Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

A caverna

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   De repente, num átimo – desses que a vida nos diz muito mais do que se precisássemos de uma vida toda para nos dizer pelas experiências vividas -, ela pensou que o amor fugidio da juventude estivesse morto, ou então perdido nos contornos que a alma dá durante a vida para se livrar das intempéries.
   Quando ela soube que a esposa dele estava entre a vida e a morte, pendendo mais para a morte, não demonstrou nenhum sentimento; como da mesma forma recebera a notícia, há trinta anos atrás, que ele havia casado e tido dois filhos, e anos mais tarde havia separado, casado novamente e tido três filhos. Saiu de todos estes episódios incólumes, mas bastou alguns dias para a mesma notícia ser dito de outra maneira para ela se abalar, como se o amor fugidio da juventude tivesse fugido de entre os mortos, driblado os contornos que a alma deu para dele se livrar, e depois de trinta e dois anos quisesse reverdecer. Em uma tarde fria de maio, não se sabe se trazida pelos ventos outonais, ela recebeu a notícia, não que a esposa dele havia morrido, mas que ele havia enviuvado. E isso fez uma enorme diferença, abalando-a. A caverna estava aberta para toda possibilidade de experimentação, e a luz adentrando fazia do amor por ele jazido no passado, revivo.
   Ela foi despertada na madrugada pelos sonhos febris de desejos irrealizáveis na juventude. A garganta estava seca, os olhos em lágrimas carregavam uma culpa de um pecado não cometido. Pôs a mão sobre o tórax do marido, este murmurou frases inaudíveis, em resposta ao pedido de perdão ciciado por ela entre os dentes cerrados em seu ouvido, virou-se e voltou a dormir. A sua caverna, como ela gostava de chamar carinhosamente a sua casa, estava em total penumbra. Dizia que não precisava de nenhum tipo de luz, artificial ou natural para enxergá-lo ou ele a ela, pois o amor que sentia um pelo outro era o lume que os bastavam para tanto. Foi à cozinha, bebeu uma jarra de água freneticamente e quando voltou ao quarto acendeu a luz sem perceber, quando percebeu sentiu que não era mais a mesma pessoa.
   Sempre nos falta alguma coisa mesmo tendo tudo, pois tudo que temos não é o suficiente para nos bastar, nem o será o que nos falta quando o tivermos.
   Quando ela casou com ele, não o amava, porém, passado dois anos, ela já considerava a possibilidade de está-lo amando. Foi necessário mais três anos para ela perceber que não viveria sem o aroma almiscarado do seu corpo, sem a pele cálida que a esquentava nas noites invernais e a fazia arder tanto nas noites como nos dias veranis, sem a delicadeza com que ele contornava as curvas do seu corpo com as mãos, símile ao pianista ao dedilhar as teclas do piano na intenção de obrar as notas musicais mais harmoniosas; e tanto era assim que se ele fosse eunuco, nenhum homem lhe daria mais prazer do que ele com a destreza das mãos.
   Se o seu amor por ele no início não tinha a beleza do maracujá quando verde, liso e brilhoso, o tinha por dentro, desenxabido. Porém, talmente a fruta precisa que o manto do tempo lhe caia sobre a pele, envelhecendo, para ganhar sabor, assim precisou o seu amor, contudo permanecendo, extrinsecamente, com a beleza e a textura do maracujá verde, e, intrinsecamente, com o sumo saboroso da fruta madura.
