Meu Bispo, havia muita coisa no ar, muitas
suspeitas. A sacola que ele depositou na porta do quarto, por que não levou
para a cozinha que é o normal? Ou então, se era para ser colocado no quarto,
por que não abriu a porta e colocou? Além disso, aquele silêncio dele, a demora
de falar comigo como se quisesse saber alguma coisa apenas me analisando
através da minha fisionomia, uma leitura corporal que me denunciasse. E a
esposa, apesar da compenetração ao rezar o Rosário, estava prestando atenção em
nós dois, e sua fisionomia era de alguém que fez um delito que se arrependeu.
Qual foi a pergunta que ele me fez, meu
Bispo? Essa, qual o motivo que me levou a casa dele? Não, demorei em responder, não
havia me preparado para aquela pergunta. Instintivamente levei o vinho à boca,
e ele, esperando a resposta, me encarou com um sorriso como quem dissesse, eu
lhe peguei. Assim que retirei a taça da boca, prontamente, lhe disse que estava
recolhendo donativo na comunidade para a futura reforma da igreja. Ele soube
logo que eu estava mentindo. Como eu percebi isso? Assim que ele me abraçou e
deu três tapas no meu ombro e encaminhado para uma escrivaninha, eu reparei um
jornal dentro da sacola próxima a porta do quarto cuja manchete era que o homem
encontrado na igreja sofreu abusos sexuais pelos pais segundo o padre. Ele
retirou uma vela de sete dias da gaveta e a acendeu para a Santa Maria
Madalena, olhou por alguns minutos a chama e me disse que era interessante o
desgaste da vela para se ter a luz, ela ia se derretendo, se desfazendo em
sacrifico da iluminação. Assim como nos era necessário o sacrifício da carne, o
seu apodrecimento, o seu desgaste para a iluminação da alma. Finalizou dizendo
que é morrendo que se alcança a vida eterna. Trêmulo, tentei me desvencilhar do
seu abraço, porém, ele não deixou.
Meu Bispo, olhei naqueles olhos azuis
buscando alguma emoção e percebi que até a doçura de antes havia se perdido.
Ele retirou algumas notas da gaveta e me deu como donativo. Com um sorriso
irônico no rosto ele me perguntou se aquela quantia dava para comprar o indulto
para salvação da sua alma. Sim, meu Bispo, o perdão só se consegue com um
sincero pedido e o arrependimento das mazelas praticadas, as indulgências para
o pecado cometido por ele, por mais severas que fossem, não o livraria do julgamento
divino, afinal, ele tirou uma vida. Contudo, meu Bispo, eu não poderia
dizer-lhe isso, estava aquém da sua compreensão.
O que eu lhe disse? Não se compra o perdão,
ele é invendável. É o seu valor que nos torna humano e para consegui-lo é
necessário o arrependimento, mas mesmo assim, o perdão não nos livra da justiça
dos homens. Senti suas mãos percorrerem as minhas costas nervosamente e parar
no meu pescoço. Seus dedos, quentes e incontroláveis, tamborilaram antes de
apertarem as veias do meu pescoço. Disse-me que sem oxigênio não haveria as
chamas na vela, portanto, não haveria iluminação. Então conclui que o
sacrifício do corpo era necessário para se alcançar a iluminação e
consequentemente o perdão. Seus dedos, vagarosamente, afrouxaram e eu voltei a
respirar normalmente, pois o ar já estava me faltando. Ele se encaminhou
abraçado a mim até o quarto, abriu a porta e me empurrou, abaixou pegando o
pacote que ele havia trazido e entrou fechando a porta. A escuridão no quarto
não me permitiu ver nada, a não ser o branco dos seus olhos. O peso de suas
duas mãos nas minhas costas me fez cair sobre a cama. Senti os seus joelhos
comprimirem os meus órgãos internos contra o colchão. Outra mão, mais macia,
amarrava os meus braços e pernas na cabeceira da cama, quando uma labareda
bruxuleou no ar, eu percebi a silhueta de uma mulher, era a sua esposa. Aos
poucos ela foi acendendo as velas dispostas em volta da cama, a luminosidade
foi dando forma e cores aos objetos no quarto. Eu vi várias fotografias em
porta-retratos pregados na parede, e neles, a imagem de seu filho,
cronologicamente, desde a infância até a idade adulta, sofrendo sevícias. Meu
terror aumentou quando ele colocou um tripé com uma câmara no meio do quarto,
pegou uma vela de setes dias na sacola, uma vasilha cujo rótulo estava escrito
vaselina e um objeto roliço que eu não conseguia identificar. O silêncio
imperou e só foi quebrado pelos meus gritos de dor. Se havia algum cheiro ali
antes eu não saberia dizer, no entanto, agora, do quarto evolava o cheiro de
vela queimada. Minha pele estava vermelha devido aos respingos da parafina. A
sensibilidade à dor tinha atingido o seu pico, estava a ponto de desmaiar, o
tamborilamento que ele fazia com os dedos sobre a minha coluna vertebral não me
provocava nenhuma sensação. No exato momento que ele abriu o vasilhame e untou
as mãos com a vaselina e esfregou no objeto roliço, eu tive a sensação que as
velas se apagaram uma a uma. A escuridão tomou os meus olhos e foi quebrada por
flashes da câmara fotográfica. O objeto percorreu a minha coluna vertebral
amiúde, de cima para baixo, freneticamente. O medo, tomando conta de mim, me
fez perder todos os meus sentidos. A escuridão agora era total. Quando acordei,
a dor possuía o meu corpo, o ambiente estava escuro. Percebi que não estava
mais no quarto. Engatinhei - a dor era tão intensa que eu não conseguia ficar
de pé, quanto mais andar - apalpando o chão para ver se reconhecia o lugar.
