Quando o encontro com a morte parecia inevitável, eu senti uma mão sobre o meu ombro puxando-me para cima, interrompendo a minha queda. Percebi o rio, agora a pouco manso, revolto, debatendo-se na parede do cais antes de eu virar a cabeça e olhar aquele rosto belo de tez clara e cabelos cacheados da cor do ouro, brilhante como o sol. Encantei-me, seu corpo era todo poesia, sua voz aromática e veludada dizia tudo de sua alma, pura música. Visualizei asas em seu ombro, não dei importância, afinal, devido ao encantamento, achei que estava delirando. Quando dei por mim, meus sentimentos eram de amor para aquele encanto de mulher. Li nos seus olhos que ela sentia o mesmo. Levei os meus lábios ao encontro dos seus, ela os deteve, suavemente, com os dedos e me pediu:
"Prometa que nunca mais desejará a morte, seu desejo, sua vontade sempre será a vida e que nunca você quebrará essa promessa"
"Há pouco tempo atrás pedi a Deus a boa morte e que ela viesse pelas mãos de um anjo, e Ele me mandou a vida, você. Prometo nunca mais desejar a mor... Corrijo-me, prometo desejar somente a vida e a partir de hoje, mesmo não sabendo o seu nome, eu a chamarei de Vida, pois a vida veio-me pelas suas mãos". Disse-lhe com os olhos marejados e a voz cortada por soluços.
Beijamos-nos e por um instante via as asas sumirem. O que o amor não faz na mente de uma pessoa
FIM
Ele tirou um cigarro da carteira, acendeu-o com uma alegria incontida, tragou-o segurando ao máximo a fumaça deleitando-se em um prazer indizível. Percebeu a sua esposa descendo as escadas, pegou-a pela mão e lhe disse:
- Pronto, terminei. Vida, desça aqui e vem dar uma olhada na história que acabo de escrever. Como você é minha primeira leitora e crítica, dê a sua opinião. - Ao abandonar o cigarro no isqueiro, ele a abraçou por trás beijando o seu pescoço, sem atrapalhar a leitura.
Ao terminar de ler, desfazendo de seu abraço, Vida estava trêmula e lívida. De soslaio, ela olhou as portas e janelas para certificar que estavam trancadas, sabendo que mesmo que estivessem, seria inútil, pois nada a deteria. Estupefata, ela se jogou no sofá em prantos.
- Diz alguma coisa. Você está me assustando com essa reação. Não é para tanto, é apenas mais uma história, e por mais que você diga que escrevo bem, creio que você está exagerando.
- Delete isso, agora. - Ela já sabia que mesmo que ele deletasse, as profundezas do Limbo tinham pressentido a história e logo abriria as portas do inferno para a captura.
- Não posso, sou um escritor. Pode não parecer, mas o que está escrito aí não me pertence mais, precisa ser lido. Repito, é apenas mais uma história.
- Não, não é apenas mais uma história. Meu Deus, como isso foi acontecer. - Desesperada, ela aponta para o monitor do computador. - Isso era para estar morto em teu inconsciente, nunca deveria ter aflorado. Aconteceu conosco de acordo com o que está escrito. Você teve um bloqueio induzido por mim, e daquele dia até agora, você não teve um fio de lembrança sobre o acontecido. Não entendo como isso veio à tona. Não era para vir, vou te perder para ela, será uma luta inenarrável te recuperar novamente. - Perturbada, ela levou as duas mãos a nunca e a enterra entre os joelhos, inerte, não sabia como agir.
Boquiaberto, ele estava incrédulo, porém, orgulhoso por a história ter levado ela aquela reação. Leu de novo para certificar-se que era tão realista assim. Retirou seus olhos do texto ao ouvir a voz dela pedindo atenção.
- Amor, tem mais uma coisa. As asas não eram imaginação sua. Eu era uma anjo.
- Como assim?
- Lembra que eu sempre lhe pedia para não desejar a morte?
- Sim, Vida, lembro.
- Então, naquele dia na igreja ao pedir a boa morte, Deus lhe deu uma nova chance. Era para eu lhe tirar dos braços da Morte. E assim eu fiz. - Demonstrando cansaço na voz, ela passava a ideia de remorso.
- Bull shit! - Disse num inglês aprendido ao assistir filme estadunidense. - Você sabe que eu não acredito nisso.
- Ouça-me - Gritou. - Não temos mais tempo, sinto que as portas do inferno foram abertas. Então, quando eu te salvei, apaixonei-me por você e tive que escolher entre o céu e a terra, entre continuar nos braços do meu Pai ou nos teus. Por isso você viu as asas sumindo, eu te escolhi. Tornei-me um anjo caído, e o teu desejo pela vida é que me fazia humana. Se voltasse a desejar a morte eu voltaria a ser um anjo. Percebe minha voz, isso está acontecendo, daqui alguns instantes só me comunicarei pela força do pensamento.
- Mas como você mesmo disse, a história estava represada no meu inconsciente, é apenas fruto do meu pensamento e não um desejo consciente.
- Só o ato de pensar já é um desejo, o fato de ter escrito já expressa a sua vontade, e quando você leu e permitiu-me que eu lesse, materializou o seu desejo. Você abriu o canal que te liga à Morte, nenhuma força terrena pode fechá-lo. Será feito a sua vontade, não tem como escapar, a Morte também já o deseja. Percebo-a de mortalha aberta, sorriso satânico, saindo do Limbo, sequiosa.
