um cantor que ninguém conhece, Bartô Galeno, mas um álbum completo.
   Enquanto você pula de bar em bar atrás de bebidas e amigos, eu me planto no sofá mudando o canal da TV em busca de refúgio para uma diversão esquecida num futuro não concreto. Não aguento mais o riso fácil do Silvio Santos, a verborragia do Faustão e nem a insinceridade do Gugu, pois sei que na semana me cansarei das receitas da Ana Maria Braga. Se ao menos eu pudesse participar do Big Brother, não pelo prêmio, queria ser desejada sem nenhum pudor. E nem sonho mais os sonhos das mocinhas de novela, pois os mocinhos perambulam entre o bem e o mal, até a ficção é mais real que a vida.
   E pensar que, no início do namoro, nossas tardes no coreto, rodeados por crisântemos e tantas outras flores, ouvíamos a banda tocar Fernando Mendes, Odair José e Wando, enquanto você declamava poesias decoradas de algum folhetim com promessas de amor perfeito.
   Quantas noites enluaradas, deitados na grama, você desenhou com os dedos uma constelação de estrelas com promessas de não se esquecer de mim. Hoje minhas noites é para velar tua sonolência alcoólica. Sem céu, nem a possibilidade de vislumbrar uma felicidade tomando forma nas nuvens eu tenho; sem chão, os meus pés não têm a possibilidade de bailar; sem par, ponho-me a ouvir Waldick Soriano cantar "eu não sou cachorro não". Não, é a vida que é.

Foi AQUI que me inspirei para a feitura do texto. 

Recomendo clicar no nomes dos artistas, ouça no you tube e enriqueça a sua cultura, afinal, ser brega é chique.

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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Persona non grata


Capítulo I

   Naquele momento não saberia dizer se as vozes que estava ouvindo eram reais, ou se era parte de um pesadelo. A madrugada estava se encaminhando para a sua metade, acordei assustado. Isso não era para ter ocorrido, o meu sono é demasiadamente pesado. Rolei na cama amiúde e me quedei quando pressenti vultos em volta da cama. O ronco da minha esposa não me permitiu que o sono voltasse - muito mais do que os vultos e as vozes -, pois estes já faziam parte do meu mundo, são com eles que converso quando escrevo as minhas histórias. Sentei na cama me espreguiçando, olhei em volta e percebi que o abajur estava desligado, saltei da cama e apertei o interruptor e ele não acendeu, fiz a mesma coisa no interruptor da luz do quarto e também não deu sinal de vida. Olhei os disjuntores do quadro geral e todos estavam ligados. Fiquei preocupado, o medo começou a me perscrutar. Tateie no escuro em direção à janela e a abri. A brancura vinda do ambiente externo me cegou por instantes. Foi quando tentei colocar o pé para fora de casa que percebi que a mesma estava suspensa em um ambiente totalmente em branco, sem céu, sem chão. Desequilibrado, agarrei-me na maçaneta da porta para não cair na imensidão branca e me vi dependurado, sem apoio para abrir a porta. Torcendo para a maçaneta não quebrar, estiquei as minhas pernas para frente e dei um mortal de costas projetando o corpo contra a porta. Como a porta estava apenas encostada, ela abriu facilmente. Cai de costas no meio da sala quebrando a mesinha de centro. Enfim, O medo apossou do meu corpo quando a vela bruxuleou no bufê e eu vi um vulto parado, olhando para mim. O seu sorriso deixou as minhas pernas bambas, não consegui correr.


