Não sonhei o castelo,
mas nunca imaginei que o príncipe iria virar sapo. Eu tenho um apartamento de
luxo e com cobertura, porém, a felicidade não se encontra onde moro, está
perdida além da Avenida Higienópolis.
Ouço a sua voz serpenteando no ar me chegar ininteligível
trazendo um odor alcoólico e atropelando os versos da canção do Mick Jagger,
"I can't get no satisfaction". Há muito tempo a satisfação se perdeu
de nós, tanto em verso quanto em prosa. Ele a busca entre as pedras de gelo do
seu uísque Old Glenfiddich safra mil e novecentos e cinquenta e cinco, como
agora, dedilhando-as sobre a bebida, jogado na cadeira no hall de entrada,
cutucando o meu tape Tabriz com o seu sapato de bico fino - quando o vejo
calçado nesse sapato, vem-me à cabeça um desses pagodeiros que ao descer do
morro para o asfalto, no primeiro sucesso musical do seu grupo, troca a sua
regata Hering por um smoke, o seu chinelo havaianas pelo maldito sapato de bico
fino preto com detalhes em branco, coloca um chapéu-coco e para completar o look
deixa um cavanhaque símile aos traços de uma criança do ensino infantil em seu
caderno de desenho. Então, para compor a imagem degradante que se tornou, ele
desalinha o cabelo, debruça sobre o encosto da cadeira e com a voz embriagada
me diz em um inglês aprendido ao assistir séries estadunidense, I love you very
much. Em português não me soaria crível, porém, em inglês, ele é patético e risível.
Eu não tenho mais satisfação, apenas tédio. Saio à rua, a Oscar Freire me dá
muito mais que isso, nas vitrines de suas lojas eu encontro retalhos de
felicidade.
Frequentar o chá das cinco não me dá mais
satisfação, sinto-me como uma protagonista de um filme de nouvelle vague,
depois de decorridos quase duas horas, a falta de ação redunda em diálogos
fúteis pretendendo ser filosóficos e cultos. O chá, realmente, só serve para me
redimir da culpa de ser rica, pois, o riso fácil após cada doação para uma ONG
ou instituição de caridade prova isso, o que nos falta nesses encontros são
ações, levantar uma bandeira e causar. Os encontros não diferem do meu
casamento.
Recordar é se sentir como uma criança
serelepe presa em uma cristaleira. Não se liberta, apenas se fere com os cacos.
Nossos sonhos cabiam no fusca amarelo da sua mãe, hoje não cabem no porta luvas
da minha Toyota. Quantas vezes ouvi o Elvis cantar no toca fitas do fusca a
canção Love me tender, ou então me deleitei ouvindo Coltrane tocar Everytime we
say goodbye, enquanto ele, ora ousando subir as suas mãos além das coxas, ora
tentando desabotoar os ilhós da minha blusa, entrementes, eu tentava não me
deixar levar pela canção para impedir o seu ímpeto. Era risível o medo que ele
tinha de estacionar o fusca no estacionamento da universidade, receoso de
sofrer discriminação social. Nunca soube se ele usava esse fato para permanecer
mais tempo próximo de mim, pois ele estacionava o fusca longe do portão de
entrada da universidade. Pelo caminho ele ia cantando Only you, chutando as
tampinhas de refrigerante Crush e espalhando estrelas. Ele fazia do chão o meu céu.
Em qualquer ângulo que o olhasse, agora, a
imagem era disforme, pouco lembrava o príncipe do fusca amarelo. Desfeito na
poltrona da sala de estar, lareira acessa em plena primavera, a fumaça do
fondue evolando amarguras, o sempiterno copo de uísque tentando escapar dos
seus dedos, a sonolência alcoólica não lhe permitindo perceber que Mick Jagger
preenche o ambiente de poesia ao cantar Angie me fez perceber que ele me
tirou os sonhos, o céu e o chão. E assim ele passa pelo tempo sem sentir a
lenha se transformar em carvão e depois cinzas, o fondue esfriar tal pedras de
tristezas, o copo lhe cair da mão, o peso da embriaguês lhe levar ao chão.
Presto atenção na TV que estava também ligada, sintonizada em um canal pago e
vejo Tiger Wood dá mais uma tacada perfeita, a bola foi direto para o buraco. Não
saberia diferir ele dá bola de golfe, os dois tinham o mesmo destino.
Nossas sensações sempre foram dilúvicas,
hoje aguamos em mágoas, cada um em seu cômodo, incomodados com a situação,
porém, para manter as aparências, navegando sobre um oceano de tristeza.
