Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Confissão

CAPÍTULO FINAL


   Vi que a perna que empurrava a terrina de sopa para dentro do porão era de mulher. Agachado, eu a agarrei com as duas mãos e a puxei de uma vez só. Quando o corpo dela foi ao chão, o seu grito se tornou audível por toda a casa. Eu tinha que agir rápido. A luz que vinha da parte de cima da casa fez brilhar um objeto que estava próximo da terrina, peguei-o e cravei no pescoço dela. O cabo da colher estraçalhou o seu pescoço espargindo o seu sangue sobre o meu rosto. Não, meu Bispo, eu não tive tempo de me arrepender e nem pedir perdão pelo ato praticado, pois uma mão me puxava para cima, para fora do porão, arrastando o meu corpo pela escada. Quando cheguei à sala, eu estava diante do Demônio, os seus olhos azuis tinham perdido a doçura. Se ao me vilipendiar, ele tinha enfiado dentro de mim o inferno com seus dedos, agora ele ia me mostrar que o inferno também estava do lado de fora. Ele agarrou o meu corpo fraco e me arremessou contra a escrivaninha. A vela de sete dias havia se consumido, não havia luz, estava no sétimo dia. Após a criação do mundo, Deus havia descansado no sétimo dia, meu Bispo. Naquela casa, naquele momento, se Ele tentasse interferir, não adiantaria, pois diante daquele homem, eu vi o Diabo. Eu estava diante de um espelho.
   Assim que ele pôs o pé sobre o meu pescoço, a falta de ar fez com que eu estrebuchasse, e com pés e mãos batendo no chão, eu pedi clemência. Ele sorriu de satisfação pelo pedido, pegou-me pelos pés girando o corpo vária vezes e o soltou satisfeito. O meu corpo foi de encontro à mesinha de centro, quebrando-a. Senti um filete de sangue escorrer no chão, ao passar a mão por debaixo de mim, eu senti o fio da faca cortar um dos meus dedos. Gelei quando ele se encaminhou até a escrivaninha, abriu uma das gavetas, retirou o fumo de rolo juntamente com a caixa com papel de seda para enrolar cigarro e me encarou. Pensei, ele notou a falta da faca. Felizmente não, meu Bispo, ele não notou. Sim, ele continuou me encarando, colocou o fumo na boca e o retirou amiúde. A baba escura escorria pelo canto de sua boca. Sorrindo maliciosamente, ele mediu um palmo do rolo e o cortou com os dentes. Sim, meu Bispo, as suas atitudes eram doentias. Sempre rindo, ele abraçou o rolo cortado com a palma da mão e fez movimentos contínuos de cima para baixo e vice-versa, depois o dilacerou com os dentes em pedaços pequenos. Pegou a seda da caixa, encostou-a na borda da escrivaninha e com os dedos empurrou os pedaços do fumo sobre o papel, enrolou-o, lambeu a ponta de fechamento enrolando-a. Após levar o cigarro à boca, ele abaixou e pegou o guarda-chuva que estava encostado no canto da parede, próximo da porta da saída, batendo o cabo na escrivaninha. Percebi que a sua intenção era demonstrar a resistência e dureza do cabo pelo ruído provocado. Ele não precisava de tanto, bastou eu ver a cor e o entalhe da madeira para saber que era de lei, dura e eficaz se a intenção era ferir, afinal era um legítimo jacarandá.