Imagem MYRA LANDAU

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Confissão

CAPÍTULO FINAL


   Vi que a perna que empurrava a terrina de sopa para dentro do porão era de mulher. Agachado, eu a agarrei com as duas mãos e a puxei de uma vez só. Quando o corpo dela foi ao chão, o seu grito se tornou audível por toda a casa. Eu tinha que agir rápido. A luz que vinha da parte de cima da casa fez brilhar um objeto que estava próximo da terrina, peguei-o e cravei no pescoço dela. O cabo da colher estraçalhou o seu pescoço espargindo o seu sangue sobre o meu rosto. Não, meu Bispo, eu não tive tempo de me arrepender e nem pedir perdão pelo ato praticado, pois uma mão me puxava para cima, para fora do porão, arrastando o meu corpo pela escada. Quando cheguei à sala, eu estava diante do Demônio, os seus olhos azuis tinham perdido a doçura. Se ao me vilipendiar, ele tinha enfiado dentro de mim o inferno com seus dedos, agora ele ia me mostrar que o inferno também estava do lado de fora. Ele agarrou o meu corpo fraco e me arremessou contra a escrivaninha. A vela de sete dias havia se consumido, não havia luz, estava no sétimo dia. Após a criação do mundo, Deus havia descansado no sétimo dia, meu Bispo. Naquela casa, naquele momento, se Ele tentasse interferir, não adiantaria, pois diante daquele homem, eu vi o Diabo. Eu estava diante de um espelho.
   Assim que ele pôs o pé sobre o meu pescoço, a falta de ar fez com que eu estrebuchasse, e com pés e mãos batendo no chão, eu pedi clemência. Ele sorriu de satisfação pelo pedido, pegou-me pelos pés girando o corpo vária vezes e o soltou satisfeito. O meu corpo foi de encontro à mesinha de centro, quebrando-a. Senti um filete de sangue escorrer no chão, ao passar a mão por debaixo de mim, eu senti o fio da faca cortar um dos meus dedos. Gelei quando ele se encaminhou até a escrivaninha, abriu uma das gavetas, retirou o fumo de rolo juntamente com a caixa com papel de seda para enrolar cigarro e me encarou. Pensei, ele notou a falta da faca. Felizmente não, meu Bispo, ele não notou. Sim, ele continuou me encarando, colocou o fumo na boca e o retirou amiúde. A baba escura escorria pelo canto de sua boca. Sorrindo maliciosamente, ele mediu um palmo do rolo e o cortou com os dentes. Sim, meu Bispo, as suas atitudes eram doentias. Sempre rindo, ele abraçou o rolo cortado com a palma da mão e fez movimentos contínuos de cima para baixo e vice-versa, depois o dilacerou com os dentes em pedaços pequenos. Pegou a seda da caixa, encostou-a na borda da escrivaninha e com os dedos empurrou os pedaços do fumo sobre o papel, enrolou-o, lambeu a ponta de fechamento enrolando-a. Após levar o cigarro à boca, ele abaixou e pegou o guarda-chuva que estava encostado no canto da parede, próximo da porta da saída, batendo o cabo na escrivaninha. Percebi que a sua intenção era demonstrar a resistência e dureza do cabo pelo ruído provocado. Ele não precisava de tanto, bastou eu ver a cor e o entalhe da madeira para saber que era de lei, dura e eficaz se a intenção era ferir, afinal era um legítimo jacarandá.
   Quando ele se encaminhou em minha direção batendo o cabo do guarda-chuva em suas coxas, eu vi, meu Bispo, o terror passando naqueles olhos azuis, como em um filme, audível, pois os seus lábios gesticulavam freneticamente, o inferno você conhecerá agora, e serei eu que emitirei o ticket da passagem. O som gutural de sua voz, a imagem dele caminhando em minha direção, e apenas o cabo do seu guarda-chuva sendo processado pela minha mente fez com que ela ativasse o meu sistema de autodefesa, ou seja, acordou a maldade existente em mim. Eu, lestamente, com a energia que me restava, ergui o meu corpo um pouquinho do chão e enfiei a minha mão alcançando o cabo da faca, porém, não tive força o suficiente para suster o corpo, quando puxei a faca, o fio gélido da lâmina rasgou a minha carne. Ao encostá-la próximo de meu corpo, o sangue quente do meu corpo havia mudado a temperatura da lâmina.
   Meu Bispo, ele afundou os seus joelhos nas minhas coxas. Não, meu Bispo, eu não senti dor, em mim havia somente um sentimento, o de vingança. Ele tentou por várias vezes acender o cigarro, contudo, o fumo ainda estava úmido. Quando conseguiu acender, tragou o cigarro com prazer imensurável, não tão diferente quanto às sevícias praticadas em mim. Ao esbaforir, eu vi o meu medo intricado por entre a fumaça, como se me dissesse, não se iguala a ele. Quando a maldade lhe ataca, ou você se entrega, ou luta, não somente para se salvar, mas também para que essa maldade não se eterniza. Ele não me deu tempo para filosofar, meu Bispo.
   Ao vê-lo erguer o guarda-chuva, eu desferi a faca no seu tórax. Quantas vezes? Não sei, meu Bispo. Só parei quando ouvi os ossos de sua caixa torácica se quebrando com o impacto das últimas facadas. Meu peito estava inundado de sangue, no entanto, a macula permaneceria na alma, não obstante ela já estava maculada somente com a intenção da morte. Não, meu Bispo, não acabou, o pior veio depois quando eu me vi nos olhos dele.
