Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

domingo, 29 de novembro de 2009

De pirataria a cópia, o que é feio fica belo, macho vira fêmea

       “Pois cada um de nós quando criança tem dentro da alma seu sino de ouro que depois, por nossa culpa e miséria e pecado e corrupção, vai virando ferro e chumbo, vai virando pedra e terra, e lama e podridão” – Rubem Braga.

     Ouvindo vozes, que alguns dizem que é do outro mundo, e outros dizem que é caminho para a loucura, resolvi ir numa seção espírita para tirar as dúvidas antes que algum louco queira me colocar camisa de força. Chegando lá recebi um mau espírito, um político brasileiro morto recentemente, e quando desincorporou me senti mais pobre, pois todo o meu salário que estava no meu bolso sumiu. O desgraçado quando entrou em mim, deve ter entrado pelo bolso. Ô classe ruim, nem mortos deixam de praticar política. Refeito do susto, ouvi de novo as vozes, era de Onairam Mesrede. Disse que do outro lado ele leu alguns comentários sobre seus contos e queria que eu publicasse os outros, afinal ele também queria fazer parte do seleto grupo das cem mil leituras, mas faz questão de ser lido por pessoas vivas. Deitando a língua nos dentes, ele me falou que este grupo dos cem mil só tem este número porque é lido pelos mortos, pois quem é vivo corre longe destes textos, afinal, dificilmente se ver qualidade neste grupo. Vou parar por aqui, pois com certeza dirão inferno dele, e como ele está no céu, não sou eu que advogarei ao seu favor. Vou logo a história antes que meus dedos começam a coçar e digito mais coisas que o Onairam disse do seleto grupo que se acha acima do mal e do bem.
     Para ser famoso ou nascemos abastados, ou usamos meios escusos para alcançar a glória, pois neste país pouco se valoriza quem realmente tem valor. A valorização pela qualidade está tão fora de uso que o falso é vendido normalmente, e quem o compra, compra como falso apregoando que o verdadeiro é muito caro. Assim é com o combustível, medicamento, vestuário, cd, dvd e afins. Se for este valor que temos,  qual valor daremos ao ser humano, pois a beleza está na superfície enquanto a miséria viceja na profundidade.
     Cemmil Ainázia da Silva era tão feia que Quasímodo perto dela era um príncipe. Tudo nela era tão desproporcional que tanto de frente, costas ou de lado era a mesma coisa. Desafeiçoada, ela não tinha amigos, não conseguia trabalho, enfim era desprezada por todos. Por isso seu irmão, Luís Ainázia da Silva a sustentava com o dinheiro ganho com sua aposentadoria por invalidez. Metalúrgico, perdera um dedo na prensa, de propósito, para manter o sustento da sua irmã. Na época disseram que perdera metade do cérebro, se é lenda não sabemos. Enquanto Cemmil tinha a fealdade por fora, na superfície, ela tinha uma alma boa, toda sua beleza estava na profundidade. Mas como é pela aparência que julgamos uma pessoa, ela vivia sozinha, feliz a sua maneira, apesar da falta que uma companhia lhe fazia. Com toda beleza que Luís tinha, ele tinha a pior das fealdades, o desvio de caráter, a falta de ética, e uma cegueira exagerada, a de só enxergar defeitos nos outros.
     Cemmil percebeu que para ser vista tinha  que mudar por fora, pois por mais perfeita que fosse por dentro, era o  seu rosto, bunda e peito que diria quem ela era, e por os ter defeituosos, pouco dizia de si. Mesmo tendo nascido com a bunda virada para o lado escuro da lua, ela jogou em todo tipo de jogo de azar, pois sabia que com dinheiro se conseguia poder para transformar-se, fazer uma cópia melhor de si. 