   Quando ele se encaminhou em minha direção batendo o cabo do guarda-chuva em suas coxas, eu vi, meu Bispo, o terror passando naqueles olhos azuis, como em um filme, audível, pois os seus lábios gesticulavam freneticamente, o inferno você conhecerá agora, e serei eu que emitirei o ticket da passagem. O som gutural de sua voz, a imagem dele caminhando em minha direção, e apenas o cabo do seu guarda-chuva sendo processado pela minha mente fez com que ela ativasse o meu sistema de autodefesa, ou seja, acordou a maldade existente em mim. Eu, lestamente, com a energia que me restava, ergui o meu corpo um pouquinho do chão e enfiei a minha mão alcançando o cabo da faca, porém, não tive força o suficiente para suster o corpo, quando puxei a faca, o fio gélido da lâmina rasgou a minha carne. Ao encostá-la próximo de meu corpo, o sangue quente do meu corpo havia mudado a temperatura da lâmina.
   Meu Bispo, ele afundou os seus joelhos nas minhas coxas. Não, meu Bispo, eu não senti dor, em mim havia somente um sentimento, o de vingança. Ele tentou por várias vezes acender o cigarro, contudo, o fumo ainda estava úmido. Quando conseguiu acender, tragou o cigarro com prazer imensurável, não tão diferente quanto às sevícias praticadas em mim. Ao esbaforir, eu vi o meu medo intricado por entre a fumaça, como se me dissesse, não se iguala a ele. Quando a maldade lhe ataca, ou você se entrega, ou luta, não somente para se salvar, mas também para que essa maldade não se eterniza. Ele não me deu tempo para filosofar, meu Bispo.
   Ao vê-lo erguer o guarda-chuva, eu desferi a faca no seu tórax. Quantas vezes? Não sei, meu Bispo. Só parei quando ouvi os ossos de sua caixa torácica se quebrando com o impacto das últimas facadas. Meu peito estava inundado de sangue, no entanto, a macula permaneceria na alma, não obstante ela já estava maculada somente com a intenção da morte. Não, meu Bispo, não acabou, o pior veio depois quando eu me vi nos olhos dele.
   Após enterrar a última facada no seu peito, o seu corpo tombou para trás, ele, suspenso no fio derradeiro que ainda o ligava à vida, ergueu o guarda-chuva e se jogou para frente. Desviei de sua investida e o cabo do guarda-chuva passou rente ao meu pescoço, ao tocar o chão trincou o piso. É agora, meu Bispo, que meu inferno começou, pois o que fiz está me martirizando, por mais que eu fuja, a culpa me persegue. Tem certeza que quer ouvir, meu Bispo?
   Não há dor pior do que a que dói na alma, a do corpo o tempo cura, a da alma entregamos nas mãos de Deus, mas não nos livramos de senti-la.
   Eu o empurrei para trás apoiando o seu corpo nas minhas pernas erguidas, agarrei o guarda-chuva com as duas mãos e o inclinei um pouco em sua direção, então, com as pernas, empurrei o seu corpo para frente. Ouvi o ruído da sua cabeça batendo na ponta do guarda-chuva, quando o seu rosto ficou próximo ao meu, eu senti certo prazer com a sua morte. Porém, a culpa foi mais rápido do que a minha satisfação. Fiquei extático, em estado de choque por um longo tempo. Somente saí deste estado quando o peso do seu corpo empurrou a sua cabeça para mais próximo de mim, a ponto dos nossos narizes se tocarem. Os seus olhos azuis me fitaram dizendo que ele havia morrido, porém, continuava vivo dentro de mim. Vi-me em um espelho, e aqueles olhos azuis, sem vida, me refletiam. Mesmo se não houver luz... Não há, meu Bispo. De alguma forma não há, com as minhas atitudes, as minhas escolhas, eu trilhei o caminho das trevas. Como ia dizendo, mesmo se não houver luz para refletir a minha imagem ao olhar em um espelho, dora adiante, não é a mim que vejo, é ele, o Demônio. Seus olhos azuis permanecerão em minha mente dizendo que ele vivi em mim.