   Mas nem sempre nos contentamos com o que temos e nem valor damos. Bastou apenas uma fresta de luz, trazida pela notícia da viuvez do seu amor fugidio da juventude adentrar a sua caverna para abalar as suas certeza e incuti-la a possibilidade de concretizar um desejo já dado como morto, a saber, tê-lo.
   Como ela gostaria que ele se jogasse aos seus pés, impedindo-a de ir. Mas faltava-lhe esta característica latina, passional, de exacerbar em atos físicos os seus sentimentos. Ele permaneceu com os seus olhos sorridentes, magnânimo. A sua dor era silente e intrínseca. A partida foi dada com o sorriso vivaz em seus lábios, em contrapartida, os olhos dela estavam em lágrimas. E os dois não foram sinceros com os seus sentimentos.
   Bastou a cegueira momentânea causada pela luminosidade fora da caverna passar para ela abrir um sorriso. Cego de amor, ele prostrou na cama em posição fetal, esperando que ela ressurgisse, viesse à luz, trazendo luz para a sua vida. Em lágrimas intermitentes, ele escureceu.
   Ela o encontrou com um olhar sofrido, provavelmente pela perda da esposa querida, mas ela sabia que cada um tem o tempo certo para superar as intempéries causa pela dor da perda, por isso não se desanimou. Ele a viu como um alfarrábio que causou emoção no primeiro momento, mas que, depois de lido, é jogado esquecido em um cesto qualquer sem a esperança de lê-lo, novamente. Porém, ele precisava dela para amenizar a dor da perda. Seria preciso reescrever a história para lhe modificar o seu final, mesmo sabendo que reescrevê-la poderia causar sofrimento em dobro, contudo ela queria a mesma história, pois tinha idealizado o mesmo amor, e este amor não permitia outro final sem ser o feliz. Com tantos desencontros eles não se encontram.
   À luz artificial, mais do que iluminá-lo, o desnudou, mostrando como ela realmente deveria vê-lo. Ela o viu extrínseco, como um maracujá amadurecido de aroma mofado como se fosse uma casa que estivesse fechada por trinta e dois anos e ao abri-la exalava todo o estupor de coisa morta.  Ela o viu, também, intrínseco, como um maracujá verde, desenxabido, como se estes trinta e dois anos não o tivesse amadurecido. Foi aí que ela percebeu que o amor fugidio da juventude pertencia ao mundo das ideias, mundo este que ela não deveria ter posto os pés. Ela, ainda vestida, saiu trancando a porta deste mundo, e, mesmo com toda a claridade ali existente, percebeu que precisava da escuridão da caverna para enxergar. 
   Quando ela chegou a sua casa, encontrou-o nu na cama em posição fetal e com a lâmpada da mesma forma que a deixou quando saiu, acessa. Aproximou-se dele sussurrando em seus ouvidos que voltara. Ele fingiu não ouvi-la. Ela repetiu, amiúde. Ele virou a cabeça e lhe disse para ter, pelo menos, a decência de se lavar. Ela levantou da cama, apagou a luz, desnudou-se, deitou na cama o abraçando e lhe disse que não havia necessidade de se lavar. Ele entendeu.
   Após fazerem amor amiúde, em interlúdios intermitentes, eles permaneceram no escuro; porém, não deixaram de se ver, pois eles tinham o amor como lume.
  
