Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

terça-feira, 27 de março de 2012

Uma breve historieta sobre uma vida chique


Não sonhei o castelo, mas nunca imaginei que o príncipe iria virar sapo. Eu tenho um apartamento de luxo e com cobertura, porém, a felicidade não se encontra onde moro, está perdida além da Avenida Higienópolis.
   Ouço a sua voz serpenteando no ar me chegar ininteligível trazendo um odor alcoólico e atropelando os versos da canção do Mick Jagger, "I can't get no satisfaction". Há muito tempo a satisfação se perdeu de nós, tanto em verso quanto em prosa. Ele a busca entre as pedras de gelo do seu uísque Old Glenfiddich safra mil e novecentos e cinquenta e cinco, como agora, dedilhando-as sobre a bebida, jogado na cadeira no hall de entrada, cutucando o meu tape Tabriz com o seu sapato de bico fino - quando o vejo calçado nesse sapato, vem-me à cabeça um desses pagodeiros que ao descer do morro para o asfalto, no primeiro sucesso musical do seu grupo, troca a sua regata Hering por um smoke, o seu chinelo havaianas pelo maldito sapato de bico fino preto com detalhes em branco, coloca um chapéu-coco e para completar o look deixa um cavanhaque símile aos traços de uma criança do ensino infantil em seu caderno de desenho. Então, para compor a imagem degradante que se tornou, ele desalinha o cabelo, debruça sobre o encosto da cadeira e com a voz embriagada me diz em um inglês aprendido ao assistir séries estadunidense, I love you very much. Em português não me soaria crível, porém, em inglês, ele é patético e risível. Eu não tenho mais satisfação, apenas tédio. Saio à rua, a Oscar Freire me dá muito mais que isso, nas vitrines de suas lojas eu encontro retalhos de felicidade.
   Frequentar o chá das cinco não me dá mais satisfação, sinto-me como uma protagonista de um filme de nouvelle vague, depois de decorridos quase duas horas, a falta de ação redunda em diálogos fúteis pretendendo ser filosóficos e cultos. O chá, realmente, só serve para me redimir da culpa de ser rica, pois, o riso fácil após cada doação para uma ONG ou instituição de caridade prova isso, o que nos falta nesses encontros são ações, levantar uma bandeira e causar. Os encontros não diferem do meu casamento.

   Recordar é se sentir como uma criança serelepe presa em uma cristaleira. Não se liberta, apenas se fere com os cacos. Nossos sonhos cabiam no fusca amarelo da sua mãe, hoje não cabem no porta luvas da minha Toyota. Quantas vezes ouvi o Elvis cantar no toca fitas do fusca a canção Love me tender, ou então me deleitei ouvindo Coltrane tocar Everytime we say goodbye, enquanto ele, ora ousando subir as suas mãos além das coxas, ora tentando desabotoar os ilhós da minha blusa, entrementes, eu tentava não me deixar levar pela canção para impedir o seu ímpeto. Era risível o medo que ele tinha de estacionar o fusca no estacionamento da universidade, receoso de sofrer discriminação social. Nunca soube se ele usava esse fato para permanecer mais tempo próximo de mim, pois ele estacionava o fusca longe do portão de entrada da universidade. Pelo caminho ele ia cantando Only you, chutando as tampinhas de refrigerante Crush e espalhando estrelas. Ele fazia do chão o meu céu.

    Em qualquer ângulo que o olhasse, agora, a imagem era disforme, pouco lembrava o príncipe do fusca amarelo. Desfeito na poltrona da sala de estar, lareira acessa em plena primavera, a fumaça do fondue evolando amarguras, o sempiterno copo de uísque tentando escapar dos seus dedos, a sonolência alcoólica não lhe permitindo perceber que Mick Jagger preenche o ambiente de poesia ao cantar Angie me fez perceber que ele me tirou os sonhos, o céu e o chão. E assim ele passa pelo tempo sem sentir a lenha se transformar em carvão e depois cinzas, o fondue esfriar tal pedras de tristezas, o copo lhe cair da mão, o peso da embriaguês lhe levar ao chão. Presto atenção na TV que estava também ligada, sintonizada em um canal pago e vejo Tiger Wood dá mais uma tacada perfeita, a bola foi direto para o buraco. Não saberia diferir ele dá bola de golfe, os dois tinham o mesmo destino.
   Nossas sensações sempre foram dilúvicas, hoje aguamos em mágoas, cada um em seu cômodo, incomodados com a situação, porém, para manter as aparências, navegando sobre um oceano de tristeza.

