Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Despedida

“isso passa/ amanhã é um outro dia não é/ eu nem sei por que me sinto assim/ vem de repente, um anjo triste perto de mim – Renato Russo”.

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O domingo estava amanhecendo, aparentemente parecia que seria igual a todos os domingos, o sol romperia no horizonte apagando do céu o tom acinzentado e frio das madrugadas; alguns pássaros cantariam no quintal dançando por entre as folhas das árvores; os beija-flores balouçariam no jardim os girassóis com seus bicos para sentirem as gotas de orvalho sobre as suas penas; zéfiros poderiam trazer, ao fim da tarde, o aroma característico da estação, úmido e adocicado, para dar ao começo da noite um ar lúgubre e chuvoso.
Com o regador em mãos eu fui ao quintal molhar as mudas de palmeiras para ter a certeza de que elas não eram artificiais, pois todos as achavam que eram. Como havia chovido em demasia na tarde de sábado até o começo da madrugada de domingo, poderia ser que a água em excesso as mofaria, mas eu corri o risco, afinal é preferível pecar pelo excesso do que pelo comedimento.
Após fazer o café, o senti forte e melado; com certeza a minha mão estava pesada devido às frustrações dos dias úteis semanais. Resolvi fazer as massas e o acompanhamento do desjejum mais tarde quando as frustrações fossem deslembradas. Envolto nas lembranças eu liguei a televisão e assisti o Globo Rural. Quando o programa estava terminando veio a mente que eu tinha de ficar de tocaia no jardim para surpreender o entregador de jornais devido ele jogá-los sobre os girassóis, molhando-os. Não que eu me importasse com os jornais, mas sim com os estragos que ele fazia na plantação de girassóis. Porém para que ter aborrecimentos se hoje é domingo. Deixei para resolver a questão em um outro dia.
Com os ovos estrelados na manteiga juntamente com o bacon frito em tiras sobre as gemas ainda moles, o domingo, finalmente, estava com o aroma de domingo, e isso me alegrou. Assobiando “Por enquanto” da Legião Urbana, eu assei a tapioca e depois, sem deixar de assobiar, joguei os ovos com o bacon sobre o beiju; enfim o domingo tinha o aroma, som e o sabor de domingo, mas lhe faltava algo para se tornar completo. Não faltava mais, o programa de televisão “Sr. Brasil” com Rolando Boldrin estava começando. Para não incorrer em um erro, faltava tatear as folhas dos jornais para todos os sentidos dar sentido ao domingo. Neste instante tudo parava e ganhava um movimento de sublime perfeição, todas as frustrações com suas dores, todas as perdas com seus remorsos, todas as derrotas com suas depressões eram diluídas até perderem seus significados. Havia, neste instante, uma adjetivação da vida que verbalizá-la somente seria possível de uma única maneira, sentindo-a. Havia, neste instante, apenas eu e a poesia.
Por tudo que ocorrera na parte da manhã, o domingo se encaminhava para ser um dia perfeito. Mas nós não sabemos que força move o mundo, ou seja, o homem e que influência ela exerce em cada homem para modificar o imutável. Ao término da minha tapioca ouço um barulho familiar vindo do jardim incomodar o meu ouvido, “clapt, clapt, plaft”. Quando abro a porta os jornais ainda deslizavam sobre o gramado, parando aos meus pés. Três pés de girassóis se encontram espatifados sobre o gramado. Audível, o som do ronco do motor da moto misturava ao som de risadas. Desgraçado. Era o entregador de jornais. Desanimado, o lixo era o endereço certo dos jornais. Dentro de cinco minutos estaria ligando para o serviço de atendimento ao cliente do jornal para cancelar as assinaturas. Nós não sabemos que força move o homem para ele despoetizar a vida. O meu domingo perdeu o que tinha de poético.
Por tudo que ocorrera na parte da manhã, o domingo se encaminhava para ser um daqueles dias que cabia chamá-lo de perfeito. Mas nós não sabemos que força maior move o mundo, ou, melhor dizendo, o homem e que influência ela exerce neste homem a ponto dele modificar o que parecia imutável.
Ao chegar a tarde o calor aumentava, algumas nuvens escuras tentava tirar o brilho do sol.
Ao término da ligação para o Sac do jornal ouço um barulho muito familiar esmiuçar os sons que me chegam aos ouvidos, “clap, clap, calp”. Quando abro a porta uma figura estranha batendo palmas se avolumava. Não percebi seus trajes e nem sua fisionomia, tão pouco o seu estado físico. Assim que fixei meu olhar nos seus olhos senti uma tristeza inexaurível em sua alma, desesperada, em busca de uma saída, mas algo a retinha, como se a alma precisasse dela para se expressar. O convidei para entrar oferecendo um café; ele recusou o café, mas entrou sem muita pressa, olhando minuciosamente todas as flores do jardim; era como se ele procurasse algum espécime que o significasse. Ao sentar foi que eu percebi que ele trazia consigo um calhamaço de papel escrito que ele colocou sobre a mesinha de centro. Conversamos detalhadamente sobre tudo, mas não consegui retirar dele o motivo da sua tristeza. Quando dei por mim metade da tarde se esmaecia, a outra metade se enamorava pela noite. Ele também percebeu isso.
A mutabilidade diária traz em si as marcas do envelhecimento, mas as piores marcas são as frustrações impregnadas na alma por este mundo sem significado provando a nulidade do ser. Dizendo isso com amargura, eu percebi que ele estava tentando justificar o seu niilismo, quiçá a sua nulidade como ser. Era um homem perdido em si e de si. A inquietude do seu olhar foi posta no céu como tentando encontrar respostas ou explicações, não para o mundo, mas para si mesmo. Não obstante quem é o ser, com todo o seu poder, senão o próprio mundo.
Ao levantar ele me abraçou, incontido, apressou-se, foi até o jardim e retirou uma rosa, um cravo e uma flor de liz; despediu-se de mim esboçando alegria. Olhei novamente em seus olhos e não vi mais nenhum traço de tristeza. Fosse o que fosse a resposta e a explicação que o céu lhe deu, ele a recebeu como uma certeza. Significou-se.
Nós não sabemos que força maior move o homem para ele se despoetizar. Se antes o meu domingo perdeu o que tinha de poético, agora ele ganhou em dobro o que lhe cabia de poesia. Reviro desesperadamente o calhamaço de papel escrito em busca do nome do autor daqueles poemas e não acho, mas o que é o nome diante da grandeza de uma obra. A última folha, cujo poema se intitulava “o meu último poema”, parecia uma homenagem à família. Causou-me apreensão o que estava escrito no rodapé da folha, “é preciso o poeta morrer para que o homem viva a poesia”. Corri à porta a fim de vê-lo e saber qual o significado daquela frase e o porquê de poesia estar em negrito. Minha voz seria inaudível devido à distância, mas a minha visão conseguiu alcançá-lo. Ele ia talmente vão todos aqueles que desnudam as frustrações do dia-a-dia, na mais completa felicidade, carregando a rosa numa mão, o cravo na outra e a flor de liz no peito, ou, melhor dizendo, no coração. Ainda o vi juntar o cravo e a rosa em uma mão, e em um só grito ele se fez audível para mim.
- POESIA!
Ainda o ouvi dizer adeus. Como me é difícil dizer adeus. A despedida traz em si um gosto amargo e permanente, por vezes dramática, e quase constantemente lacrimosa. Eu já deveria ter acostumado com as despedidas, pois no decorrer da vida o que mais fazemos é despedirmos. O que é o começo da noite senão a despedida do dia que findou; e assim, sucessivamente, sem saber, vamos nos despedindo da vida ao final do dia na esperança que outros nasçam, e quando isso não acontece mais, são os outros que de nós se despede, para sempre.
Olhei novamente para o poeta, e ele, sem nenhuma pressa, como se o mundo tivesse parado para ele o admirar, ia feliz, despreocupado, imaculado, sem tristezas ou frustrações na alma, como se todas as dores tivessem sido aprisionadas no calhamaço de papel escrito, esquecido propositadamente em cima da mesinha de centro.
O domingo estava para findar. Como todo domingo, ao findar, trazia intrínseco a amargura e o desespero por saber que o amanhã repetitivo sempre vem acompanhado de frustrações. Antes que a música do programa Fantástico fosse audível anunciando o final do domingo, desliguei a televisão e liguei o som. Há música que nos arrebata e faz sairmos de nós mesmo para nos percebemos diferentes e esperançosos. A Legião Urbana faz isso comigo.
Como é desesperador todo final de domingo quando se sabe que o quê nos espera é o peso da responsabilidade, o descaso com os outros, as mentiras calculadas dos dias úteis semanais. Mil vezes a indiferença sincera do que a falsidade constante. O que nos dá esperança é saber que após seis dias frustrados haverá um domingo, sempiterno. Neste estado entristecedor armei a espreguiçadeira no jardim esperando o sol se despedir do dia, e o céu lúgubre abraçar a lua como amante dando adeus, finalmente, ao domingo.

