imagem clique aqui
Ao voltar à Bahia não intenciono apenas encontrar os parentes vivos, mas também o meu avô, morto em dois mil e um. A sua história encontra-se gravada no chão de minha terra. Pisá-la, descalço ou com havaianas, mais do que me situar no espaço físico, situa-me intrinsecamente, pois ele sempre intentou me levar onde a felicidade estava sem da Bahia sair.
Dizia ele que todo brasileiro é filho da Bahia, pois tudo começou com uma sacanagem entre portugueses, índias e negras nas praias de Porto Seguro. O fruto da miscelânea chamava-se preguiça, portanto, os primeiros a saírem da Bahia, cansados, pararam em Minas, conseguinte, os mineiros não passam de baianos cansados. Os que venceram a preguiça e seguiram em frente e pararam no Rio não são cariocas, mas baianos folgados, tomaram o morro para si e se acham reis. Os desvairados que chegaram a São Paulo e ficaram por lá não são paulista, mas baianos burros, escravos do trabalho, medem o tempo pelo dinheiro ganho, mas não pela hora vivida. Os que conseguiram chegar ao sul não são gaúchos, mas baianos "chibungos", passaram a apreciar linguiça no espeto, mais tarde, ora apreciam só a linguiça, ora o espeto. Enfim, os espertos atravessaram os pampas para se transformarem em baianos muambeiros, ricos, foram mais longe e chegaram a Miami para permanecerem muambeiros. Ele dizia isso com tanta convicção que tornava crível.
Ao atravessar a fronteira de São Paulo com Minas me abateu uma preguiça, me fazendo perceber que perdera a minha burrice, adquirindo um cansaço lesado. Ainda bem que não estávamos indo para o sul. Ao chegarmos a Belo Horizonte, o ônibus foi para a revisão e abastecimento. Ele veio em direção ao motorista, calçado com havaianas, em passos lesos, com metade de um pão de queijo na mão, a outra metade na boca e um copo de café com leite na outra mão. Pela cor da sua roupa suja de graxa, ele só poderia ser o mecânico. Vai ter quer trocar de ônibus, este está fervendo. Disse isso apontando para o ônibus e cuspindo farelos de pão de queijo. Após quarenta minutos para a troca da bagagem, o outro ônibus partiu e quebrou quinhentos metros depois próximo a uma passarela. Havia soltado a mangueira do radiador esvaziando-o por completo. Todos fora do ônibus rindo à toa pela desdita viagem, menos uma das senhoras idosas e a sua filha também idosa, reclamando das quebras dos ônibus e pelo fato de ter quer trocar as bagagens. O motorista nervoso até as tampas pediu para elas entrarem no ônibus quebrado para não deixar as coisas piores do que estavam. Elas disseram em uníssono, pior só se chover. Um vento úmido, prenúncio de chuva varreu a rua. Porém só ficou nisso, a chuva não veio. Todos estavam com fome. Um homem postado em um ponto de ônibus segurava um queijo. Um dos passageiros perguntou quanto ele queria no redondo. Quem vai segurar o queijo, tchê, assim ele respondeu. O menino fanta se empolgou, mas foi contido pelo seu companheiro que o segurou pelo braço com firmeza.
Apesar de estarem calçados com havaianas, os meus pés doíam muito devido a espera. Decorridos oitenta minutos, o outro ônibus não havia chegado. Uma balburdia provocada por três adolescentes me chamou a atenção. Elas "mangavam" de todos nós aos gritos. Ao chegarem ao meio da passarela desceram a calça jeans e em seguida a calcinha, mostrando as suas respectivas bundas (como todos sabem, a bunda das mineiras parece mais um pão de queijo rachado ao meio) sem perder tempo apontei o celular para capturar aquela cena insólita. Só deu para perceber a mão descendo quando o flash disparou, ao se encontrar com o meu ombro sabia de quem era a mão devido o seu peso. Pouco lhe importou dizer que a foto era para provar que os relatos sobre a viagem eram verídicos, a minha esposa simplesmente a apagou, apesar de não estar nítida, mal dava para identificar as duas bandas dos pães de queijo das periguetes, quanto mais o "ó do borogodó".
Devido às trocas de ônibus, a maioria das malas perdeu os tíquetes de identificação. A senhora idosa juntamente com a sua filha idosa desembarcaram e não estava encontrando uma das malas. A outra que estava com ela era minha. Fui reclamar ao motorista e ele disse que teríamos de dizer uma peça de roupa que poderia ser encontrada na mala. Falei que havia o uniforme do time do São Paulo. O menino fanta calçado na sua havaiana rosa disse que também tinha um uniforme igual ao meu e se torcíamos pelo mesmo time, quem sabe jogávamos também no mesmo time. Minha esposa jogou-lhe um olhar fulminante, deste de derrubar qualquer concorrência, que o menino fanta perdeu o gás. O ônibus ia chegando ao fim da viagem e os passageiros que desciam no seu respectivo destino tinham que relatar a peça de vestuário ou o objeto que levava na mala para reavê-la.
O menino fanta discutia com outra passageira dizendo que a mala que ela dizia ser sua era dele. Novamente o motorista pediu que dissessem uma peça de roupa que havia na mala para certificar de quem era. Ela disse que tinha uma calcinha rosa, ele também; ela disse que tinha um fio dental branco, ele também; uma calcinha preta, vermelha, azul, ele também tinha todas essas cores, enfim ela disse que tinha uma calcinha roxa, ele também, porém, com a estampa do Rogério Ceni, goleiro do São Paulo na parte de trás da calcinha. Todos se entreolharam curiosos para saber o motivo da insólita estampa. Antes que alguém perguntasse, ele respondeu, pois no olhar de todos subentendia que havia a pergunta. Ora, tchê! Ele não é o melhor goleiro do país? Portanto ele tem que ficar no meio do gol para não deixar entrar as bolas. Dizendo isso o menino fanta abriu a mala e retirou a calcinha com a estampa, e pelo estado surrado da estampa do Rogério Ceni, ele havia evitado que muitas bolas passassem.
Enfim chegamos à Bahia. As duas malas da senhora idosa foram achadas e eram as únicas que tinha o tíquete de identificação.
Quando cheguei ao meu destino final me desfiz das havaianas, pisei no chão quente e senti o meu avô próximo a mim dizer:
- Vamos meu neto ao encontro da felicidade!
Apesar de a viagem ter continuado, o relato termina aqui, sem antes dizer que o meu avô, mais uma vez, como sempre fez , cumpriu a sua palavra.
Este texto não foi patrocinado pelas sandálias havaianas. Os relatos aqui narrados podem não parecer, mas são verídicos (?). As palavras e frases entre aspas pertencem ao Dicionário da Língua Portuguesa Baiana.
Espero que tenha gostado da viagem.