Imagem clique AQUI

Ouça I can't get no satisfacion AQUI

Ouça Love me tender AQUI

Ouça Everytime we say goodbye AQUI

Ouça Only you AQUI

Ouça Angie AQUI
  

16 comentários:

  1. triste e belo texto..saudosismo em cheio...
    bjos

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  2. Eder,abraço querido!
    Fico imaginando aqui quantos casais para manter as aparências não vivem assim desgraçando também a vida de quem estiver perto,por ex. os filhos.E com isso vai dominando na 'high society' a traição,a mentira e tudo a elas colegado.
    Seus textos são mesmo um retrato do que vivemos hoje,parabéns e foi bom ouvir 'love me tender'(uma das minhas favoritas de sempre).

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  3. Ola Eder!
    Realmente somente a riqueza não é o suficiente para preencher o coração de uma pessoa, e por causa disso muitos se tornar frios e morrem. Precisa-se de muito mais que isso para se ser feliz completamente.
    Gostei do texto, ficou muito bom.
    Obrigado pelos comentários no meu blog.
    Abç

    adraftbox.blogspot.com

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  4. Oi, Eder. Tenho pensado muito sobre as questões que expôs em sua crônica. O fato é que a felicidade não está no dinheiro, afinal, coisas simples como amassos em fusca ou um simples chutar de tampinhas podem ficar gravadas para sempre na memória. Por que uma pessoa se perde da outra, em que ponto as mágoas superam o amor e o vínculo, antes tão forte, é rompido? Per guntas sem respostas. Ótimo texto, um abraço!

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  5. EDER VOCE É FANTÁSTICO !Que texto rico...voltarei com mais tempo para reler com muito carinho.... pois estou saindo de viajem.Vou a Porto Alegre comemorar os 80 anos da minha mãezinha.abraços meu querido amigo.

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  6. E que a vida nos seja sempre plena, meu bom amigo Eder,belo e reflexivo o texto.

    E música de qualidade também, parabéns.


    forte abraço

    c@urosa

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  7. Caro amigo

    Fiquei sem palavras
    diante de verdades
    que nos acompanham...

    E quantas vezes
    o mergulho no oceano
    de tristeza,
    passa a fazer parte
    da nossa rotina,
    transformando vida
    em apenas existência...

    Que haja sempre perfume
    de sonhos em tua vida.

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  8. Eder, boa noite!
    E tantos casais viverão assim, de aparências!

    Beijinho,
    Ana Martins

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  9. Oi Eder,

    Amei essa analogia "Recordar é se sentir como uma criança serelepe presa em uma cristaleira. Não se liberta, apenas se fere com os cacos." Lindo isso!!

    Lendo teu maravilhoso, repleto de informações, rico!
    Lembrei de um poema meu (na verdade dois, mas vou postar um..rs), se permite:

    Acabou

    Dava para ver os cacos
    Voarem para todos os cantos,
    Deixando feridas marcadas.

    Dava para ouvir o barulho
    Da mágoa escorrendo,
    Entre os cacos pela escada.

    Dava para sentir o gosto
    Amargo das palavras decretadas,
    Envenenando os sentidos.

    Dava para tocar o tempo,
    Dizendo que havia acabado,
    Que o que foi quebrado,
    Já não podia ser juntado.

    Beijo meu

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  10. Oi Mano! triste o casal que não se lembra mais da estrada que trilharam juntos - nos perdemos em bifurcações, é o que sempre digo... Sempre nos provocando a reflexão! Um beijo, Deia.

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  11. É sempre agradável desfrutar de uma boa leitura. Obrigada! Bjs

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  12. Olá Eder!

    Em quanto a vida vai passando, vamos tentando driblar os caminhos adversos para uma boa convivência a dois... As boas lembranças dos tempos idos, são guardiães do nosso amanhã.

    Abraços.

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  13. Oi Eder,

    bacana, gostei. Viver é isso, escrever e reescrever, ainda que na memória os passos do caminho.

    Um abraço!

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  14. Oi Eder,

    quanta coisa você nos faz pensar com este texto, de na da nos vale o dinheiro se a felicidade já tiver nos deixado, o amor sofre a ação do tempo e da rotina se os amantes não se recriarem diariamente, o sonho de amor se transforma e tristeza compartilhada.

    A criança serelepe na cristaleira, eu adorei, rsrs você é realmente incrível, criou uma metáfora perfeitinha com esta imagem.

    Beijos

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  15. Muito legal esse texto, Eder!

    Adorei os detalhes íntimos.

    É incrível como da dor o homem consegue tirar tanta arte.

    Um beijo dessa sua fã de carteirinha.
    : )

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  16. Muito bom o texto, acho que um dos melhores senão o melhor que já li por aqui. parabéns!
    beijos

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