   Após enterrar a última facada no seu peito, o seu corpo tombou para trás, ele, suspenso no fio derradeiro que ainda o ligava à vida, ergueu o guarda-chuva e se jogou para frente. Desviei de sua investida e o cabo do guarda-chuva passou rente ao meu pescoço, ao tocar o chão trincou o piso. É agora, meu Bispo, que meu inferno começou, pois o que fiz está me martirizando, por mais que eu fuja, a culpa me persegue. Tem certeza que quer ouvir, meu Bispo?
   Não há dor pior do que a que dói na alma, a do corpo o tempo cura, a da alma entregamos nas mãos de Deus, mas não nos livramos de senti-la.
   Eu o empurrei para trás apoiando o seu corpo nas minhas pernas erguidas, agarrei o guarda-chuva com as duas mãos e o inclinei um pouco em sua direção, então, com as pernas, empurrei o seu corpo para frente. Ouvi o ruído da sua cabeça batendo na ponta do guarda-chuva, quando o seu rosto ficou próximo ao meu, eu senti certo prazer com a sua morte. Porém, a culpa foi mais rápido do que a minha satisfação. Fiquei extático, em estado de choque por um longo tempo. Somente saí deste estado quando o peso do seu corpo empurrou a sua cabeça para mais próximo de mim, a ponto dos nossos narizes se tocarem. Os seus olhos azuis me fitaram dizendo que ele havia morrido, porém, continuava vivo dentro de mim. Vi-me em um espelho, e aqueles olhos azuis, sem vida, me refletiam. Mesmo se não houver luz... Não há, meu Bispo. De alguma forma não há, com as minhas atitudes, as minhas escolhas, eu trilhei o caminho das trevas. Como ia dizendo, mesmo se não houver luz para refletir a minha imagem ao olhar em um espelho, dora adiante, não é a mim que vejo, é ele, o Demônio. Seus olhos azuis permanecerão em minha mente dizendo que ele vivi em mim.
   Eu sei, meu Bispo, a justiça dos homens me absolveu alegando que eu agi em legítima defesa. Sim, o Senhor me concedeu o perdão, porém, sou eu que não me perdoo. A maldade é fruto da ignorância. E eu sabia, meu Bispo, eu sabia. Mesmo que eu pague minha pena temporal, ainda me sentirei devedor.
   Jesus lutou contra a maldade usando somente uma ferramenta, o amor. Aguentou o peso da maldade em sua carne, e mesmo assim, ofereceu amor. Foi crucificado, morreu e ressuscitou, mas nunca deixou de amar. Permanece aqui entre nós como luz para que possamos, através de sua luz, religar à Deus. Não, meu Bispo, o Senhor não está me entendendo. Eu não estou me comparando a Jesus, o meu sofrimento não tem a mesma grandeza do Seu sofrimento. Apenas quero lhe dizer que ao me olhar no espelho eu via essa luz me refletir, eu me via como realmente era, eu via a bondade em mim. Hoje, apesar de senti-la bruxuleando em algum ponto em mim, eu só consigo enxergar trevas. A maldade é uma capa invisível que não deixa essa luz se intensificar e refletir quem eu era. O mal viceja em mim, meu Bispo.
   Sim, desnudarei do hábito. Não consigo mais olhar a minha comunidade e ensiná-la a perseverança se não perseverei, em lhe ensinar a bondade se eu não fui bom, a amar como Cristo amou, a receber a sua luz se eu não fui capaz de amar o outro, se eu deixar a luz de Cristo se apagar. Sim, meu Bispo, quando a maldade abate sobre nós, enfraquecemos as nossas defesas. Mas ai que esta o meu dilema, há a necessidade de ser tão mal, ou mais, a quem nos pratica a maldade? Esse mesmo silêncio que lhe perturba, meu Bispo, a mim também perturba, pois não temos a resposta certa. 
   Eu tirarei o hábito que veste o meu corpo, mas ele continuará me vestindo, a minha alma. Seguirei com o meu ministério. Como? Serei uma formiga a espalhar o alimento para esse grande formigueiro que é o mundo. Qual alimento? O amor, meu Bispo. Espalharei a luz de Cristo para que a ignorância não a ofusque.
   Obrigado, meu Bispo, que a paz de Cristo permaneça em nós e o brilho da luz divina diminua a ignorância nos homens. Sim, um dia nos encontraremos.
   Fui certo da minha missão. Olhei para trás e vi tristeza e lágrimas nos olhos do Bispo, não saberia dizer se era pela minha partida ou por outro motivo qualquer. Percebi que ele reteve o seu pé no ar, aproximei para me certificar o que estava acontecendo. Entendi a tristeza e as lágrimas ao ver sob o seu pé uma fileira de formigas passando com o alimento em direção ao formigueiro, enquanto outras voltavam em busca de mais alimento. Ele repôs o pé no chão, longe das formigas, rodou com os dedos o anel, sorriu para mim e gritou, Padre, temos que ser formiga, era isso que Cristo queria nos dizer. Sorrindo, respondi-lhe que sim. Amar uns aos outros, era isso que as formigas faziam todos os dias, todos os dias.
   Meu Bispo havia entendido, o nascedouro da maldade está nos pequenos atos diários, por isso ele não pisou nas formigas.
   Voltei para mim e percebi as chamas da minha vela interna mais intensa. Segui, tal a formiga.

