CAPÍTULO FINAL
Vi que a perna que empurrava a terrina de
sopa para dentro do porão era de mulher. Agachado, eu a agarrei com as duas mãos
e a puxei de uma vez só. Quando o corpo dela foi ao chão, o seu grito se tornou
audível por toda a casa. Eu tinha que agir rápido. A luz que vinha da parte de
cima da casa fez brilhar um objeto que estava próximo da terrina, peguei-o e
cravei no pescoço dela. O cabo da colher estraçalhou o seu pescoço espargindo o
seu sangue sobre o meu rosto. Não, meu Bispo, eu não tive tempo de me
arrepender e nem pedir perdão pelo ato praticado, pois uma mão me puxava para
cima, para fora do porão, arrastando o meu corpo pela escada. Quando cheguei à
sala, eu estava diante do Demônio, os seus olhos azuis tinham perdido a doçura.
Se ao me vilipendiar, ele tinha enfiado dentro de mim o inferno com seus dedos,
agora ele ia me mostrar que o inferno também estava do lado de fora. Ele
agarrou o meu corpo fraco e me arremessou contra a escrivaninha. A vela de sete
dias havia se consumido, não havia luz, estava no sétimo dia. Após a criação do
mundo, Deus havia descansado no sétimo dia, meu Bispo. Naquela casa, naquele
momento, se Ele tentasse interferir, não adiantaria, pois diante daquele homem,
eu vi o Diabo. Eu estava diante de um espelho.
Assim que ele pôs o pé sobre o meu pescoço,
a falta de ar fez com que eu estrebuchasse, e com pés e mãos batendo no chão,
eu pedi clemência. Ele sorriu de satisfação pelo pedido, pegou-me pelos pés
girando o corpo vária vezes e o soltou satisfeito. O meu corpo foi de encontro à
mesinha de centro, quebrando-a. Senti um filete de sangue escorrer no chão, ao
passar a mão por debaixo de mim, eu senti o fio da faca cortar um dos meus
dedos. Gelei quando ele se encaminhou até a escrivaninha, abriu uma das
gavetas, retirou o fumo de rolo juntamente com a caixa com papel de seda para
enrolar cigarro e me encarou. Pensei, ele notou a falta da faca. Felizmente
não, meu Bispo, ele não notou. Sim, ele continuou me encarando, colocou o fumo
na boca e o retirou amiúde. A baba escura escorria pelo canto de sua boca.
Sorrindo maliciosamente, ele mediu um palmo do rolo e o cortou com os dentes.
Sim, meu Bispo, as suas atitudes eram doentias. Sempre rindo, ele abraçou o
rolo cortado com a palma da mão e fez movimentos contínuos de cima para baixo e
vice-versa, depois o dilacerou com os dentes em pedaços pequenos. Pegou a seda
da caixa, encostou-a na borda da escrivaninha e com os dedos empurrou os
pedaços do fumo sobre o papel, enrolou-o, lambeu a ponta de fechamento
enrolando-a. Após levar o cigarro à boca, ele abaixou e pegou o guarda-chuva
que estava encostado no canto da parede, próximo da porta da saída, batendo o
cabo na escrivaninha. Percebi que a sua intenção era demonstrar a resistência e
dureza do cabo pelo ruído provocado. Ele não precisava de tanto, bastou eu ver
a cor e o entalhe da madeira para saber que era de lei, dura e eficaz se a
intenção era ferir, afinal era um legítimo jacarandá.
Quando ele se encaminhou em minha direção
batendo o cabo do guarda-chuva em suas coxas, eu vi, meu Bispo, o terror
passando naqueles olhos azuis, como em um filme, audível, pois os seus lábios
gesticulavam freneticamente, o inferno você conhecerá agora, e serei eu que
emitirei o ticket da passagem. O som gutural de sua voz, a imagem dele
caminhando em minha direção, e apenas o cabo do seu guarda-chuva sendo
processado pela minha mente fez com que ela ativasse o meu sistema de autodefesa,
ou seja, acordou a maldade existente em mim. Eu, lestamente, com a energia que
me restava, ergui o meu corpo um pouquinho do chão e enfiei a minha mão
alcançando o cabo da faca, porém, não tive força o suficiente para suster o corpo,
quando puxei a faca, o fio gélido da lâmina rasgou a minha carne. Ao encostá-la
próximo de meu corpo, o sangue quente do meu corpo havia mudado a temperatura
da lâmina.
Meu Bispo, ele afundou os seus joelhos nas
minhas coxas. Não, meu Bispo, eu não senti dor, em mim havia somente um
sentimento, o de vingança. Ele tentou por várias vezes acender o cigarro,
contudo, o fumo ainda estava úmido. Quando conseguiu acender, tragou o cigarro
com prazer imensurável, não tão diferente quanto às sevícias praticadas em mim.
Ao esbaforir, eu vi o meu medo intricado por entre a fumaça, como se me
dissesse, não se iguala a ele. Quando a maldade lhe ataca, ou você se entrega,
ou luta, não somente para se salvar, mas também para que essa maldade não se
eterniza. Ele não me deu tempo para filosofar, meu Bispo.
Ao vê-lo erguer o guarda-chuva, eu desferi a
faca no seu tórax. Quantas vezes? Não sei, meu Bispo. Só parei quando ouvi os
ossos de sua caixa torácica se quebrando com o impacto das últimas facadas. Meu
peito estava inundado de sangue, no entanto, a macula permaneceria na alma, não
obstante ela já estava maculada somente com a intenção da morte. Não, meu
Bispo, não acabou, o pior veio depois quando eu me vi nos olhos dele.