     Cemmil sabia que o dinheiro que leva ao poder pode apagar a estrela vermelha da esperança; e o operário da nova era que iria fazer do verde mais verde, do azul mais azul, do branco mais branco, do amarelo mais amarelo, tão amarelo que reluziria mais que o ouro, só conseguiu dar mais cor ao amarelo, mas a cor do ouro só ele viu. Foram as outras cores, a bandeira e se não abrirmos os olhos vai o país também. Cemmil assim percebeu que com dinheiro e poder tudo pode, até estragar o quê era belo.
     A sorte sorriu para Cemmil e ela ganhou no jogo do bicho. Dinheiro em mãos ela se repaginou, fez mecânica, elétrica, funilaria e pintura. Colocou dois air-bags, um porta mala que cabia bugalhos, cará e alhos. Agora ela tinha conteúdo. Eu que sou fiel a princípios, não aceito traições, por isso também não traio. Sentindo-me atraído pela cópia da Cemmil,  e com um pensamento em mente de que mulher para mim tem que ser natural, pois tudo que é artificial o gosto  fica na superfície, segurei-me aos meus princípios. Como para ser mulher é necessário ter um borozão e dois peitões, Cemmil se enquadrando no perfil, foi para Televisão e lá fez sucesso, apesar de não saber se expressar, mas com os atributos corporais ela se expressava na linguagem que a maioria dos telespectadores entendia.
     E quem achava que a história terminaria aqui, se enganou. Luís Ainázia da Silva vendo toda a transformação que sua irmã sofreu, resolveu também se repaginar. Queria realizar seu sonho, pois quando metalúrgico ele perdera o dedo errado. Seu sonho era ser mulher. Mas para tanto não bastava poder, era necessário ter dinheiro o suficiente para realizar a transformação; como Luís, ainda, não tinha os dois, permaneceu com o órgão indesejado, mas transformando o que dava para ser transformado, então, digamos, que ele virou uma quase mulher e passou a ser chamado de Luís Ainázia Lulu da Silva.
     Por mais que se dobra o sino, por mais que a forja seja modificada para dar-lhe formato de violão, o badalo sempre estará lá para nos dizer que por mais que se pareça com um violão, sino sempre será. Como existem os que adoram o sino só pelo seu toque, existem também os que adoram pelo seu badalo; portanto Luis tinha uma tropa  que o adorava pelo seu badalo, chamada de mensaleiros, porque todo mês vinha sentir o sino. O Zé Genon hino tocou badalando no sino; o outro Zé torceu tanto o badalo que hoje se pergunta porque o sino não dobra por ele; o Marcos Vale rio tanto com o badalo na mão que a felicidade fez-lhe cair os cabelos de tanto ficar ouriçado de prazer. Vou citar somente estes três para exemplificar a felicidade que Luís Ainázia Lulu da Silva proporcionou a si mesmo e aos seus amigos.
     Dizem que toda história tem uma moral, se esta aqui tiver é a de que quem é o que é quando se tem dinheiro e poder é porque quer, pois com poder e dinheiro refaz o que foi feito e repara os defeitos.
     Luís, enfim, aposentou e com sua família e da sua irmã foi gozar férias na Amazônia e lá foram mortos por índios Demo Kratas, da tribo Kaykoku Nupudê Nudoy. Os índios Demo Kratas tinha ojeriza por pretos, pobres, putas, pederastas e petistas, e nossos heróis tinham uma destas características, ou todas. A má sorte fi-los encontrar com estes índios que não tinha contato com a civilização desde 2002, e cuja característica é domesticar tucanos, tornando-as aves assassinas. Com o descobrimento da tribo, o governo resolveu exterminar os índios Demo Kratas e os tucanos domesticados para o bem do país. Após transladar os corpos, fora construído um mausoléu em Brasília para a família de Luís Ainázia Lulu da Silva, cujo epitáfio era esse: “Aqui jaz Luís Ainázia Lulu da Silva que perdeu a vida colaborando para o extermínio dos índios Demo Kratas e suas aves tucanas assassinas”.  