Capítulo I
Capítulo II
Capítulo III
Capítulo IV

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quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Entre os quarenta e o vazio


   Eu estou entre os quarenta e o vazio. Solteira. Emaranhada a solidão e a fantasia em interlúdios de uma dor intermitente. Procuro por mãos que me dêem carinho, minto, busco amor e sexo, não necessariamente nessa ordem. Ao não encontrá-las, deixo as minhas se perderem por entre as minhas virilhas. Após o gozo, rios de lágrimas preenchem o meu rosto afogando-me no vazio. Solidão é dor que não se mata sozinha, nem em multidão, acostuma-se a ela sem nunca alcançar a cura. Eu não me acostumei a minha.
   Ainda recolho as meias sobre o chão que eu mesmo jogo para ter lembranças suas. Deixo as latinhas de cervejas misturadas com as sobras do jantar. As azeitonas comidas entre as não comidas, ainda guardo no pires da xícara de chá. Eu o tenho tão perto com esses seus hábitos pululando em minha memória. O lençol desalinhado sobre os travesseiros dá-me a impressão de que, se puxá-lo, encontrarei você; porém, o que me vem ao rosto é o cheiro de roupa de cama após o sexo, então me dou aos travesseiros cavalgando-os e o sinto dentro de mim.
   A luz acessa do banheiro, o no break do computador ligado, o notebook sobre o sofá, deixo-os como você os deixava. Até comprei um sapato vinho - a sua cor preferida - e o deixo esquecido próximo da mesinha de centro da sala de estar.  A pior companhia para uma solitária é a ilusão.
   Lembro-me da sua insistência para que eu entendesse a série Jornada nas estrelas, lesse James Joice e comesse morango com catchup, para mim, três coisas incompreensíveis. Engraçado, hoje, eu entendo até o cumprimento do vulcano Dr. Spock.
   A solidão é uma casa iluminada que não apaga de nós o foco escuro que nos encontramos. Em mim, há uma centelha a espera do pavio para a queima. Eu me encontro entre os quarentas e o vazio, sozinha e escura.
   Quando se olha para trás, ao invés de nos ensinar, faz com que desejamos repetir toda a experiência, é sintoma de ingenuidade, ou então, imaturidade. Todas as portas, não importa, fechadas ou não, as tenho como abertas, aí me vem a pergunta: "Por que não as fechou?". Ao sair para sempre da minha vida, você deixou entrar a dor, ela instalou em mim fazendo-me sua moradia. Dizem que o sofrimento serve para nos ensinar, sou uma péssima aluna.

