Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

sábado, 4 de setembro de 2010

O riso cabrunco


   Pranteado por aqueles que ainda o queria entre os vivos, o desgraçado se agarrou a sua fé na esperança que a salvação viesse nas palavras de um padre. As vidas que ele havia ceifado brutalmente o tinha condenado, e não haveria como escapar de mim. Éramos demasiadamente iguais na pratica da maldade.
   As carpideiras vestidas de preto-tristeza arrumavam os lenços bordados com anjos em ponto e cruz, ainda sem os véus negros de tule na cabeça; elas, sisudas, presas aos seus próprios pensamentos, nutriam de uma tristeza inerente a cada uma, preparando as lágrimas que estavam por vir. Somente o desgraçado pensava em se salvar apegado a sua fé; elas não, necessitavam da morte para terem significado.
   Bela, a senhora soberana ia cadenciando os seus passos, sem pressa, pois sabia que chegando ao seu destino, não havia força, seja natural ou sobrenatural, que a demovia do seu intento. Sem o capuz sobre a cabeça, a dama de preto, troçando com a gadanha em mãos, ia requebrando, sensual, malemolente, sabedora de si, tal qual a descrita por Saramago em seu livro: As intermitências da morte; certa que as tentativas que ele fizesse para detê-la seriam infrutíferas.
   O padre, de hábito preto e estola no pescoço, estava mais preocupado com a boa comida tida e havida em toda casa cristã, assim como um bom vinho, do que propriamente salvar a alma do desgraçado, pois a carne do moribundo estava mais para a putrefação. Mas antes de começar a extrema-unção, afinal foi para isso que veio, ele correu até a cozinha, sem cerimônias, encheu as mãos de salgadinhos que havia em cima da mesa para as cerimônias – preparos já adiantados – do velório, pois o desgraçado – atrasado em morrer – agarrou-se a um fio de esperança que o retinha.
   Empanturrado, não encontrando um bom vinho, e por isso achando que ali não deveria ser uma casa cristã, bebeu uma cola mesmo, pois os salgadinhos pediam urgentemente qualquer líquido para melhor descer goela abaixo. Inferno, vociferou, isso é bebida dos infernos. Em pensamento, pediu perdão a deus pela blasfêmia dita.
   Prostrado na cama, o desgraçado, igual fusca com a bateria arriada, arranha, mas não pega, não ata, nem desata, não foge e nem sai de cima, e é foge mesmo, pois nem para foder serviu; enfim, não morre. Isso está me agoniando. Cadê a Morte? Então, como ia dizendo, prostrado na cama, o desgraçado do moribundo viu o desespero do padre comilão tentando se desentalar, com toda comicidade possível tida-havida nessa hora, e, depois, o alívio, carregado de dramaticidade, por ter conseguido.
   Adiposo, o padre comilão equilibrava mais com as mãos, apoiando no que encontrava pela frente, do que propriamente com os pés apoiados no chão. O comilão, ainda com a boca refestelada de salgadinhos, os cantos incrustados de migalhas dos mesmos e a cola escorrendo pelo queixo, passou os lábios na manga da batina na tentativa de se limpar e formigou, a passos lerdos, em direção à cadeira colocada ao lado do desgraçado moribundo. Este, ao ver o comilão se jogar sobre o assento da cadeira – que abriu as pernas soltando um uivo agudo e por pouco não o levou ao chão -, desesperou-se ao notar que o padre se preocupava mais na satisfação da sua gula do que salvar almas como a sua. A raiva lhe subiu aos olhos, inturgescendo-os muito mais ainda do que estavam devido aos prantos por a vida estar sendo lhe tomada. Quando o comilão, ao invés de rogar a sua salvação, deu-lhe a extrema-unção, os seus olhos saltaram do rosto. A força que lhe restava foi o suficiente para se atracar a sua estola, enforcando-o. O comilão, apesar do dia cálido e seco, sentiu uma leve brisa gélida lhe subir pela nuca, dar uma volta na sua cabeça e adentrá-lo pelos poros, possuindo a sua alma. Ele não lutou, nem tentou se desvencilhar das mãos do moribundo, se houvesse chegado a sua hora, aceitava-a se esse fosse os desígnios de deus, e não haveria melhor hora para se morrer do que aquela, de barriga cheia. Porém, o tolo comilão não sabia que a bela soberana, em sua manta negra, com a cabeça coberta pelo capuz e portando uma gadanha, espreitava-os. Sabendo que a hora do padre não havia chegado, desvencilhou-o das garras do moribundo, e deitando em sua cama, a Morte lhe expirou a vida.
   As carpideiras começaram a chorar, lamuriando, de uma maneira tão convincente, que não houve quem dissesse que era teatro.
   O padre comilão, a passos lestos, movido mais pelo medo do que pelas suas forças, achou equilíbrio e rumou em direções erráticas com a pele da cor da polpa da manga imatura.
   A Morte, eficiente ao laborar, trouxe-mo e partiu lestamente, pois cometera um erro – coisa rara -, a hora do padre também havia chegado.
   Eu pensara que ele relutaria em ficar aqui, mas, abnegado, um cansaço entristecedor nos olhos, talvez não tivesse forças para tanto; ou, quiçá, ele soubesse que o seu destino final era ter comigo, afinal, a maldade é sempre mãe, nunca madrasta, ensina a todos os malvados o caminho que leva a mim. Então nos servimos de um bom vinho tinto suave, porque assim a ocasião pedia, mormente se se brinda entre iguais. Sentamos no sofá, ele foi o primeiro e o único a falar.
   - Sabe qual a diferença daqui para a terra? – Disse isso sem saudades, tristeza ou quaisquer outros sentimentos; por não ser característica das pessoas más demonstrarem sentimentos. Aguardei a sua resposta, silente. Após alguns segundo – não que ele precisasse deste tempo para responder, mas é somente para degustar mais e ainda o vinho -, a serenidade lhe tomou os olhos, o cansaço rumou distante como se o efeito do vinho lhe tivesse atingido o ânimo, e ele, com os lábios acolhidos por um riso sarcástico, me disse:
   - Pelos menos aqui, no inferno, o vinho é melhor.
   Brindamos. Liguei a televisão no canal terrestre, sintonizei o noticiário, deitei os meus olhos nas notícias, depois os percorri por todo o inferno, virei para lhe dizer algumas palavras, mas ele havia sido levado pelos meus anjos luciferinos à sua morada final. Joguei palavras ao vento:
   - Você tem razão!
   Risos Cabrunco me encheram de felicidades.     