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“e o que disserem/ agora meu(s) filho(s) espera(m) por mim/ estamos vivendo/ e o que disseram/ os nossos dias serão para sempre – Renato Russo”.

7 comentários:

  1. Crônicas-retratos leio aqui.
    Fotografias textuais em boa dose de revelação.


    Feliz Páscoa, meu caro Éder.
    Tudo de bom para você e tua família.

    Abraço forte.
    Continuemos...

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  2. Boa tarde, meu amado amigo! Eu já contei que os seus textos que prendem a atenção do começo ao fim? Nenhum dia poderia ser igual a qualquer outro qdo um poeta (re)nasce. Esses dias serão para sempre! Parabéns pelo maravilhoso trabalho! :-) Beijos no coração.

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  3. O quotidiano se reinventa na alma em seu texto sensível. Belo!
    Feliz Páscoa poeta a ti e família.
    um grande abraço.

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  4. Concordo com a Célia e a Lilian, e que bela poesia carrega nas mãos. Carinhosamente Di.Ro.

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  5. Olá amigo Eder;

    Primeiro, as minhas desculpas mas tem sido um corre-corre pra acabar-mos exposições que devem abrir agora em Abril e duas em Maio, por este motivo um pouco da minha ausência.

    Segundo, esta maravilhosa Crónica, de um domingo, que até pode ser de um outro dia qualquer.
    "Havia neste instante apenas eu e a poesia",... e para falar assim foi a alma do poeta que se sobrepôs à alma do jornalista.
    "Mas n'os não sabemos que força maior move o mundo..." e aqui é o inverso, quando o jornalista retoma seu lugar.

    Caro amigo Eder, você está a um nivel bem superior na nossa literatura e feliz da cultura que tem um escritor como você.

    Um abraço amigo Eder.
    Osvaldo

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  6. Éder...
    suas palavras me levam sempre a reflexão...por que será?

    Agradeço o carinho de sua visita e palavras deixadas em meu blog.

    Hoje vim apreciar e aproveitar para lhe desejar uma semana maravilhosa!

    Beijos com meu carinho

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