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sábado, 11 de fevereiro de 2012

Confissão

CAPÍTULO IV


   Meu Bispo, havia muita coisa no ar, muitas suspeitas. A sacola que ele depositou na porta do quarto, por que não levou para a cozinha que é o normal? Ou então, se era para ser colocado no quarto, por que não abriu a porta e colocou? Além disso, aquele silêncio dele, a demora de falar comigo como se quisesse saber alguma coisa apenas me analisando através da minha fisionomia, uma leitura corporal que me denunciasse. E a esposa, apesar da compenetração ao rezar o Rosário, estava prestando atenção em nós dois, e sua fisionomia era de alguém que fez um delito que se arrependeu.
   Qual foi a pergunta que ele me fez, meu Bispo? Essa, qual o motivo que me levou a casa dele? Não, demorei em responder, não havia me preparado para aquela pergunta. Instintivamente levei o vinho à boca, e ele, esperando a resposta, me encarou com um sorriso como quem dissesse, eu lhe peguei. Assim que retirei a taça da boca, prontamente, lhe disse que estava recolhendo donativo na comunidade para a futura reforma da igreja. Ele soube logo que eu estava mentindo. Como eu percebi isso? Assim que ele me abraçou e deu três tapas no meu ombro e encaminhado para uma escrivaninha, eu reparei um jornal dentro da sacola próxima a porta do quarto cuja manchete era que o homem encontrado na igreja sofreu abusos sexuais pelos pais segundo o padre. Ele retirou uma vela de sete dias da gaveta e a acendeu para a Santa Maria Madalena, olhou por alguns minutos a chama e me disse que era interessante o desgaste da vela para se ter a luz, ela ia se derretendo, se desfazendo em sacrifico da iluminação. Assim como nos era necessário o sacrifício da carne, o seu apodrecimento, o seu desgaste para a iluminação da alma. Finalizou dizendo que é morrendo que se alcança a vida eterna. Trêmulo, tentei me desvencilhar do seu abraço, porém, ele não deixou.
   Meu Bispo, olhei naqueles olhos azuis buscando alguma emoção e percebi que até a doçura de antes havia se perdido. Ele retirou algumas notas da gaveta e me deu como donativo. Com um sorriso irônico no rosto ele me perguntou se aquela quantia dava para comprar o indulto para salvação da sua alma. Sim, meu Bispo, o perdão só se consegue com um sincero pedido e o arrependimento das mazelas praticadas, as indulgências para o pecado cometido por ele, por mais severas que fossem, não o livraria do julgamento divino, afinal, ele tirou uma vida. Contudo, meu Bispo, eu não poderia dizer-lhe isso, estava aquém da sua compreensão.
   O que eu lhe disse? Não se compra o perdão, ele é invendável. É o seu valor que nos torna humano e para consegui-lo é necessário o arrependimento, mas mesmo assim, o perdão não nos livra da justiça dos homens. Senti suas mãos percorrerem as minhas costas nervosamente e parar no meu pescoço. Seus dedos, quentes e incontroláveis, tamborilaram antes de apertarem as veias do meu pescoço. Disse-me que sem oxigênio não haveria as chamas na vela, portanto, não haveria iluminação. Então conclui que o sacrifício do corpo era necessário para se alcançar a iluminação e consequentemente o perdão. Seus dedos, vagarosamente, afrouxaram e eu voltei a respirar normalmente, pois o ar já estava me faltando. Ele se encaminhou abraçado a mim até o quarto, abriu a porta e me empurrou, abaixou pegando o pacote que ele havia trazido e entrou fechando a porta. A escuridão no quarto não me permitiu ver nada, a não ser o branco dos seus olhos. O peso de suas duas mãos nas minhas costas me fez cair sobre a