28/10/07

* o autor alerta que para maior compreensão do texto atentar para a data de sua criação.

sábado, 14 de novembro de 2009

A morte manda recado

“O casamento é como enfiar a mão num saco de serpentes na esperança de apanhar uma enguia – Leonardo da Vinci”




O hábito de guardar meus brinquedos quebrados eu tenho comigo desde criança, para desespero do meu pai, e deleite da minha mãe, pois para um tudo que não tivesse utilidade deveria tomar o rumo do lixo, para a outra tudo que reavivasse a memória deveria ser guardado. Crescido não perdi o hábito, casado professei a fé ao costume como o padre ao sermão. No primeiro dia dos pais comemorado com minha esposa; ela, como quem dizendo que logo queria ser mãe e eu pai, presenteou-me com um cesto de vime, isso prova que não é somente o homem que presenteia as suas respectivas esposas com utensílios domésticos, as mesmas assim também o fazem. Com o cesto ela me disse que eu poderia guardar meus “trecos”; minha mãe, tendendo para seu lado poético, chamou-o de “guardador de utensílios para reavivar as saudades”; meu pai, mais realista que o rei, chamou-o de “guardador de alimentos para baratas e ratos”; eu o nomeei de “cesto de Moises”, pois cada objeto ali depositado era como um filho perdido. Necessitando matar as saudades fui ao cesto revolvê-lo, e lá encontrei um conto de um amigo já morto, intitulado “a morte manda recado”. Seu autor Onairam Mesrede somente escrevia contos insólitos, e este não seria diferente. Disse-me ele que o conto era verídico, nunca o tive como tal, pois o contista que conta um conto aumenta o cento. Publico tal qual o original, cabe a cada um que ler concluir se o mesmo é apócrifo ou não. E assim ele começa:

O amor nutrido por Tarcísio e Glória é o que os poetas chamariam de o verdadeiro amor, pois a fonte que cada um bebia para manter em pé a chama deste mesmo amor eram eles próprios, mas com um olhar crítico, quem assim olhasse para os dois, perceberia que o quê mantinha o casamento era o dinheiro; Glória era a própria vaidade em pessoa, e enquanto Tarcísio tivesse dinheiro para manter sua vaidade e luxúria ela o amaria uma eternidade, e para Tarcísio enquanto a Glória mantivesse o viço da juventude ele a amaria uma vida e uma morte. E a vida seguia assim como num conto de fada até o dia do nascimento da primeira filha, diga-se de passagem, não desejada por Glória.

Como um operário analfabeto pode chegar à presidência de um país qualquer, como para roubar não precisa de todos os dedos, pode-se roubar com quatro ou nove; o destino, com todos os seus dedos, roubou o que mantinha aquele casamento em pé: o sustento de Tarcísio, jogando-o na sarjeta. A pobreza o atingiu com tanta força, que as compras que Glória fazia na Oscar Freire, nos shoppings e lojas de luxo, passaram a ser feitas em lojas de 1,99; lojas essas que os sem haveres e teres freqüentavam para comprar bugigangas para dar um sentido a sua vida, produtos estes que nenhuma utilidade tinha, pois duravam dias; Glória passou a freqüentar estas lojas, não para comprar bugigangas, mas sim produtos alimentícios de valor inferior, e qualidade também. O príncipe virou sapo, e ela, de heroína de conto de fada, passou a ser bruxa. Houvesse amor maior pelos confins da terra, não haveria o suficiente que adentrasse os corações de nossos dois heróis, pois os dois nutriam um ódio mútuo.

A filha já havia crescido, e por desapego que a mãe a tinha, não desgrudava do pai, aonde quer que ele fosse ela o acompanhava, até quando ele saía para catar papelão e latinha de alumínio nas ruas.

Muitos, por causa de seus percalços, acusavam Deus por suas desgraças, como se Ele fosse culpado pelas bonança ou infortúnios; outros O tinha como escritor escrevendo suas vidas no livro do destino, como se não fossem capazes de construírem sua própria história; Tarcísio não, ele diferia de todos os mortais, homem desfeito de fé, culpava-se pelos seus próprios erros, e, além disso, existia Glória que não lhe deixava esquecer, bastava ela ouvir sua respiração para lhe acusar a falta do dinheiro.

Quem pensa que a morte não manda mensageiro é porque nunca teve alguém da família morto, ou não percebeu os sinais que ela deixa antes do dia fatídico; e para livrar dela é necessário ser muito astuto ou ter demasiada sorte, e tanto um como o outro, o Tarcísio não tinha.