Estava em um quadrado, sem nenhuma mobília. Era o porão.
Não, meu Bispo, não sabia quando era dia ou
noite. Somente saía do porão para o quarto e deste para o porão novamente.
Aleatoriamente, eles me davam uma terrina de sopa. Para me confundir, eles
colocavam uma quantidade de sopa muito pequena e me dava em intervalos curtos
entrecortado por uma quantidade maior em intervalos longos. Só comecei a
calcular os dias quando reparei na escrivaninha que a vela de sete dias
colocada para Santa Maria Madalena estava pela metade, então deduzi que tinha
passado três dias desde que entrei naquela casa. Meu querido bispo, somente
depois de vilipendiar o meu corpo e me causar dores físicas e psicológicas, eu
vim saber que carregava uma maldade tão perversa quanto a que estava sendo
praticada contra mim. O mal, meu Bispo, mora em nós e quando ele encontra outro
que o pratica contra si, ele se autodefende praticando-o em igual ou maior
quantidade. Nesse mesmo dia que eu reparei na vela, vi a faca que ele usava
para fazer o seu cigarro com fumo de rolo esquecida em cima da mesinha de
centro. O mal em mim começo a confabular a minha autodefesa. Meu Bispo, não
queira saber o quanto orei a Deus para que tirasse aqueles pensamentos de mim e
me mostrasse o caminho para sair dali sem deixar aflorar a minha maldade.
Meu corpo fraquejava devido os abusos
sexuais e a desnutrição, minha fé estava abalada, a minha vela interna estava
se apagando, eu perdia a minha luz e nem mais a Deus eu me apegava. Pequei, meu
Bispo, e isso nunca deixarei de me cobrar, essa culpa de ter perdido a fé, a
esperança. De tanto sofrer abusos, a maldade foi o meu espelho, e quando olhei
dentro de mim, não me reconheci.
Continua.
Capítulo I
Capítulo II
Capitulo III
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Continua.
Capítulo I
Capítulo II
Capitulo III
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Difícil situação essa em que a sobrevivência pede providencias.
ResponderExcluirbeijos
Nossa, que situação triste! Impossível não fraquejar diante da vida. Um abraço!
ResponderExcluirA gente se desconhece na dor seja física ou psicológica. E a fé se abala, muitas vezes, e os questionamentos ocorrem.
ResponderExcluirbeijo
que coisa terrivel! nao ha fé que resista!!
ResponderExcluirOi Eder,
ResponderExcluirEsses sentimentos todos que você trás à tona em tuas palavras...sadismo, revolta, medo, coragem, fé e costura-os de forma que não respiro, ir até a última linha é o que me interessa.
Admiro tua escrita, eu não sei escrever nada, nunca nem tentei fazer um conto..rs
Beijo meu
Cada capítulo traz uma sensação mais forte...
ResponderExcluirAbraços
o contato com a maldade transforma qualquer um.
ResponderExcluirÉ um fio tênue que separa os dois lados.
Belíssimo desenrolar e construção, permeada pelos sentimentos mas obscuros.
Um beijo Eder!
Éder, meu amigo, sensacional suas narrações: quanta literariedade. Riquíssimo o texto: adorei!
ResponderExcluirAbração,
Rodrigo Davel
Oi Eder,
ResponderExcluirEu sempre perco o primeiro capitulo e se consigo pegar o primeiro perco o segundo, mas queria lhe dizer que gostei muito do q li,do suspense narrado,dos detalhes da história forte que escreveu... A chama da vela acesa e se derretendo como se doando no altar de Santa Madalena.Gostei muito.
Aproveitando...Eu conheci uma pessoa q fez um curso para colaborar em novelas...Eu não sei se vc sabe, mas todos os grandes autores de novelas, tem seus colaboradores, pois o Autor escreve a trama principal da novela e os outros( os co-autores se encarregam cada um de um personagem)claro q supervisionados pelo Autor principal.
Pense nisso.
Beijinhos
Maria
...Sobre meus cachorros nem de longe eles chegam perto do Marley(do livro).Os meus são una santinhos!rsrsrs
ResponderExcluirEder,
ResponderExcluirObrigada pelas felicitações de niver!!=)
Paciência com o ser macho, eu já perdi faz tempo,ainda mais aqui em Minas em que eles andam muito indecisos,rsrs.
Abraços
ola amei teu blog e seu texto muito bom estou te seguindo espero que me visite atenciosamente boa semana bjs
ResponderExcluirhttp://anitasereno.blospot.com
Tanto o bem quanto o mal nos atinge e nos move nessa vida. Reabastecendo ou minando a nossa fé!
ResponderExcluirUm abraço carinhoso para você!
Ao te ler, fico me imaginando nessa situação...a gente não sabe as reações que poderíamos ter.
ResponderExcluirHoje li o terceiro e quarto capítulo pra me atualizar, juro que fico arrepiada com tudo, parece real.
Aguardando a continuação.
Você tem o dom da escrita, da ansiedade que nos provoca querendo saber sempre mais.
Adoro e admiro!
Sei escrever assim não.
Parabéns meu amigo.
Beijos com carinho.
Oi!
ResponderExcluirTe vi na Bia, gostei da sua forma direta de comentar... No momento sem tempo p/ ler (costeleta de porco no fogo p/ janta rsrsrsr) , volto depois...