Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

sábado, 30 de maio de 2009

Não somos mais os mesmos


As estações mudaram e ele permanecia com a traseira sentada no chão frio, pois o inverno se aproximava, o rabo de vez em quando se mexia pressentindo a chegada dela, por ser alarme falso as orelhas decaíram, o olhar enternecido quase ia as lágrimas e o uivo lamentoso que ele dava, além de entristecer o já triste ambiente, prenunciava que ela tão cedo não voltaria.
Ainda me lembro quando eu assava a tapioca, retirava o coco ralado e o leite condensado da geladeira, e ele, afoito, deslizava sobre o chão, com uma destreza para desviar dos móveis que eu me perguntava se havia maior prova de amor, ou então se era ele que conseguia demonstrar mais amor do que eu. E antes que ela tocasse a campainha, ele latia anunciando a sua chegada. Quando se ama e é amado em demasia entendemos todas as línguas, até as dos animais. E ela com seu jeito de dizer eu te amo com o corpo, gesticulando, me dizia que não havia mais necessidade de campainha, a não ser que o cachorro reconhecesse outra mulher e me avisasse que ela estava chegando para eu abrir a porta. Mas ela sabia que todas as portas que havia em mim pertenciam somente a, e eram abertas somente para ela.
Ainda é cedo e ele a espera, mal sabe ele que não somos mais os mesmos, que não entendemos mais os signos que nossos corpos exprimiam e nem os símbolos que em nossas almas haviam e nos significavam. Tudo bem, tudo passa mesmo não passando bem, mesmo com as incertezas do que poderá vir a ser, mesmo se as certezas que nós tínhamos não as sabemos mais como sabíamos antes. Eu tento entender o que se passa com ele, pois agora ele está com os olhos postos nos meus como se quisesse entender as minhas tristezas, ou quiçá saber se as minhas eram iguais as suas, visto que o motivo era, a falta dela. Ele aguça o olfato tentando farejar em mim o doce aroma que ela deixava, uma sensação primaveril permanente não importando que estação estávamos. Mas no estado que eu me encontrava, melancólico, o que exalava de mim encobria qualquer aroma. Eu estava amargo e invernal. Qual sentimento mais dolorido do que a tristeza nos deixando num permanente estado de frieza. Permaneci com os meus olhos nos dele para ver se entendia da natureza animal, pois da humana qualquer leitura que fizesse era ininteligível.
Dela, os olhos, lindo olhos, contam a minha história. Quando da primeira vez os meus olhos os dela se encontraram, souberam os olhos dela ler todos os códigos que havia em mim, souberam decifrar o genoma da minha alma. A mim não cabia ser, a não ser, ser para ela.
Ele não desviava o olhar de mim, como se pedisse socorro, como se a falta dela lhe tirasse a esperança que se poderia viver o depois de amanhã. O que ele não entendia que o pedido de socorro era mútuo. Cansado de esperar entendemos que se continuássemos a nos olhar, a tristeza não seria passageira, apesar de saber, intimamente, que ela não era. Nos olhamos mais uma vez para percebermos que precisávamos de novos amigos, de novos amores, pois não nos bastávamos.
Entrei, liguei a televisão para ter a sensação de que a casa estava cheia. Ninguém, em sã consciência, sozinho é são. Ele me acompanhou, não sei se compartilhando dos mesmos pensamentos, para não me deixar só. Ele deitou no meu colo cruzando as patas, uma sobre a outra e deixando cair sobre as mesmas a cabeça, adormeceu após eu lhe acarinhar. Por ser animal ele necessitava do contato físico para amar e ser amado, eu nem tanto.
Ela fugiu sem ao menos dizer adeus, mesmo assim permanece em mim um amor imutável, daquele que não precisa da pessoa fisicamente, mas apenas saber que ela continua presente por ser o amor, por ela, nato de dentro para fora, amor este infindável por um único motivo, ser verdadeiro e por ser assim, ser puro.
Olho mais uma vez para ele e lhe sorrio, certo de que não precisaríamos de novo amigos, de novos amores, tínhamos um ao outro. Era o suficiente. Permaneceríamos vivos.



foto de Manuel Catarino http://br.olhares.com/cao_triste_foto582738.html

domingo, 17 de maio de 2009

Estou de partida


Tenho saudades de minha infância, saudades de jogar bola de gude na rua embaixo da amendoeira; dos brinquedos feitos com o tronco do buriti; de brincar de pique e esconde a noite; de tomar banho na chuva; de esquentar no inverno agachado em cima do fogão de lenha esperando minha avó fazer cuscuz de arroz; do cheiro da terra molhada pela chuva, aroma de felicidade; do entoar dos pássaros todas as manhãs; do banho no rio à tarde; da inocência perdida tardiamente. Saudades dessa infância rica e cheia de cores e aromas que aguçavam todos os sentidos. Saudades desse tempo tirado que só retorna na memória.
Vou embora em busca deste tempo esquecido em uma cidade do interior do meu país. Vou mostrar para minha filha o cheiro da terra; ensiná-la como subir num pé de manga para alcançar a fruta madura; como cavalgar um bode, e se cair como se levantar; como fazer uma boneca de pano; ensiná-la a diferenciar pelo aroma, se é manhã, tarde ou noite.
Estou partindo para uma cidade qualquer do interior do meu país antes que a inocência de minha filha parta de uma vez tirando-lhe a infância.