      

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

BLOGAGEM COLETIVA: DEDIQUE UMA CANÇÃO A QUEM VOCÊ AMA!

Quando recebeu aquela notícia, ele demorou a acreditar. A carta tremulava em suas mãos, indo ao chão depois de lida. Ele a pegou de volta na esperança que na queda as palavras tivessem embaralhado e modificado o que estava escrito. As palavras quando ganham vida no papel não perdem mais o seu sentido, somente quem ler pode dá-las vários significados após várias leituras. Ele leu, releu, dobrou a carta, colocando-a no bolso traseiro da calça, retirou-a logo em seguida, desdobrou-a, e, mais uma vez, a leu, amiúde. O significado do que estava escrito não mudou:
“Estou morrendo. Vem me ver”

O amor deles não tinha pressa, era um amor de reconhecimento, necessitava muito de saberem das coisas da alma e somente depois, muito depois mesmo, saberem-se pelo físico. Cientistas, eles tentavam decodificar o genoma da alma para quando chegassem, geograficamente, no corpo não se perdessem nas curvas do mapa físico. Foram anos de encontros e reencontros, de discussões e calmarias, de guerras e pazes para, enfim, encontrarem-se na convivência do dia-a-dia e perceberem que não havia uma fórmula mágica para a felicidade. Perceberam que foram feito um para o outro, descobriram o que há de mais sublime no amor, a intenção de fazer o outro feliz. Conjugaram nos dois corpos o mesmo verbo: amar; e as almas se entrelaçaram até se tornarem única.
Aqueles dois seres, tão iguais no amor, tinham uma diferença gritante. Muitos perguntaram como duas pessoas tão diferentes socialmente puderam se encontrar. Como se o caminho para amar somente se desse pelas ruas das razões. Se todos os caminhos fossem retos, o seu fim seria o precipício, por isso havia curvas. E eles a tomaram.
Menininha rica regada a croissant, escargô e salada de aspargos. Menininho pobre temperado a pão na chapa com pingado, zoião estrelado em óleo usado. Totalmente diferentes. Ela, Alphaville, bairro nobre de São Paulo; ele, o outro extremo, Brasilandia. Todas as projeções de futuro tanto para um quanto para o outro eram díspares. Ela, um casamento feliz, adornado a banhos de espumas aromatizadas com rosas e sais; viajem pela Europa; chás às cinco. Ele, aprisionado a uma mulher sempre a lhe cobrar o dinheiro da feira, discutindo apoiados no cansaço diário, conformando-se, enfim, com o destino miserável. Mas os dois pegaram a mesma curva e modificaram os seus destinos.
Os pais da menina rica quando soube da curva que a filha tomou, entraram em desespero. Os pais do menino pobre pouca importância deu ao fato, o que lhe importava era que qualquer caminho que ele tomasse não o levasse a prisão. Depois de saber quem a filha estava namorando, os seus pais lhe mandaram para a Europa com passagem só de ida, sem previsão de volta. Ele não saiu de onde estava, aprisionou-se em sua dor.

Ele colocou para fora, entre as grades, as mãos com a carta. Releu-a. O carcereiro as martelou por pura maldade com o cassetete para que ele as retornasse para dentro. A carta se perdeu no chão e aos poucos foi sendo levada para longe pelos pés infrenes dos policiais que passavam com alguns suspeitos. Enfim uma lufada de vento a levou para fora da cadeia onde ele estava aprisionado.
Absolvido por ter atacado um policial em um momento de fúria, ele saiu da cadeia após três meses do seu julgamento. Livre, ele virou na primeira curva em direção à Alphaville. Ao chegar ao condomínio fechado, em uma das avenidas do bairro no número 1308, ele se perguntou o que diferia a prisão dali. Talvez ali seja mais confortável, mas o encarceramento era o mesmo, pois era o medo que predominava. Riu de seus próprios pensamentos e anunciou-se no interfone. Ouviu o clique do destravamento da fechadura do portão, e assim que o mesmo se moveu, ele virou-se e entrou. Ia cumprimentar o porteiro, porém o vidro da guarita era espelhado, portanto, estaria cumprimentando a si mesmo. Assim que entrou no elevador, lá dentro já se encontrava cinco pessoas silentes, de óculos escuros, apesar de o tempo estar nublado e no elevador não ter tanta luminosidade para tanto. Todos estavam de nariz empinado, acima de suas cabeças, numa atitude de quem estava olhando o céu. Cumprimentou-os e não obteve respostas.
Ao tocar a campainha, a empregada abriu a porta lhe cumprimentando e o encaminhando ao quarto. Agradeceu-a gentilmente.
Ela estava deitada na cama com olhos sofridos e feição de comiseração por si mesmo. Ele agachou-se para lhe perguntar como havia passado estes vinte anos e como estava de saúde. Porém, ela levou os dois dedos à sua boca, pedindo-lhe silêncio. Entregou o CD que estava em cima do criado mudo.
- Você ainda tem este CD? – Disse-lhe.
- Era a trilha sonora de nosso amor.
As lágrimas vieram aos seus olhos e, ele, sem demora colocou o CD no aparelho de som.
“Vem cá, meu bem, que é bom lhe ver
O mundo anda tão complicado
Que hoje eu quero fazer tudo por você”
Após cantar a segunda estrofe da música “O mundo anda tão complicado” da Legião Urbana, ele a chamou para dançar, pegando em uma das suas mãos.
- Não posso. Estou debilitada. Dê a volta na cama e deita-se comigo. Quero sentir o calor do seu corpo nas minhas costas. – Ela disse carregando uma carência no olhar.
- Você não acha que está muito debilitada para isso. – Ele disse entre risos, fazendo gestos para ela entender o que quis dizer com “isso”.
- Deixa de ser bobo. Eu quero é sentir novamente a sua alma entrelaçada a minha.
- E quem lhe disse que nestes vinte anos passados o enlace foi quebrado. – Ele disse se deitando.
Ela dobrou os joelhos quando ele encostou-se ao seu corpo. Os seus já dobrados encaixaram-se prontamente entre a panturrilha e as coxas dela. Fechados em concha, ele a abraçou colocando sua mão no seu ventre. Cantou no seu ouvido mais uma música da Legião Urbana e ela adormeceu com um sorriso de gratidão e felicidade no rosto.