Estava ele na sala brincando com sua filha, e como sempre ocorre nos finais de semana, de hora em hora um vendedor bate a sua porta, e mal o dia amanhecia um já estava batendo. Glória para não perder o hábito, ao ouvir as palmas do vendedor, desferiu seu vitupério ao Tarcísio: “Imprestável tira a bunda do sofá e atenda a porta”. Impropério dito lá foi Tarcísio à porta acompanhada de sua filha.

Todo vendedor tinha de ter uma boa lábia, e com este não seria diferente, ainda mais por ser seu produto insólito, ele vendia jazidos. Lábia gasta com Tarcísio não surtiu efeito, e dizendo que todos morrem de uma hora para outra, quem sabe alguém da sua família não poderia morrer de repente. Foi o suficiente para Tarcísio, virando-se para a filha pedi-la para avisar a Glória para soltar o capeta. Dirigindo-se para o vendedor pediu-lhe que fosse, pois o capeta estava descendo e poderia atacá-lo. Dizendo isso, Tarcísio tentou fechar a porta, o vendedor colocou seu pé na frente e o impediu. Com um sorriso maroto no canto da boca, Tarcísio escancarou a porta saindo da frente do vendedor. Quando este viu seu campo de visão ampliado percebeu o capeta rosnando e latindo pronto para atacá-lo. O vendedor dobrou os joelhos, e na pressa de correr tropeçou nas próprias pernas. Após aprumar, o vendedor viu o capeta no seu encalço. Tarcísio fechou a porta ao ver os dois sumirem no horizonte. As horas passavam e o capeta não voltava, Tarcísio pensou, ou ele estava deliciando um naco da bunda do vendedor, ou então havia encontrado uma cadela e estava enroscado nela em alguma esquina. Neste ínterim todo tipo de vendedor havia batido na sua porta; a noite vinha chegando e Tarcísio ao ouvir barulho na sua porta foi em sua direção, feliz, dizendo assim: “O capeta voltou!” Ledo engano, era o pior tipo de vendedor, o vendedor de fé que vinha trazer a palavra de Deus, pois era preferível conhecê-Lo em vida do que após a morte. Assim ele se apresentava. Tarcísio assim replicou: “Meu senhor, o capeta está voltando e antes que ele se volta contra você, aconselhou ir, ele detesta estranhos, e por mais fé que você tenha, contra o meu capeta nem Deus te salva”. Como o convidado que estava chegando não era do feitio do nobre vendedor, ele saiu blasfemando contra Tarcísio.

Noutro dia ao chegar em casa, Tarcísio encontrou sua filha em prantos, perguntando-a o motivo, ela respondeu que ela havia morrido. Sem esperar sua filha completar a frase, Tarcísio deu urros de felicidade. A única morte que lhe traria regozijo era a morte de Glória, e assim ele permaneceu, mas como toda boa notícia dura pouco, e as más permanecem por uma eternidade, foi-se à boa e a má eternizou. Tal qual o esfomeado quando termina o seu prato, e ainda não satisfeito, e não tendo mais nada para comer, maldiz a pouca fortuna, assim ficou Tarcísio quando sua filha completou a frase: “A Bianca morreu pai e a Glória está tirando ela da gaiola para jogar fora”.

Antes o que era um rosto alegre por ter sabido da morte de quem mais ele desejava, agora era um rosto entregue a mais profunda tristeza por saber que a vida afeiçoou àquela alma por uma eternidade e meia. Abismado ficou Tarcísio ao ouvir sua filha o culpar pela morte do seu pássaro, pois para ela o fato dele não ter comprado o jazido foi o motivo, afinal o vendedor havia dito que todos um dia morre, e basta não comprarmos para ele nos jogar uma praga. A filha de Tarcísio quando deita a língua entre os dentes não para mais, e ela continuou dizendo que o próximo a morrer seria ele por ser o mais velho, pois ela sempre ouviu dizer que os mais velhos são os primeiros a ir. Com a solução na ponta da língua ela falou: “Basta o senhor comprar muitos bichos. Eles com certeza irão primeiro que você”.