cama. Senti os seus joelhos comprimirem os meus órgãos internos contra o colchão. Outra mão, mais macia, amarrava os meus braços e pernas na cabeceira da cama, quando uma labareda bruxuleou no ar, eu percebi a silhueta de uma mulher, era a sua esposa. Aos poucos ela foi acendendo as velas dispostas em volta da cama, a luminosidade foi dando forma e cores aos objetos no quarto. Eu vi várias fotografias em porta-retratos pregados na parede, e neles, a imagem de seu filho, cronologicamente, desde a infância até a idade adulta, sofrendo sevícias. Meu terror aumentou quando ele colocou um tripé com uma câmara no meio do quarto, pegou uma vela de setes dias na sacola, uma vasilha cujo rótulo estava escrito vaselina e um objeto roliço que eu não conseguia identificar. O silêncio imperou e só foi quebrado pelos meus gritos de dor. Se havia algum cheiro ali antes eu não saberia dizer, no entanto, agora, do quarto evolava o cheiro de vela queimada. Minha pele estava vermelha devido aos respingos da parafina. A sensibilidade à dor tinha atingido o seu pico, estava a ponto de desmaiar, o tamborilamento que ele fazia com os dedos sobre a minha coluna vertebral não me provocava nenhuma sensação. No exato momento que ele abriu o vasilhame e untou as mãos com a vaselina e esfregou no objeto roliço, eu tive a sensação que as velas se apagaram uma a uma. A escuridão tomou os meus olhos e foi quebrada por flashes da câmara fotográfica. O objeto percorreu a minha coluna vertebral amiúde, de cima para baixo, freneticamente. O medo, tomando conta de mim, me fez perder todos os meus sentidos. A escuridão agora era total. Quando acordei, a dor possuía o meu corpo, o ambiente estava escuro. Percebi que não estava mais no quarto. Engatinhei - a dor era tão intensa que eu não conseguia ficar de pé, quanto mais andar - apalpando o chão para ver se reconhecia o lugar. Estava em um quadrado, sem nenhuma mobília. Era o porão.
   Não, meu Bispo, não sabia quando era dia ou noite. Somente saía do porão para o quarto e deste para o porão novamente. Aleatoriamente, eles me davam uma terrina de sopa. Para me confundir, eles colocavam uma quantidade de sopa muito pequena e me dava em intervalos curtos entrecortado por uma quantidade maior em intervalos longos. Só comecei a calcular os dias quando reparei na escrivaninha que a vela de sete dias colocada para Santa Maria Madalena estava pela metade, então deduzi que tinha passado três dias desde que entrei naquela casa. Meu querido bispo, somente depois de vilipendiar o meu corpo e me causar dores físicas e psicológicas, eu vim saber que carregava uma maldade tão perversa quanto a que estava sendo praticada contra mim. O mal, meu Bispo, mora em nós e quando ele encontra outro que o pratica contra si, ele se autodefende praticando-o em igual ou maior quantidade. Nesse mesmo dia que eu reparei na vela, vi a faca que ele usava para fazer o seu cigarro com fumo de rolo esquecida em cima da mesinha de centro. O mal em mim começo a confabular a minha autodefesa. Meu Bispo, não queira saber o quanto orei a Deus para que tirasse aqueles pensamentos de mim e me mostrasse o caminho para sair dali sem deixar aflorar a minha maldade.
   Meu corpo fraquejava devido os abusos sexuais e a desnutrição, minha fé estava abalada, a minha vela interna estava se apagando, eu perdia a minha luz e nem mais a Deus eu me apegava. Pequei, meu Bispo, e isso nunca deixarei de me cobrar, essa culpa de ter perdido a fé, a esperança. De tanto sofrer abusos, a maldade foi o meu espelho, e quando olhei dentro de mim, não me reconheci.