sábado, 9 de maio de 2009

O peso da idade


Quando a idade nos faz ver que não somos mais capazes de executar as tarefas mais simples, o que fazemos quando limitados, choramos as mágoas ou sorrimos da desgraça? A resposta cabe a cada um de nós e ela advém da visão que entendemos da vida. Minha mãe, senhora dos seus setenta dois anos, artesã, vê a vida como uma dádiva de Deus. Sorridente, pouco se queixa. Nascido numa família cercado por mulheres – tenho seis irmãs e apenas um irmão - aprendi mais com ela do que com o meu pai. Dela vem o gosto pela leitura e pela escrita. Ela morando no interior eu na capital, nossas visitas são um eterno contemplar, falamos-nos e ouvimos-nos. Numa dessas visitas, ela estava absorta no seu artesanato, eu a admirar. Repentinamente ela levanta e começa a remexer em gavetas, tirar os livros dos lugares na estante. Volta para o seu trabalho e sorrindo me diz que a sua memória estava lhe traindo, pois ela não conseguia mais lembrar aonde deixava os seus objetos. Recomendo-lhe que ela marcasse numa caderneta aonde os deixava, assim era só olhar na caderneta que ela encontraria. Bingo, você é um gênio meu filho. Ri do seu comentário. Despeço dela e saio em visita a uma irmã que também mora no interior. Lá fico sabendo que minhas outras irmãs e meu irmão estavam vindo para visitar minha mãe. Passeio um pouco pela cidade e esqueço das horas. É maravilhoso quando, nada para fazer, fico a admirar a natureza, a olhar uma formiga carregando uma folha para o formigueiro, ou o canto do sabiá no pé de laranjeira. São essas pequenas coisas simples que me faz entender que cada ser vivente é merecedor da vida. Volto para a casa da minha mãe e percebo minhas irmãs a revirar a mesma, meu pai a reclamar ajudando e minha mãe dando gargalhadas. Não entendo a cena e adentro a casa e meu pai esbravejando reclama a mim o fato de estar ele ali naquele cenário trágico-cômico quando deveria estar pescando. Minha mãe, ente risos, me diz:
- Segui teu conselho a risca. Guardei todas os meus objetos e anotei na caderneta como você me pediu. Só tem um problema. Não sei onde guardei a caderneta.
A sua gargalhada ecoa pelos cantos da casa. Guardei o meu riso para não ferir ainda mais o brio do meu pai, assim também fizeram minhas irmãs. Ali está uma pessoa que sabe viver a vida.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Uma breve história

“Se, apesar de tudo, os homens não conseguem fazer com que a história tenha significado, eles podem sempre agir de uma maneira que faça suas vidas terem um – Albert Camus”.