Tarcísio não perdeu tempo, pois sabia que praga de vendedor era pior que praga de sogra, e ele sabia disso pelos piores vendedores, os vendedores de fé. Estes quando eram dispensados lhes diziam de uma forma jocosa: “Fique com Deus”. Se para estar com Deus era necessário professar a mesma fé que eles, ou não acreditar em Deus nos faziam pior que eles. Aos diabos todos os vendedores, disse Tarcísio, e comprou tantos animais que fez da tua casa a própria arca de Noé.

Com tantas inglórias já vividas, Glória passou a viver a pior delas; não bastasse o latido do capeta, o ronco de Tarcísio, ela agora teria que viver com os cantos dos pássaros e galos, os cacarejos das galinhas, os miados dos gatos e tantos outros animais que, se ditos, tornaria a minha história incrédula. Ficamos apenas nestes. Glória ficou noites e noites sem conseguir dormir devido a balburdia dos animais, e quem não pega no sono, ou vira poeta, ou torna-se filósofo, ou, como no caso da Glória, abre a mente para ser oficina do diabo. Com firma reconhecida o diabo abriu a sua; e Glória, como empregada do dito cujo, começou a dar expediente envenenando os gatos. A cada animal morto, Tarcísio comprava o dobro, e Glória matava o triplo. Tarcísio desconfiou que a morte mandava recado, e temendo pela vida de sua filha, a mandou para casa da sua irmã. Como o diabo, quando executa um serviço por mão de outro, o faz bem feito, aniquilou toda criação que Tarcísio tinha em casa. Glória tentou envenenar o capeta, mas como o cão é primo do diabo, este só comia na mão de seu dono.

Quem acha que a morte desiste fácil é porque tem pouco conhecimento sobre a sua antagônica, a vida. Há dias em que o quê mais queremos é um pouco de sol para esquentar a alma fria, e iluminar a nossa vida envolta em trevas. Glória teve este dia quando encontrou o capeta com o focinho todo ensangüentado repleto de formigas a lhe comer as carnes. Ela teve o tanto de sol que merecia, mas para Tarcísio, mais do que o escurecimento, aquilo, era um aviso de que a morte já havia colocado uma placa de fim em sua estrada. Decorrido uma semana, semana esta envolta em tristezas, Tarcísio foi encontrado sem vida, afogado. Não há necessidade de dizer que se houvesse dois sóis, seriam eles todos de Glória. Mas o que é dado por uma mão, não compensa o que foi tirado pela outra. Glória se via só e sem sustento, pois com Tarcísio foi-se o seu ganha pão. Desesperada, ela vendeu tudo que tinha, o suficiente para lhe suster por um ano. Ela passou a água e pão, um dia comendo a carne da costela e no outro roendo o osso da mesma.

O estômago vazio pode levar tanto ao desespero, como o desespero pode levar a uma solução. Tendo somente a roupa do corpo e o próprio corpo para a venda, sendo o último mais valioso do que o primeiro, Glória não se fez de rogada e tornou-se comerciante.

Na cidade de Glória todos têm o hábito de chorar os seus mortos, alguns chegam ao exagero de mijar no túmulo, pois reza a lenda que cada um chora por onde sente saudade. Sabia-se que algumas mulheres tinham o desejo de defecar sobre o túmulo, não fazia isso por medo das más línguas, mas quando chegava em casa tudo que era poro dava sinal do quê sentia saudade.

Por falta de amor ao Tarcísio, Glória não chorava, mas bem que ela queria chorar por onde mais sentia saudade, e tanto a fome de comer como a fome de ser amada fez com que, ao atender o vendedor de pão, ela lhe pagasse como o quê tinha de mais valor. Dentro da casa de Glória, e com todos os pães comidos, o vendedor, vendo que não havia nenhum objeto naquela casa, preparava-se para arcar com os prejuízos, quando Glória lhe indicou onde estava o quê ela mais tinha de valor, o quarto. Entre uis, ais e gemidos de prazer, o vendedor, por ter achado um objeto tão valioso como aquele, sendo que em casa sua mulher tinha um tão parecido, mas de menor valor, passou a trazer pão ao amanhecer, entardecer e anoitecer; pois o valor pago pelo pão valorizava o suor derramado sobre a massa. Desta forma Glória abriu vendas, e todos os vendedores que em sua porta batiam, até os vendedores de fé, satisfeitos ficavam com o valor pago. O que eu vou contar aqui poderia até ser descartado, mas não farei, pois o que me dá mais prazer é desmascarar estes vendedores de fé. Eles quando iam professar sua fé em casa de Glória, Glória sem posses, ofertava o dízimo a sua maneira, mostravam-lhes a valiosa; e eles, os vendedores de fé, acrescentavam o nome de Jesus aos uis, ais e gemidos de prazer. Glória, de tanto comerciar, fez fortuna que daria para viver pelo resto da vida com as pernas para cima, tomando uma fresca. De tanto usar a valiosa acabou sendo desvalorizada por passar por várias mãos, mas antes de encerrar o comércio, ela atendeu o último vendedor, o vendedor de jazido.