Continua.

Capítulo I
Capítulo II
Capitulo III

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quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Sobre as escolhas

Essa é a triste história do homem que se achava perfeito e estava em uma busca desenfreada pela mulher perfeita. Ele andava de balada em balada, de igreja em igreja, percorrendo pelas coisas mundanas e santas, até que a voz da consciência lhe disse:
   “Você está procurando nos lugares errados. Procure no Paraíso”.
   Então, ele embarcou na estação Butantã do metrô, em São Paulo, desceu na Luz, iluminado, fez baldeação embarcando em direção ao Paraíso.
   Ao chegar lá, ele, ao invés de escolher a Eva, preferiu ficar com a cobra. Novamente a voz da consciência lhe disse:
   “Saiba escolha, se era para levar a copia, fez bem em levar a original”.
   Feliz, ele não esperou ser expulso e saiu do Paraíso, de metrô, com destino a Luz e de lá baldeou, abraçado a sua cobra, com destino ao Butantã.

Este texto tem um endereço certo. É para minha amiga Andréia que não permite o seu namorado sair para bebemorar com os amigos.

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sábado, 4 de fevereiro de 2012

Confissão

CAPÍTULO III


   Como eu escapei? Hoje, quando eles estavam fazendo as sevícias em meu corpo, minha mãe passou mal e o Demônio teve que socorrê-la, na pressa esqueceram-se de me prender no porão. Sim, Padre, durante vinte anos, eu vivi preso dentro de um porão, só saía de lá quando eles queriam aquilo. Como eu tenho o conhecimento de Deus? Estranho a sua pergunta, Padre. Não há necessidade do conhecimento para sentir Deus, pois antes mesmo de existirmos, a Sua presença já era sentida, além do mais, Padre, o medo e a dor me levou até Ele. Padre, posso lhe pedir um favor? Feche os olhos e imagine que o mundo não exista, que não exista nada. Pensou? Agora me responda o que você ver? Está vendo, Padre, antes de qualquer existência, você sente Deus. Essa mesma pergunta feita para uma pessoa sem fé, ela sentirá a escuridão, o vazio, o nada. Então, Padre, não precisamos de conhecimento para sentir Deus, precisamos apenas de fé.
   Não, Padre, eu ainda não terminei. Não matei o Demônio em mim. Padre, vou lhe pedir perdão. Qual meu outro pecado? Ainda não o cometi. Vou cometê-lo agora. Perdoa, padre. Seja misericordioso. Que minha alma descanse nos braços do meu Pai.