A casa começou a estremecer, o céu repentinamente escureceu, portas e janelas abriram e fecharam pela força do vento, e o chão tremeu abrindo fendas em forma de xis. O medo apossou dele, desesperado, implorou aos céus que lhe salvasse.
- Amor, não se desespera, tenha fé em Deus. Olhe, minhas asas estão crescendo! Estou me transformando em anjo. Logo estarei nos braços do nosso Pai. Abra a sua mente que lhe falarei por pensamento. - O seu entusiasmo por ter voltado a ser celestial o desesperava.
- Me salva! - Ele disse a ela desesperançado.
"Não posso, já fiz isso uma vez". - Ela havia perdido a condição humana de se comunicar, a voz; e se comunicava pela condição divina, o pensamento.
- Isso é desumano.
"Não, se tiver fé, verá que é divino".
- Você vem me falar de fé logo agora que eu estou preste a morrer. Daqui a pouco serei nada. Como ter fé em uma situação dessas. - Ele não conseguia mais articular as palavras, estava desesperado.
"Ouça-me com atenção. Não lute contra a Morte, aceita-a, deseja-a como ela o deseja e tenha fé em Deus que após a sua morte nos encontraremos no reino do céu e seremos felizes para sempre, nos encontraremos de novo para amar. O amor vivido na terra, assim no céu será. Amo-te. Tenha fé, logo te verei".
Ele a viu pela última vez, as portas do céu se abriram, somente para ela.
Enfim o inferno se fez sobre e sob ele. Sentindo-se dentro do furacão, ele não teve força para lutar. As lavas satânicas brotavam sob os seus pés. Tudo queimava, o calor era insuportável. Ele fechou os olhos para não ver o rosto da Morte, símile a sua primeira namorada.
Quando estamos prestes a morrer, tendo fé ou não, nos apegamos a Deus a espera da salvação. O cheiro da Morte pairava no ar, ele a sentia.
O abraço mortal foi sentido por ele quando a Morte cravou as suas garras em seu ombro. O sangue escorrendo pelas suas costas, ao pingar no chão, se confundiu com as lavas satânicas, como se fossem feitas da mesma essência, e são quando a semeadura se dá no pecado.
Ele sentiu os pensamentos do seu anjo furar a barreira infernal pedindo-lhe que beijasse e desejasse a Morte. Após o beijo, a Morte lhe cravou os caninos pontiagudos, lhe arrancado um naco de carne do pescoço. Os dois, atrelados, giravam no ar em um frenesi carnal. A Morte, satisfeita, se desvencilhou dele, com a força do olhar o sustivera no ar, abriu a sua mortalha e fez surgir, por entre as pernas, um tridente com lâminas de aço, cravejou-o nas partes íntimas dele, triturando-as. Ainda com o tridente cravejado, puxou-o para cima de si, esticou o seu longo rabo secular com ponta forjada no caldeirão do demo e deu o golpe fatal cravando-o nas costas dele. Uma lágrima, como se fosse a última gota líquida no seu corpo, caiu o chão.
Satisfeita, as gargalhadas mortíferas ecoaram por todo o Limbo assustando aqueles que ali se encontravam, pois eles reconheceram o riso vitorioso da Morte. O riso também foi escutado no céu, juntamente com uma voz exaurida, tão desejada pela Vida, pedindo ajuda.
Ele, sentindo a morte se aproximando, a vida sendo exaurida, arrependido, orou:
"Pai, sei que não sou merecedor do seu perdão, os erros cometidos foram muitos, porém, Pai, peço-lhe humildemente que a minha estadia no Limbo não seja tão sofredora como está sendo a minha passagem da vida terrena para a celestial, se assim for a Sua vontade. Pai, se me fosse possível, eu me prostraria de joelhos aos seus pés, mas não posso por estar preso nas garras da Morte. Contudo, pai, lhe agradeço por me permitir sentir o seu amor. Pai, não há dor em mim.
E assim a morte lhe acometeu, a vida lhe foi tirada. Tombou a cabeça para o lado e uma última lágrima caiu de seu olho, como se fosse a derradeira gota líquida em seu corpo.
Pobre Morte, por ter apenas o sentimento da morte, não sabe que tão certo quanto a sua chegada é a eternização da vida. E mais ainda, não sabe que o Pai nunca deixa de assistir um filho quando o arrependimento é sincero, seja o seu estado físico ou anímico.
Quando a última lágrima, gota de arrependimento, caiu no chão, esfriou as lavas satânicas, dando-lhe uma tonalidade rosa bebê. Alguns segundos depois, movida pelo amor contida na lágrima, a cor ganhou tonalidade branco celestial. Aproveitando que o ambiente estava iluminado, Vida o retirou das garras da Morte. Ao abrir os olhos, eles demonstravam uma alegria colorida, e o sorriso era uma jazida de diamantes, cujo valor em si era incalculado. Percebendo que ela estava sem as asas, intrigado, perguntou:
- Como você perdeu as asas?
- Tive que fazer uma nova escolha. Definitiva.
- Isso quer dizer o que?
- Que não sou mais um anjo caído, mas humana.
- Então nos foi dado uma nova oportunidade para reescrevermos a nossa história?
- Sim, e essa história não tem fim. Você acha que está preparado para um novo começo?
Ele respondeu deixando os seus lábios, demoradamente, sobre os dela. Abraçados, partiram iluminados.
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