domingo, 19 de setembro de 2010

Demência

              Para saber mais sobre o autor da foto click aqui

   “Você é entristecedor.
  
   Quando você ouve palavras soltas no ar, a primeira reação é olhar para todos os lados a procura da pessoa que as pronunciaram. Se você não a acha é sinal que alguma coisa pode estar errado com você.

   Você é entristecedor. A voz repetiu, assustando-me.

   A linha que separa os loucos dos sãos é tênue, e, você nunca sabe em qual lado ela está, mormente se loucos são sempre os outros.

   “Você é entristecedor. Insistente, a voz estava me dando nos nervos.

    Eu comecei a dar socos no ar na tentativa de acertar a pessoa imaginária que me atormentava com o seu mantra. Um transeunte passando naquele momento disse:
   “Este cara é louco”.
   Procurei-o entre a multidão e o vi enterrado em um boné, ouvindo Mano Brown no celular, andando símile ao primeiro macaco quando desceu da árvore para dar origem ao que chamamos hoje de humano. O sujeito tinha o escudo do time do Corinthians tatuado no braço e logo abaixo escrito:
   “Louco por ti”.
   E o louco sou eu. Deixamo-lo ir, certamente alguma árvore o espera, ou quiçá um manicômio, afinal, como já disse, loucos são os outros.

   “Você é entristecedor. Enfática, eu senti a voz reprovando o que acabará de dizer.

   “O que você quer de mim?”
   Gritei talmente o pastor na igreja para chamar a atenção de quem passa na rua para angariar ovelhas desgarradas, ou – é o que creio -, ele grita por estar longe de Deus. Como ia dizendo, gritei para ser ouvido, não por Deus – somente um louco acredita atingir Deus pela balbúrdia. A presença de Deus se faz pelo silêncio. -, mas para afugentar a voz.
   Repentinamente, eu não ouvi mais a voz, porém, eu senti uma mão grande e pesada nas minhas costas me empurrando para trás, e outra exercendo uma força desmesurável na minha cabeça, girando-a para os lados. Novamente a voz se fez ouvida.

   “Você só enxerga o próprio umbigo, não consegue ver o que está acontecendo à sua frente, do seu lado e nunca aprende ao olhar para trás. Você, realmente, é entristecedor. Olha! Enxerga!”