Que dor infernal é esta queimando os meus miolos como se houvesse um vulcão na minha cabeça a entrar em erupção; que vozes são essas, uma balburdia incompreensível, diálogos inaudíveis, traços de sons ininteligíveis; de quem é aquele corpo estranho deitado na minha cama como se sua fosse, vestindo as minhas roupas e lhas cabendo como se o corpo meu fosse.
Não sei, nunca soube, como começar a história, a minha história, pois seja pelo início, meio ou fim a minha vida sempre transitou pela desesperança silente, pela tristeza permanente. Despossuído de qualquer bem material, aos olhos da sociedade, eu era, também, despossuído do ser, um zé ninguém, mais um número para o aumento das estatísticas de miserabilidade, de criminalidade, da população carcerária, dos que usufruem os programas sociais do governo, de desempregados, e etc.
O prefixo “des” somente me cabe em um único significado, a falta de, e quando falta tudo, quando a carência é gritante, ser é apenas um detalhe descartável, um sussurro, inaudível, da vontade divina. Por isso nada acrescentará a história se eu contar a minha história pelo princípio ou meio, pois ela é semelhante às histórias de zés ninguéns lidas nos jornais ou vistas na televisão. Não que o fim seja diferente. Então, para encurtar, a começamos pelo fim, por ser, para mim, a melhor maneira de se contar uma história.
É de difícil compreensão você se vê estirado na cama, inerte, sua cabeça com um buraco no meio esguichando lavas incandescentes e sobre as mesmas massas brancas borbulhando. Menos compreensível são seres alados e luminosos lhe ofuscar a vista a ponto de quase lhe cegar e não lhe permitir voltar para o seu próprio corpo. Foi aí que me dei conta que eu estava morto.
Era o fim da minha história, mas não propriamente da história. Fora de mim, ou seja, do meu corpo, eu tive uma compreensão, não direi que completa, do que é a vida, isto é, de tudo que é humano. Eu vi o baixo e o alto escalão do governo; vereadores, deputados e senadores; patrícinhas, mauricinhos e toda e qualquer tribo; assalariados, jornalistas e escritores; líderes empresariais e religiosos; advogados, médicos e artistas subirem o morro em busca do pó branco da alegria. Mas quando eles descem trazem consigo o sangue necessário usado para dar brancura ao pó, na maioria das vezes sangue de inocentes. Eles fingiam não saber que a mesma alegria, momentânea, proporcionado pelo pó cobra, em pesos e medidas desproporcionais ao prazer obtido, o seu valor correspondente, a desalegria imutável e permanente. E por fim é a própria vida que cobra o seu preço, o maior de todos - se do pó sobreviveste, pó serás. -, a morte, indubitavelmente, muito cedo.
Eu vi o traficante descer o morro e ser considerado Deus, chegar até ao asfalto e ter permanecido. A história esta aí para não me desmentir – do Sol ao bode, de Zeus a Deus. -, o homem sempre teve a necessidade de acreditar em um Deus, e para lhe dar serventia houve a necessidade de criar o seu oponente, o Diabo. Nos dias atuais quem é Deus, o que é Deus? Para a maioria dos humanos é tudo aquilo que possa lhe proporcionar prazer, carnal. E tudo aquilo que for de encontro ao prazer, por definição, é o Diabo. Portanto o dinheiro, o mercado, as drogas e etc são considerados deuses; por isso tê-los é se sentir o próprio Deus. O traficante tinha este poder, ele tinha as drogas, o mercado, o dinheiro e para permanecer nele transitava em todos os níveis da sociedade, a corrompendo as custas das almas dos desesperançados, como a minha.
Eu vi o traficante desenvolto entre senadores, deputados, prefeitos, governadores, juízes e etc. Eles riam, riam soltos, despreocupados. Destituídos de qualquer sentimento pelos outros, a não ser menosprezo, eles falavam sobre amenidades; entrementes balas zuniam perdidas em busca de algum corpo que lhe dessem sentido. Minutos atrás, as significando, eu as senti na cabeça.
Um outro traficante, no alto do morro, com sua metralhadora rasgava o céu para que pudesse ser ouvido. Eu sou Deus, dizia ele. Porém quem o escutava estava mais embaixo, a poucos metros, como os olhos hirtos, avermelhados e apavorantes; com as narinas intumescidas roubando todo o ar ao seu redor; babando pelos cantos da boca; com as mãos tensas sobre a metralhadora, prontas a disparar, se não fosse humano diria que era o próprio Diabo. Com ele havia mais quatro. O policial beijou o cabo da metralhadora, a abençoou e com o alvo na mira disparou. Enquanto as balas atravessavam o ar para alcançar a cabeça do traficante, no asfalto os políticos dormiam tranqüilamente; o morro por mais barulhos que fizesse não os despertariam do seu sono letárgico e permanente. Enfim toda a sociedade permaneceria adormecida; o morro não, ali ninguém tinha sossego, não tinham como ser indiferentes, todos são afetados.
Ao cair no chão o traficante não se surpreendeu ao ver cinco metralhadoras postas em círculos sobre a sua cabeça. Agonizante, entre risos de escárnio, ele balbuciou com esforço, pois as palavras estavam sendo retidas pela morte, mas antes que o fio da vida fosse expirado, ele disse, “não se mata um Deus”. O barulho ensurdecedor das balas sendo cuspidas das cinco metralhadoras ecoaram por todo o morro. Restos de cabelos esvoaçavam pelo ar, pedaços de crânio espatifavam nas pedras esfarelando-se, a massa encefálica liquidificava misturada ao sangue. Como os povos antigos que arrancavam a cabeça de sua vítima em sacrifício aos seus deuses, estava o traficante.
Havia um prazer transparente nos rostos dos cinco policiais, a morte os levava a um clímax como o sexo aos amantes. Ainda consigo ouvir o policial dizer que há muito tempo Deus foi morto e que somente os traficantes idiotas não percebiam. A entonação e a articulação das palavras dava uma certeza amedrontadora e a seriedade com que eram ditas assustavam mais do que as armas.
Colocando a arma no ombro os policiais saem do cenário do crime em gargalhadas, mas sem antes de um deles voltar e dar um chute no traseiro do traficante e sussurrar, “adeus, Deus”.

“Não há morte, de alguma forma a vida continua, como a história, ela não tem fim...”

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*O autor alerta que a história não é fato, e tão pouco autobiógrafo, as personagens pertencem ao mundo da ficção, qualquer semelhança com fatos reais pertencem ao campo da coincidência*