Ele vinha manquitolando, e pelo passo dado percebia-se que lhe faltava metade da bunda, com toda certeza o finado capeta pôs a boca na metade que lhe faltava, e pelo tamanho da outra metade que tinha, o capeta deve ter levado uma semana para fazer a digestão. Atendido por Glória, o vendedor tentou convencê-la da compra do jazido, mas ela não via utilidade para o mesmo, pois ainda tinha muito que viver. Então o vendedor lhe disse que nascer e morrer eram as únicas certezas que tínhamos, e desditoso era aquele que, em vida, não deixava morada para o corpo quando partisse dessa para melhor, pois a alma já tinha a sua, o céu ou o inferno, e isso dependia do que fizesse entre o nascer e o morrer.

Glória se deu por convencida, e com o título do jazido em mãos chamou o vendedor para lhe mostrar o quê mais tinha de valor; e assim, o vendedor, vendo a valiosa se sentiu mais do que bem pago. Vendo que a valiosa já não tinha tanto poder de compra, Glória se sentiu no céu, pois havia tempo que nada comprava, portanto o que ela tinha de mais valor, valor perdia; mas, ali, perdida entre lençóis, ela dava gemidos de prazer, não pelo objeto comprado, mas por saber que a valiosa ao ouro se assemelhava. O vendedor, (e eu também, Onairam Mesrede) agora entendia porque ir as compras e a cama, para as mulheres, tinham o mesmo significado, pois se um valorizava a alma o outro o corpo, e vice-versa.

Quando Glória estava pagando ao vendedor o título comprado, os dois tiveram este diálogo que finaliza esta verídica história:

- Percebe-se que lhe falta uma banda de sua bunda, afinal o que lhe aconteceu? – Perguntou Glória quando desvelava a valiosa.

- Foi o capeta que a abocanhou.

- Que eu saiba, o capeta nos tira a alma, nunca pensei que ele quisesse o corpo, e justo um pedaço da bunda; mas como dizem por ai, todo malvado é um gay enrustido, vai lá entender o que o capeta quer.

- Do capeta entendo muito, pois o prato da vingança é ele que nos servem, mas o capeta aqui dito era o teu cão.

- Vê-se que você é um homem de denodo, eu tentei envenená-lo, mas como o capeta só comia pela mão de seu dono, eu não consegui. – Disse Glória expondo a valiosa.

- Coragem à parte, com o afã de vingança, força e fé, fi-lo morto com um chute no focinho.

O vendedor, com as ferramentas em mãos, pôs a valiosa na cama e foi provando do seu valor, e ao mesmo tempo os dois continuaram o diálogo.

- Fiquei satisfeito quando matei o teu marido, afogando-o no rio.

- Vê-se que fizeste um favor, apesar de que matar aquele traste era coisa fácil. Mesmo assim acho que você tem o diabo no corpo. – Disse Glória entre gemidos de prazer.

- Quando se é mordido pelo capeta, a ele nos assemelhamos, e aqui em cima de você me sinto o próprio, e como tal completo minha vingança, dando uso o que você acabou de comprar.

E assim, Glória entre gritos de prazer, começou a dar gritos de dor por ter seu pescoço enforcado pelo vendedor, e, pelo feitio que ela coseu por toda a sua vida, o inferno já a esperava.

Manquitolando, o vendedor de jazido foi bater em outras portas, tal qual o mensageiro da morte.



13/07/2007