   Eu vi duas crianças brincando entre flores, mas não consegui enxergar quem elas eram. Notei que um homem as ensinava a pular corda. Vi quando ele amarrou a corda na árvore e começou a girá-la no ar. As crianças pulavam cada vez mais alto, e, perdidas entre nuvens de algodão doce, olhou para mim e disse:
   “Oi, pai!”
   Foi então que percebi que aquele homem um dia fora eu.
   A mão cada vez mais pesava sobre a minha cabeça, forçando a cura para a minha demência ao pôr os meus olhos sobre as minhas reminiscências
   O restaurante estava lotado, contudo um homem me chamou a atenção ao puxar a cadeira para a sua acompanhante sentar-se. Ele próprio serviu o vinho em cálices de cristal. Quando eles brindaram, no vidro dos cálices vi a imagem da felicidade refletida. Dei-me conta de quem eles eram quando no salão de dança, os passos dele se assemelhavam aos meus, e ao ver as costas de sua parceira, após tirar o xale, a tatuagem de um cravo entrelaçado em uma rosa, eu tive certeza, éramos nós. Eu e minha esposa em uma época de nossa vida em que a trilha sonora e o passo de dança eram únicos. Se houve um sinônimo para a felicidade, ele se deu por nossos passos de dança; se houve significado, ele se deu por essa trilha sonora. Era uma época que os apaixonados não tinham vergonha de demonstrar o seu amor.
   A mão forçou mais ainda a minha cabeça e a segurou em um ponto fixo.
   Uma bela senhora de cabelos argentados, rosto envelhecido, contudo jovial por trazer sorrisos nos olhos, encaminhou-se em minha direção de braços abertos. Confortado naqueles braços, não senti mais o peso das mãos da loucura e nem a sua voz. Senti os lábios úmidos da bela senhora no meu rosto e ao olhá-la, eu percebi ser a minha mãe. Abracei-a e nossas lágrimas se encontraram sem a salmoura das mágoas, pois nossos encontros se dão por doçura, até nas lágrimas.
   “Você voltou, meu filho! Estava com saudades”. Ela me disse como se me embalasse no colo.
   Olhei para o céu silente. Ele me sorriu de volta. Não precisei mais gritar, estava sendo ouvido e ouvindo:
   “Você voltou, meu filho! Graças”. Ele me disse.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

É ouro, é de Minas


              Recebi este premio do meu amigo Gilmar que ultimamente tem me divertido muito com seus causos, e me remete a meu avô que com suas "mentiras" (como ele chamava os seus causos)  enriqueceu muito a minha infância. Querido Gilmar, agradeço-lhe o mimo. Banhar-se em ouro dado por uma pessoa aurífera é de enriquecer.

              A regra de postagem deste selo é de indicar dez blogueiros em reconhecimento ao seu trabalho na blogosfera.

               Hei-los:

Ilaine: Ensaios
Angélica Lins: Vórtice
Angela: Entremeios
Dinigro Rocha: Negropoeta
Osvaldo: Menos mau!...

Se vocês estão aqui é porque vocês são ouro. Sintam-se à vontade.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Similitude