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11 comentários:

  1. E a diferênça entre ambos, qual é?
    Não é
    Não tem
    Só existe a semelhança
    O inferno.

    Abraços.

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  2. Que diabólico! rsrs! Adorei! E a diferença entre a mãe e a madrasta das maldades? Lição de vida, carregarei comigo! Na dúvida, no entanto, sem saber do destino da linda mulher de negro e do padre comilão... Será que prevejo continuação? Beijos, mano! Deia.

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  3. A gente não, mas o diabo conhece as frutas podres.

    : )

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  4. Escatológico, o riso cabrunco...hehe!! Tens fértil e criativa imaginação Eder. Tens a escrita nas mãos. Um grande abraço, boa noite ;)

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  5. Éder, um conto maravilhoso. Bem escrito e sobre um tema que em nada é leve, mas que você o conseguiu fazê-lo.
    Um beijo

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  6. Bom dia meu amigo,

    Passei para desejar uma ótima semana.

    Peço desculpas pela minha ausência mas, quando a saúde está em baixa temos que dar um tempo.

    Um abraço e Deus esteja contigo.

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  7. rsrsrrsrs...muuuuuito bommm!!! A diferença é só essa? Pois acho que cabe continuação, aliás, seria ótimo ver como se sai o malvado frente a frente com o cramulhão...
    "...afinal, a maldade é sempre mãe, nunca madrasta, ensina a todos os malvados o caminho que leva a mim." Acho que essa é a maior diferença: punição. Aqui não há e os corruptos e corruptores, verdadeiros fratricidas que com suas maracutaias tiram do povo o direito à saúde e educação (para dizer o mínimo), seguem pela vida afora sem ver castigo. Ao menos lá, então, que a mãe maldade nos vingue.
    Adorei o texto.
    Beijokas.

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  8. Bem escrito, como sempre!
    =)

    Adorei sua presença por lá.
    Bom feriado.
    Beijo meu.

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  9. Você consegue fazer o padre comilão ser nojento. E se eu estivesse morrendo com um padre desses por perto, bem que eu ficava danada da vida, e espantava a morte por uns instantes.

    Um conto bem contado, bem interessente.

    abraço

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  10. Eder, muito obrigado pela participação em meu blog. Você escreve muito bem.

    abraços
    de luz e paz

    Hugo

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  11. Oiê,

    Então, é como dizem: o hábito não faz o monge... De "boas" intenções o inferno está cheio...
    Seu texto deixou um gostinho de: CONTINUA NOS PRÓXIMOS CAPÍTULOS, rsrsrs

    Abraços :)

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