Após enterrar a última facada no seu peito,
o seu corpo tombou para trás, ele, suspenso no fio derradeiro que ainda o
ligava à vida, ergueu o guarda-chuva e se jogou para frente. Desviei de sua
investida e o cabo do guarda-chuva passou rente ao meu pescoço, ao tocar o chão
trincou o piso. É agora, meu Bispo, que meu inferno começou, pois o que fiz
está me martirizando, por mais que eu fuja, a culpa me persegue. Tem certeza
que quer ouvir, meu Bispo?
Não há dor pior do que a que dói na alma, a
do corpo o tempo cura, a da alma entregamos nas mãos de Deus, mas não nos
livramos de senti-la.
Eu o empurrei para trás apoiando o seu corpo
nas minhas pernas erguidas, agarrei o guarda-chuva com as duas mãos e o
inclinei um pouco em sua direção, então, com as pernas, empurrei o seu corpo
para frente. Ouvi o ruído da sua cabeça batendo na ponta do guarda-chuva,
quando o seu rosto ficou próximo ao meu, eu senti certo prazer com a sua morte.
Porém, a culpa foi mais rápido do que a minha satisfação. Fiquei extático, em
estado de choque por um longo tempo. Somente saí deste estado quando o peso do
seu corpo empurrou a sua cabeça para mais próximo de mim, a ponto dos nossos
narizes se tocarem. Os seus olhos azuis me fitaram dizendo que ele havia
morrido, porém, continuava vivo dentro de mim. Vi-me em um espelho, e aqueles olhos
azuis, sem vida, me refletiam. Mesmo se não houver luz... Não há, meu Bispo. De
alguma forma não há, com as minhas atitudes, as minhas escolhas, eu trilhei o
caminho das trevas. Como ia dizendo, mesmo se não houver luz para refletir a
minha imagem ao olhar em um espelho, dora adiante, não é a mim que vejo, é ele,
o Demônio. Seus olhos azuis permanecerão em minha mente dizendo que ele vivi em
mim.
Eu sei, meu Bispo, a justiça dos homens me
absolveu alegando que eu agi em legítima defesa. Sim, o Senhor me concedeu o
perdão, porém, sou eu que não me perdoo. A maldade é fruto da ignorância. E eu
sabia, meu Bispo, eu sabia. Mesmo que eu pague minha pena temporal, ainda me
sentirei devedor.
Jesus lutou contra a maldade usando somente
uma ferramenta, o amor. Aguentou o peso da maldade em sua carne, e mesmo assim,
ofereceu amor. Foi crucificado, morreu e ressuscitou, mas nunca deixou de amar.
Permanece aqui entre nós como luz para que possamos, através de sua luz,
religar à Deus. Não, meu Bispo, o Senhor não está me entendendo. Eu não estou
me comparando a Jesus, o meu sofrimento não tem a mesma grandeza do Seu
sofrimento. Apenas quero lhe dizer que ao me olhar no espelho eu via essa luz
me refletir, eu me via como realmente era, eu via a bondade em mim. Hoje,
apesar de senti-la bruxuleando em algum ponto em mim, eu só consigo enxergar
trevas. A maldade é uma capa invisível que não deixa essa luz se intensificar e
refletir quem eu era. O mal viceja em mim, meu Bispo.
Sim, desnudarei do hábito. Não consigo mais
olhar a minha comunidade e ensiná-la a perseverança se não perseverei, em lhe
ensinar a bondade se eu não fui bom, a amar como Cristo amou, a receber a sua
luz se eu não fui capaz de amar o outro, se eu deixar a luz de Cristo se
apagar. Sim, meu Bispo, quando a maldade abate sobre nós, enfraquecemos as
nossas defesas. Mas ai que esta o meu dilema, há a necessidade de ser tão mal,
ou mais, a quem nos pratica a maldade? Esse mesmo silêncio que lhe perturba,
meu Bispo, a mim também perturba, pois não temos a resposta certa.
Eu tirarei o hábito que veste o meu corpo,
mas ele continuará me vestindo, a minha alma. Seguirei com o meu ministério.
Como? Serei uma formiga a espalhar o alimento para esse grande formigueiro que
é o mundo. Qual alimento? O amor, meu Bispo. Espalharei a luz de Cristo para
que a ignorância não a ofusque.
Obrigado, meu Bispo, que a paz de Cristo
permaneça em nós e o brilho da luz divina diminua a ignorância nos homens. Sim,
um dia nos encontraremos.
Fui certo da minha missão. Olhei para trás e
vi tristeza e lágrimas nos olhos do Bispo, não saberia dizer se era pela minha
partida ou por outro motivo qualquer. Percebi que ele reteve o seu pé no ar,
aproximei para me certificar o que estava acontecendo. Entendi a tristeza e as
lágrimas ao ver sob o seu pé uma fileira de formigas passando com o alimento em
direção ao formigueiro, enquanto outras voltavam em busca de mais alimento. Ele
repôs o pé no chão, longe das formigas, rodou com os dedos o anel, sorriu para
mim e gritou, Padre, temos que ser formiga, era isso que Cristo queria nos
dizer. Sorrindo, respondi-lhe que sim. Amar uns aos outros, era isso que as
formigas faziam todos os dias, todos os dias.
Meu Bispo havia entendido, o nascedouro da
maldade está nos pequenos atos diários, por isso ele não pisou nas formigas.