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  O padre comilão pensara que feito a luz, bastaria a feitura do homem para a criação está completa, assemelhando-se ao criador. Os homens sempre colocaram os olhos sobre a história relatando os acontecimentos de acordo com a visão que lhes convém. Eles nunca atentaram a quem realmente se assemelha, a quem lhes criaram. Não há nada mais demasiadamente humano do que a própria maldade. Não há inferno maior e melhor do que a mente do homem. Todos exteriorizam a minha casa, o meu reino e não atenta para o que é intrínseco ao homem, o próprio inferno. Dentre todos os animais, é no homem onde mais me exteriorizo perfeitamente. Posso assegurar que a mente humana é minha extensão, às vezes eu próprio me confundo sem saber onde eu começo e onde ela termina. Nenhum homem é suficientemente bom para nunca ter praticado a maldade, pois o mal é inato a todos. A bondade nada mais é do que um desvio, uma curva assimétrica ao longo do caminho da humanidade, e, para o meu deleite, de pouco uso. O meu maior medo é que o homem alcance a perfeição, assemelhando-se tanto a mim que eu não tenha mais serventia. Por isso eu peço à Morte moderação. Ela sabe que um humano vivo é mais útil do que morto, e, também, nunca sei quando o meu trono estará em perigo devido à quantidade de mortos habitando o inferno. Apesar de dizerem que o inferno está cheio de boas intenções, não há boa intenção quando há um homem próximo, esteja ele vivo ou morto.
   Antes, vocês me eram risíveis, principalmente ao sacrificarem um dos seus a algum deus em busca de salvação. Porém, agora, vocês são tão patéticos. Cometem o mal corriqueiramente, depois oram para o meu oponente pedindo perdão, noutro dia voltam a cometer o mal, ininterruptamente, sem se atentar que o perdão é a maneira que vocês acharam de estar bem com seu deus. Contudo, perdoar a si mesmo e não cair na tentação de praticar o mal novamente é uma tarefa inglória, cujo sacrifício é tão ou maior do que sacrificar um dos seus para um deus qualquer.
   Sabem, há época que eu peço a Morte que pare de matar vocês, pois há cada um que ela me envia, o meu oponente manda de volta o dobro. Ele é um tolo. Ainda acredita na salvação de vocês. O seu povo eleito, como ele gosta de dizer. Parece que não lhe bastou a morte do seu filho. Um sacrifício inútil, pois quanto mais o tempo passa mais próximo de mim vocês estão. Como tudo isso é patético. Pai, perdoa-os, eles não sabem o que fazem. Essas foram as palavras do seu filho, e lhes digo, vocês sabem sim. Sempre souberam, apenas ignoraram. O mal é o combustível para a vossa sobrevivência e isso vocês não ignoram.
   Houve um tempo que eu tive um prazer imensurável de aniquilar vocês, e quase consegui. Se não fosse a pretensão dele de querer ser perfeito a ponto de se igualar a meu oponente. E vou falar para vocês, ele me saiu esculpido em carrara, melhor do que a encomenda. Mas essa sua mania de superioridade me assustou. Antes que ele se achasse superior a mim e quisesse meu posto – a bem da verdade, o posto que ele almejava era o do meu oponente -, eu lhe enviei a Morte mais sedutora do que um dia ela poderia ser. Foi a única vez que a Morte teve um nome próprio: Eva Braun. E ela exterminou o mais perfeito dos homens mau, cujo único defeito foi ter ousado se comprar ao meu oponente. E com isso a humanidade pensou que o mal estava extinto. O mal em si só será extinto quando a raça humana desaparecer. E isso me reconforta, pois vocês não precisam mais de mim e nem tampouco da Morte. Se há algo que vocês fazem tão bem, e às vezes melhor do que a Morte é se matarem. E por falar nela, por onde ela anda. Ah! Lá vai ela atrás do padre comilão. Ela não perde a oportunidade de matar os mais malvados.
   O padre comilão ia a passos lerdos por achar que o perigo distava dele. Mal sabia que a Senhora soberana o perscrutava. O Cramulhão apreciava a cena de longe. Se havia algo que lhe dava prazer era ver um pastor do seu oponente morrer.
   Quando o padre comilão entrou na igreja foi direto a garrafa com o sangue de Cristo, como ele gostava de chamar o vinho. Sorveu a metade da garrafa pelo gargalo, encheu as mãos com algumas hóstias, levou-as a boca, e, antes que as mesmas se dissolvessem, as engoliu. Em seguida despejou o restante do vinho em uma caneca grande, e, sentando no banco da frente, defronte ao altar, ele bebeu o vinho como se tivesse numa taverna. Não percebeu quando a Senhora soberana entrou na igreja, cobriu a cabeça com o capuz, e deixou a gadanha na entrada, pois há muitas maneiras de se matar um homem. Seduzindo era uma delas.
   Quando ela sentou cruzando as pernas, deixando à mostra as coxas, o padre não sabia se a imagem era devido ao efeito do vinho, ou fruto da sua imaginação, ou ainda obra do cramulhão. Por mais que a razão buscasse uma explicação, nunca a acharia, pois a Senhora soberana levou as suas mãos cálidas às mãos do padre embaralhando os seus sentidos. Desvestido da batina, desnudo de pudor, o padre se entregou a ela. Mais do que o corpo, ele entregou foi a alma. A Morte o beijou na boca, mesmo sentindo a frieza de seus lábios, o padre gemeu de prazer. Afoito, ele pôs a língua dentro da boca da Morte, abrindo passagem para que ela a sugasse. Entremeado por gritos de prazer e dor, o padre quando percebeu o que estava acontecendo, não teve como reagir, era tarde demais. Sua vida foi aspirada pela boca. Regozijando por mais uma vida ter sido ceifada, a Morte se encontrou com o Cramulhão.
   Eles se misturaram a população dando risos cabruncos. Seus risos se confundiram com os risos dos transeuntes. A similitude entre eles e a população era divina, beirava a perfeição.
  