   Eu sei, meu Bispo, a justiça dos homens me absolveu alegando que eu agi em legítima defesa. Sim, o Senhor me concedeu o perdão, porém, sou eu que não me perdoo. A maldade é fruto da ignorância. E eu sabia, meu Bispo, eu sabia. Mesmo que eu pague minha pena temporal, ainda me sentirei devedor.
   Jesus lutou contra a maldade usando somente uma ferramenta, o amor. Aguentou o peso da maldade em sua carne, e mesmo assim, ofereceu amor. Foi crucificado, morreu e ressuscitou, mas nunca deixou de amar. Permanece aqui entre nós como luz para que possamos, através de sua luz, religar à Deus. Não, meu Bispo, o Senhor não está me entendendo. Eu não estou me comparando a Jesus, o meu sofrimento não tem a mesma grandeza do Seu sofrimento. Apenas quero lhe dizer que ao me olhar no espelho eu via essa luz me refletir, eu me via como realmente era, eu via a bondade em mim. Hoje, apesar de senti-la bruxuleando em algum ponto em mim, eu só consigo enxergar trevas. A maldade é uma capa invisível que não deixa essa luz se intensificar e refletir quem eu era. O mal viceja em mim, meu Bispo.
   Sim, desnudarei do hábito. Não consigo mais olhar a minha comunidade e ensiná-la a perseverança se não perseverei, em lhe ensinar a bondade se eu não fui bom, a amar como Cristo amou, a receber a sua luz se eu não fui capaz de amar o outro, se eu deixar a luz de Cristo se apagar. Sim, meu Bispo, quando a maldade abate sobre nós, enfraquecemos as nossas defesas. Mas ai que esta o meu dilema, há a necessidade de ser tão mal, ou mais, a quem nos pratica a maldade? Esse mesmo silêncio que lhe perturba, meu Bispo, a mim também perturba, pois não temos a resposta certa. 
   Eu tirarei o hábito que veste o meu corpo, mas ele continuará me vestindo, a minha alma. Seguirei com o meu ministério. Como? Serei uma formiga a espalhar o alimento para esse grande formigueiro que é o mundo. Qual alimento? O amor, meu Bispo. Espalharei a luz de Cristo para que a ignorância não a ofusque.
   Obrigado, meu Bispo, que a paz de Cristo permaneça em nós e o brilho da luz divina diminua a ignorância nos homens. Sim, um dia nos encontraremos.
   Fui certo da minha missão. Olhei para trás e vi tristeza e lágrimas nos olhos do Bispo, não saberia dizer se era pela minha partida ou por outro motivo qualquer. Percebi que ele reteve o seu pé no ar, aproximei para me certificar o que estava acontecendo. Entendi a tristeza e as lágrimas ao ver sob o seu pé uma fileira de formigas passando com o alimento em direção ao formigueiro, enquanto outras voltavam em busca de mais alimento. Ele repôs o pé no chão, longe das formigas, rodou com os dedos o anel, sorriu para mim e gritou, Padre, temos que ser formiga, era isso que Cristo queria nos dizer. Sorrindo, respondi-lhe que sim. Amar uns aos outros, era isso que as formigas faziam todos os dias, todos os dias.
   Meu Bispo havia entendido, o nascedouro da maldade está nos pequenos atos diários, por isso ele não pisou nas formigas.
   Voltei para mim e percebi as chamas da minha vela interna mais intensa. Segui, tal a formiga.