   Meu Bispo, quero o seu perdão. Falhei na minha missão e me deixei levar pelas vontades. Eu sei, meu Bispo, o controle das vontades nos aproxima de Deus. Sim, vou lhe contar o que aconteceu.
   Quando ele me disse para ser misericordioso e pediu o meu perdão para um pecado que ainda não havia praticado, eu nunca pensei que ele puxaria uma faca e a cravaria no seu próprio peito. Agonizando, ele se arrastou ao meu encontrou, abraçou-me e tartamudeou em meus ouvidos que havia matado o demônio dentro dele, mas ele continuava vivo lá fora. Disse-me o seu endereço e ciciou antes de morrer, mate-o, Padre, é seu dever eliminar o Demônio. Repousei o seu corpo na cadeira e então me dei conta do que havia acontecido. Minha estola roxa estava impregnada de sangue, alguns respingos de sangue manchavam a minha batina. Olhei para a imagem do Cristo no altar e percebi os seus olhos desesperançosos. Uma pergunta não se cala na minha mente: Será que no dia da Sua crucificação Ele também não tinha os mesmo olhos que eu percebi na Sua imagem?
   Não sei, meu Bispo. Essa é outra pergunta que me faço e não tenho respostas. Talvez, devido à truculência da polícia, achando que ela chegaria lá atirando e depois interrogando. Talvez por curiosidade eu mesmo fui lá.
   A casa era comum, tinha uma amendoeira na porta. Na parede da garagem havia uma imagem de Nossa Senhora de Aparecida. Uma senhora apareceu na porta antes mesmo de eu tocar a campainha. Em suas mãos havia um Rosário, seus dedos giravam uma das contas... Sim, meu Bispo, João Paulo II dizia que o Rosário é o compêndio da Bíblia. Ela me disse que estava nos Mistérios dolorosos. Seu rosto denotava um cansaço doentio, seus olhos uma tristeza infinita, contudo, eram benevolentes. Eu sei, meu Bispo, o corpo escamoteia as máculas da alma, eu sei disso. Ela me pediu para entrar e que aguardasse no sofá enquanto terminasse de rezar o Rosário. Antes de sentar perquiri com os olhos a casa e não vi nenhuma escada que poderia levar ao porão. Havia apenas a sala, cozinha, banheiro e o quarto que estava com a porta fechada.
   Não, meu Bispo, ele chegou alguns minutos depois, trazendo uma sacola que depositou próxima a porta do quarto e um sorriso amabilíssimo. Seu rosto tinha traços fortes, mas olhos azuis dulcíssimos. Ele deu um beijo na testa da esposa e depois pediu minha benção. Sim, eu estava de batina. Serviu-se de duas taças de vinho e me convidou para sentar no sofá. Colocou as duas taças na mesinha de centro, e, com os dedos, empurrou uma das taças em minha direção sem me dirigi uma palavra. Levou a sua taça a boca e com os olhos sobre a borda da mesma me analisou. Abaixou os olhos em direção a outra taça e meneou a sobrancelha. Entendi o sinal e peguei a taça bebendo um pouco do vinho. Repentinamente, ele se levantou, foi à cozinha, pegou algo e depois tirou alguns objetos da sacola que ele havia trazido. Depositando-os em cima da mesinha e sorrindo passou os dedos no fio da faca. Pegou o fumo de rolo dentre os objetos depositados na mesinha e o cortou em rodelas bem finas picando-as depois. Retirou de uma caixa com papel de seda para enrolar cigarro da gaveta da escrivaninha uma folha, colocou-a na borda da mesinha e com a palma da mão arrastou o fumo picado sobre a seda enrolando-a. Passou a língua na borda da seda e com os dedos indicadores a fechou para, em seguida, com o dedo polegar e indicador alisar o cigarro para certificar que estava pronto. Por fim quebrou o silêncio me dizendo o que seria dos homens se não fosse as mãos, pois com elas satisfaz os desejos da carne e também os da alma ao orar aos céus a sua salvação. Disse-me ainda que as mãos dele só serviam para satisfazer os desejos da carne, os da sua alma eram as mãos da esposa que satisfaziam, como agora. Olhei para ela e vi a sua compenetração ao rezar o Rosário, sem saber em qual Mistério ela estava, porém seu rosto transparecia uma dor inaudita, como se ele estivesse mostrando as mazelas da alma, ou então implorando salvação para essas mesmas mazelas. Quando ela percebeu que eu estava olhando, as feições desapareceram, então, voltei-me para ele. Surpreendendo-me, ele me fez uma pergunta que eu não estava preparado para responder.

Continua

Capítulo I
Capítulo II
Capítulo IV

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