sábado, 4 de setembro de 2010

O riso cabrunco


   Pranteado por aqueles que ainda o queria entre os vivos, o desgraçado se agarrou a sua fé na esperança que a salvação viesse nas palavras de um padre. As vidas que ele havia ceifado brutalmente o tinha condenado, e não haveria como escapar de mim. Éramos demasiadamente iguais na pratica da maldade.
   As carpideiras vestidas de preto-tristeza arrumavam os lenços bordados com anjos em ponto e cruz, ainda sem os véus negros de tule na cabeça; elas, sisudas, presas aos seus próprios pensamentos, nutriam de uma tristeza inerente a cada uma, preparando as lágrimas que estavam por vir. Somente o desgraçado pensava em se salvar apegado a sua fé; elas não, necessitavam da morte para terem significado.
   Bela, a senhora soberana ia cadenciando os seus passos, sem pressa, pois sabia que chegando ao seu destino, não havia força, seja natural ou sobrenatural, que a demovia do seu intento. Sem o capuz sobre a cabeça, a dama de preto, troçando com a gadanha em mãos, ia requebrando, sensual, malemolente, sabedora de si, tal qual a descrita por Saramago em seu livro: As intermitências da morte; certa que as tentativas que ele fizesse para detê-la seriam infrutíferas.
   O padre, de hábito preto e estola no pescoço, estava mais preocupado com a boa comida tida e havida em toda casa cristã, assim como um bom vinho, do que propriamente salvar a alma do desgraçado, pois a carne do moribundo estava mais para a putrefação. Mas antes de começar a extrema-unção, afinal foi para isso que veio, ele correu até a cozinha, sem cerimônias, encheu as mãos de salgadinhos que havia em cima da mesa para as cerimônias – preparos já adiantados – do velório, pois o desgraçado – atrasado em morrer – agarrou-se a um fio de esperança que o retinha.
   Empanturrado, não encontrando um bom vinho, e por isso achando que ali não deveria ser uma casa cristã, bebeu uma cola mesmo, pois os salgadinhos pediam urgentemente qualquer líquido para melhor descer goela abaixo. Inferno, vociferou, isso é bebida dos infernos. Em pensamento, pediu perdão a deus pela blasfêmia dita.
   Prostrado na cama, o desgraçado, igual fusca com a bateria arriada, arranha, mas não pega, não ata, nem desata, não foge e nem sai de cima, e é foge mesmo, pois nem para foder serviu; enfim, não morre. Isso está me agoniando. Cadê a Morte? Então, como ia dizendo, prostrado na cama, o desgraçado do moribundo viu o desespero do padre comilão tentando se desentalar, com toda comicidade possível tida-havida nessa hora, e, depois, o alívio, carregado de dramaticidade, por ter conseguido.
   Adiposo, o padre comilão equilibrava mais com as mãos, apoiando no que encontrava pela frente, do que propriamente com os pés apoiados no chão. O comilão, ainda com a boca refestelada de salgadinhos, os cantos incrustados de migalhas dos mesmos e a cola escorrendo pelo queixo, passou os lábios na manga da batina na tentativa de se limpar e formigou, a passos lerdos, em direção à cadeira colocada ao lado do desgraçado moribundo. Este, ao ver o comilão se jogar sobre o assento da cadeira – que abriu as pernas soltando um uivo agudo e por pouco não o levou ao