Capítulo I
Capítulo II
Capítulo III
Capítulo IV

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21 comentários:

  1. e porque nao escreve um THRILLER??? voce è bem capaz!!!!
    abraçOsssssssssssss

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  2. oi amigo se te disse que li seu poste estaria te mentindo
    vim lhe desejar um bom fim de semana e votos de um óptimo Carnaval beijos

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  3. Eder, não tenho dúvidas de que tem criatividade sobrando para a escrita, nunca li nada parecido. Um abraço!

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  4. Texto espirituoso e forte no seu propósito. Gosto do estilo. Voltarei.Abraço de leitor.:-BYJOTAN.

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  5. fiquei sem fôlego! a violência me agride, mas infelizmente o mal ainda perdura entre nós.
    achei lindo o final, parabéns!
    Beijos

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  6. Intenso, forte.
    Bom carnaval amigo Eder.
    Beijinhos
    Lucia

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  7. Você conseguiu concluir, porém teria condições e fatos para continuar a história.

    Será que o Bispo levantou o pé para não matar as formigas, ou para não ser atacado por elas? Tenho cá minha dúvidas.

    E o texto me mostra que tem situações limites que é morrer ou matar? E se não morrer, viverá, e viverá condenado a culpa, ao remorso, as dores da alma.

    abraço.

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  8. Eder, primeiro desculpe-me pelo desaparecimento, mas já fui conferi o início da história. Intensa. rs
    Obrigada pela presença no blog é sempre muito bom.

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  9. OLá Eder...ese detalhe de não pisdar nas formigas é engraçado, pois as vezes quanso sou obrigado a matar algum inseto fico pensando nisso...rs...menos barata que tenho um certo prazer em matar...rs
    Muito bom amigo...o céu e o inferno é aqui mesmo...nós é que decidimos o caminho a seguir

    Um abraço na alma...parabéns pela forma e pelo jeito como conduz a estória

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  10. Um conto e tanto amigo, intenso, forte e cheio de conflitos humanos. Viver é complicado.
    beijos

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  11. Nossa, gostei do desfecho final, mas ao ler o comentário de Paula Barros, fiquei também curiosa em saber o que o Bispo fez...

    Mas tirando a minha curiosidade, gostei muito.
    Beijos de um bom feriado.

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  12. De repente, os anjos e demônios que nos habitam, agem sem pedir licença, à revelia dos nossos desejos...é complicado. Há que se passar por certas situações pra saber qual seria a nossa reação. Julgar, jamais. Forte e intenso, gostei. Beijos

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  13. Olá Eder!

    Como bem citasse,Jesus morreu sem condenar seus agressores... Assim o fez, para mostrar a nós, como devíamos nos conduzir por estes caminhos da vida. Amar e perdoar, deveria ser constante em nós.

    Eu costumo dizer que,Nosso Deus e o nosso espirito e nossa conciência é o inferno, que o construimos por nossas atitudes.

    Meus parabéns por nos oferecer esta interessante narrativa.

    Abraços.

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  14. O pior que a maldade pode fazer a uma pessoa é faze-la encontrar em si mesmo tudo o que mais repudia e mais te fere. O padre matou o homem, mas será que conseguirá matar a maldade? A pureza retornará?. Tomara.

    Lindo desfecho, brilhante toda a sequência.

    Beijos, Eder!

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  15. Bonito conto
    podemos tirar várias conclusões...
    beijinhos

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  16. Parabéns! Texto que nos contagia e só dá vontade de ler até o fim.Bjs

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  17. Relí alguns trechos dos capítulos anteriores como costumo fazer reprendendo as leituras de um bom livro.Hoje a violência é escancarada em todos os sentidos,mas enquanto houver uma voz que não cale,que não tema denunciá-la é sinal que essa pode ser combatida,que deve ser combatida.E sempre,sempre otimismo e esperança prendendo como exemplo o trecho final da sua narração.
    Abraços e bom fim de semana!
    A Chiara agradece pelos parabéns também!

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  18. Oi Eder, achei seu blog lindo, já estou seguindo e sempre que puder passarei por aqui, trabalho com artesanato em eva, venha conhecer meu cantinho ficarei muito feliz.

    Não deixe de curtir minha página no Facebook se puder tá.....bjs

    valartesdigitais.blogspot.com

    Val

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  19. ola boa noite hoje pude ler o teu maravilhoso e forte texto nunca gostei de violência sou contra a violência seja em que género for sejamos humanos ou animais somos todos ser vivos que duma forma ou outra sofremos na pele esse mal tratos,
    tenho pena dessas pessoas agressoras que nao sabem dar o devido valor o que é sofrer
    palavras muito fortes no teu brilhante texto beijos obrigada pela tua visita e um bom fim de semana

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  20. Realmente este foi um conto muito forte e intrigante.
    Parabéns Eder.
    Abraços

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  21. Eder, acompanhei esse conto numa grande expectativa e você não decepcionou em nada. Foi muito detalhado, com muitos pontos de vista. Palavras ricas. Imagens chocantes. Violências e absurdos reais. Dose de esperança.
    Voce é muito competente com as letras.
    Adorei, o que posso dizer é parabéns e aplausos.

    Beijo meu

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