Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

domingo, 19 de setembro de 2010

Demência

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   “Você é entristecedor.
  
   Quando você ouve palavras soltas no ar, a primeira reação é olhar para todos os lados a procura da pessoa que as pronunciaram. Se você não a acha é sinal que alguma coisa pode estar errado com você.

   Você é entristecedor. A voz repetiu, assustando-me.

   A linha que separa os loucos dos sãos é tênue, e, você nunca sabe em qual lado ela está, mormente se loucos são sempre os outros.

   “Você é entristecedor. Insistente, a voz estava me dando nos nervos.

    Eu comecei a dar socos no ar na tentativa de acertar a pessoa imaginária que me atormentava com o seu mantra. Um transeunte passando naquele momento disse:
   “Este cara é louco”.
   Procurei-o entre a multidão e o vi enterrado em um boné, ouvindo Mano Brown no celular, andando símile ao primeiro macaco quando desceu da árvore para dar origem ao que chamamos hoje de humano. O sujeito tinha o escudo do time do Corinthians tatuado no braço e logo abaixo escrito:
   “Louco por ti”.
   E o louco sou eu. Deixamo-lo ir, certamente alguma árvore o espera, ou quiçá um manicômio, afinal, como já disse, loucos são os outros.

   “Você é entristecedor. Enfática, eu senti a voz reprovando o que acabará de dizer.

   “O que você quer de mim?”
   Gritei talmente o pastor na igreja para chamar a atenção de quem passa na rua para angariar ovelhas desgarradas, ou – é o que creio -, ele grita por estar longe de Deus. Como ia dizendo, gritei para ser ouvido, não por Deus – somente um louco acredita atingir Deus pela balbúrdia. A presença de Deus se faz pelo silêncio. -, mas para afugentar a voz.
   Repentinamente, eu não ouvi mais a voz, porém, eu senti uma mão grande e pesada nas minhas costas me empurrando para trás, e outra exercendo uma força desmesurável na minha cabeça, girando-a para os lados. Novamente a voz se fez ouvida.

   “Você só enxerga o próprio umbigo, não consegue ver o que está acontecendo à sua frente, do seu lado e nunca aprende ao olhar para trás. Você, realmente, é entristecedor. Olha! Enxerga!”

   Eu vi duas crianças brincando entre flores, mas não consegui enxergar quem elas eram. Notei que um homem as ensinava a pular corda. Vi quando ele amarrou a corda na árvore e começou a girá-la no ar. As crianças pulavam cada vez mais alto, e, perdidas entre nuvens de algodão doce, olhou para mim e disse:
   “Oi, pai!”
   Foi então que percebi que aquele homem um dia fora eu.
   A mão cada vez mais pesava sobre a minha cabeça, forçando a cura para a minha demência ao pôr os meus olhos sobre as minhas reminiscências
   O restaurante estava lotado, contudo um homem me chamou a atenção ao puxar a cadeira para a sua acompanhante sentar-se. Ele próprio serviu o vinho em cálices de cristal. Quando eles brindaram, no vidro dos cálices vi a imagem da felicidade refletida. Dei-me conta de quem eles eram quando no salão de dança, os passos dele se assemelhavam aos meus, e ao ver as costas de sua parceira, após tirar o xale, a tatuagem de um cravo entrelaçado em uma rosa, eu tive certeza, éramos nós. Eu e minha esposa em uma época de nossa vida em que a trilha sonora e o passo de dança eram únicos. Se houve um sinônimo para a felicidade, ele se deu por nossos passos de dança; se houve significado, ele se deu por essa trilha sonora. Era uma época que os apaixonados não tinham vergonha de demonstrar o seu amor.
   A mão forçou mais ainda a minha cabeça e a segurou em um ponto fixo.
   Uma bela senhora de cabelos argentados, rosto envelhecido, contudo jovial por trazer sorrisos nos olhos, encaminhou-se em minha direção de braços abertos. Confortado naqueles braços, não senti mais o peso das mãos da loucura e nem a sua voz. Senti os lábios úmidos da bela senhora no meu rosto e ao olhá-la, eu percebi ser a minha mãe. Abracei-a e nossas lágrimas se encontraram sem a salmoura das mágoas, pois nossos encontros se dão por doçura, até nas lágrimas.
   “Você voltou, meu filho! Estava com saudades”. Ela me disse como se me embalasse no colo.
   Olhei para o céu silente. Ele me sorriu de volta. Não precisei mais gritar, estava sendo ouvido e ouvindo:
   “Você voltou, meu filho! Graças”. Ele me disse.

7 comentários:

  1. São as nossas lembranças nos sacudindo e não permitindo que nos percamos pelos labirintos.

    Abraços.

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  2. A vida nos cobra muitas respostas ao mesmo tempo. O tempo todo nos parecemos com um instrumento multiuso: trabalho e seus desdobramentos, família e suas necessidades, relações sociais e diversidade, e tantas e tantas mais. Haja fôlego e resistência! Por conta de tanta ocupação, nossa madura consciência passa a clamar pelas distâncias ocorridas. E por conta ainda de valores tão consistentes, de verdades tão cristalinas, de índole inquestionável e de amor pactuado, por vezes imaginamos vozes (talvez a maturidade da consciência clamando) apressando-se em julgar nossos atos, em cobrar e nos fazer recobrar a trajetória escolhida.

    Creio não se tratar de cegueira, de insensatez ou de desarranjo mental. É tudo uma questão, nem sempre fácil, de retomar os abraços, o ritmo, a proximidade, o aconchego da pertença familial!

    Um texto inspirador! Permite muito além do que pude enxergar. Muito mais!

    Um grande abraço, Eder!

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  3. Comovente!
    É tão fácil a gente se perder nessa vida louca e corrida que levamos que as vezes é preciso uma boa chacoalhada.
    beijos

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  4. Éder acabei de ler e fiquei aqui pensando. Como muitas vezes não conseguimos olhar além, ou o enterno. Olhamos apenas para nós mesmos, sem percebermos o quanto temos a nossa volta. O quanto precisamos ser mais atentos.
    Um beijinho

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  5. Mano! Que presente chegar aqui numa segunda feira e ler um texto tão profundo, sincero. Senti o âmago torcer à medida em que a mão torcia a cabeça do personagem, mostrando a ele tudo o que ele se recusava a ver (cegueira seletiva...). Como nos falta essa mão em alguns momentos da vida... Quanto desperdício poderia ter sido evitado... Um grande beijo da mana, Deia.

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  6. Olá!
    Viemos convidar você para participar da nossa nova Postagem Coletiva.
    Dessa vez, a nossa proposta é para que você dedique uma canção a quem você ama.
    Use a criatividade e faça uma postagem da forma e do jeito que quiser.
    Contamos com a sua presença!
    Um abraço de toda a Equipe do Espaço Aberto

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  7. Adoro suas postagens, sua forma envolvente de expressar os fatos e sentimentos. Um beijo

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