Imagem clique AQUI
Ouça I can't get no satisfacion AQUI
Ouça Love me tender AQUI
Ouça Everytime we say goodbye AQUI
Ouça Only you AQUI
Ouça Angie AQUI
triste e belo texto..saudosismo em cheio...
ResponderExcluirbjos
Eder,abraço querido!
ResponderExcluirFico imaginando aqui quantos casais para manter as aparências não vivem assim desgraçando também a vida de quem estiver perto,por ex. os filhos.E com isso vai dominando na 'high society' a traição,a mentira e tudo a elas colegado.
Seus textos são mesmo um retrato do que vivemos hoje,parabéns e foi bom ouvir 'love me tender'(uma das minhas favoritas de sempre).
Ola Eder!
ResponderExcluirRealmente somente a riqueza não é o suficiente para preencher o coração de uma pessoa, e por causa disso muitos se tornar frios e morrem. Precisa-se de muito mais que isso para se ser feliz completamente.
Gostei do texto, ficou muito bom.
Obrigado pelos comentários no meu blog.
Abç
adraftbox.blogspot.com
Oi, Eder. Tenho pensado muito sobre as questões que expôs em sua crônica. O fato é que a felicidade não está no dinheiro, afinal, coisas simples como amassos em fusca ou um simples chutar de tampinhas podem ficar gravadas para sempre na memória. Por que uma pessoa se perde da outra, em que ponto as mágoas superam o amor e o vínculo, antes tão forte, é rompido? Per guntas sem respostas. Ótimo texto, um abraço!
ResponderExcluirEDER VOCE É FANTÁSTICO !Que texto rico...voltarei com mais tempo para reler com muito carinho.... pois estou saindo de viajem.Vou a Porto Alegre comemorar os 80 anos da minha mãezinha.abraços meu querido amigo.
ResponderExcluirE que a vida nos seja sempre plena, meu bom amigo Eder,belo e reflexivo o texto.
ResponderExcluirE música de qualidade também, parabéns.
forte abraço
c@urosa
Caro amigo
ResponderExcluirFiquei sem palavras
diante de verdades
que nos acompanham...
E quantas vezes
o mergulho no oceano
de tristeza,
passa a fazer parte
da nossa rotina,
transformando vida
em apenas existência...
Que haja sempre perfume
de sonhos em tua vida.
Eder, boa noite!
ResponderExcluirE tantos casais viverão assim, de aparências!
Beijinho,
Ana Martins
Oi Eder,
ResponderExcluirAmei essa analogia "Recordar é se sentir como uma criança serelepe presa em uma cristaleira. Não se liberta, apenas se fere com os cacos." Lindo isso!!
Lendo teu maravilhoso, repleto de informações, rico!
Lembrei de um poema meu (na verdade dois, mas vou postar um..rs), se permite:
Acabou
Dava para ver os cacos
Voarem para todos os cantos,
Deixando feridas marcadas.
Dava para ouvir o barulho
Da mágoa escorrendo,
Entre os cacos pela escada.
Dava para sentir o gosto
Amargo das palavras decretadas,
Envenenando os sentidos.
Dava para tocar o tempo,
Dizendo que havia acabado,
Que o que foi quebrado,
Já não podia ser juntado.
Beijo meu
Oi Mano! triste o casal que não se lembra mais da estrada que trilharam juntos - nos perdemos em bifurcações, é o que sempre digo... Sempre nos provocando a reflexão! Um beijo, Deia.
ResponderExcluirÉ sempre agradável desfrutar de uma boa leitura. Obrigada! Bjs
ResponderExcluirOlá Eder!
ResponderExcluirEm quanto a vida vai passando, vamos tentando driblar os caminhos adversos para uma boa convivência a dois... As boas lembranças dos tempos idos, são guardiães do nosso amanhã.
Abraços.
Oi Eder,
ResponderExcluirbacana, gostei. Viver é isso, escrever e reescrever, ainda que na memória os passos do caminho.
Um abraço!
Oi Eder,
ResponderExcluirquanta coisa você nos faz pensar com este texto, de na da nos vale o dinheiro se a felicidade já tiver nos deixado, o amor sofre a ação do tempo e da rotina se os amantes não se recriarem diariamente, o sonho de amor se transforma e tristeza compartilhada.
A criança serelepe na cristaleira, eu adorei, rsrs você é realmente incrível, criou uma metáfora perfeitinha com esta imagem.
Beijos
Muito legal esse texto, Eder!
ResponderExcluirAdorei os detalhes íntimos.
É incrível como da dor o homem consegue tirar tanta arte.
Um beijo dessa sua fã de carteirinha.
: )
Muito bom o texto, acho que um dos melhores senão o melhor que já li por aqui. parabéns!
ResponderExcluirbeijos