chão -, desesperou-se ao notar que o padre se preocupava mais na satisfação da sua gula do que salvar almas como a sua. A raiva lhe subiu aos olhos, inturgescendo-os muito mais ainda do que estavam devido aos prantos por a vida estar sendo lhe tomada. Quando o comilão, ao invés de rogar a sua salvação, deu-lhe a extrema-unção, os seus olhos saltaram do rosto. A força que lhe restava foi o suficiente para se atracar a sua estola, enforcando-o. O comilão, apesar do dia cálido e seco, sentiu uma leve brisa gélida lhe subir pela nuca, dar uma volta na sua cabeça e adentrá-lo pelos poros, possuindo a sua alma. Ele não lutou, nem tentou se desvencilhar das mãos do moribundo, se houvesse chegado a sua hora, aceitava-a se esse fosse os desígnios de deus, e não haveria melhor hora para se morrer do que aquela, de barriga cheia. Porém, o tolo comilão não sabia que a bela soberana, em sua manta negra, com a cabeça coberta pelo capuz e portando uma gadanha, espreitava-os. Sabendo que a hora do padre não havia chegado, desvencilhou-o das garras do moribundo, e deitando em sua cama, a Morte lhe expirou a vida.
   As carpideiras começaram a chorar, lamuriando, de uma maneira tão convincente, que não houve quem dissesse que era teatro.
   O padre comilão, a passos lestos, movido mais pelo medo do que pelas suas forças, achou equilíbrio e rumou em direções erráticas com a pele da cor da polpa da manga imatura.
   A Morte, eficiente ao laborar, trouxe-mo e partiu lestamente, pois cometera um erro – coisa rara -, a hora do padre também havia chegado.
   Eu pensara que ele relutaria em ficar aqui, mas, abnegado, um cansaço entristecedor nos olhos, talvez não tivesse forças para tanto; ou, quiçá, ele soubesse que o seu destino final era ter comigo, afinal, a maldade é sempre mãe, nunca madrasta, ensina a todos os malvados o caminho que leva a mim. Então nos servimos de um bom vinho tinto suave, porque assim a ocasião pedia, mormente se se brinda entre iguais. Sentamos no sofá, ele foi o primeiro e o único a falar.
   - Sabe qual a diferença daqui para a terra? – Disse isso sem saudades, tristeza ou quaisquer outros sentimentos; por não ser característica das pessoas más demonstrarem sentimentos. Aguardei a sua resposta, silente. Após alguns segundo – não que ele precisasse deste tempo para responder, mas é somente para degustar mais e ainda o vinho -, a serenidade lhe tomou os olhos, o cansaço rumou distante como se o efeito do vinho lhe tivesse atingido o ânimo, e ele, com os lábios acolhidos por um riso sarcástico, me disse:
   - Pelos menos aqui, no inferno, o vinho é melhor.
   Brindamos. Liguei a televisão no canal terrestre, sintonizei o noticiário, deitei os meus olhos nas notícias, depois os percorri por todo o inferno, virei para lhe dizer algumas palavras, mas ele havia sido levado pelos meus anjos luciferinos à sua morada final. Joguei palavras ao vento:
   - Você tem razão!
   Risos Cabrunco me encheram de felicidades.     


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quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Adeus

            barro bom não dissolve
não petrifica não vira pó
                deus o inspira