Prometi a mim mesmo nunca escrever sobre este fato, mas eu não tenho mais idade para guardar segredos, as folhas da vida estarão sempre sobrepostas para que alguém um dia as leia. Minha mãe guardou um segredo por trinta anos, e só foi descoberto devido à curiosidade do meu irmão. Remexendo o seu baú, ele descobriu uma certidão de casamento, e não era o nome do nosso pai que estava lá. Inquirida, ela rasgou a certidão e nos disse que a partir daquela data aquele assunto estava morto e enterrado. Passados trinta anos nunca mais o assunto veio à tona.
Desde que tomei o entendimento sobre a vida, sempre me lembro sentada no colo do tio Arthur*, e eu não era a única sobrinha que tinham este privilégio. A minha primeira jujuba eu mastiguei no seu colo, a minha primeira boneca foi dada por ele, lembro como se fosse hoje, ele apontando para a rua e me mostrando os primeiros pingos de chuva e o cheiro da terra molhada adentrando o meu nariz. Cresci vendo e sentindo a vida em seu colo.
Estávamos em 1973, outono, 25 de março, um dia normal como era todos os dias em uma cidade interiorana, eu estava com doze anos. Repentinamente, a cidade em peso se dirigiu para a casa do tio Arthur. Ele fora encontrado morto com as partes íntimas extirpadas e a cabeça degolada.
Um dia antes eu havia lhe visitado como sempre faço para lhe pedir a benção. Como não mais sentava em seu colo por ter crescido, eu estranhei quando ele pediu para que eu sentasse, recusei no mesmo instante, no entanto, ele partiu para cima de mim tentando rasgar o meu vestido, então eu lhe disse que era a sua sobrinha e todo o entendimento da vida foi ele que havia me passado e que o considerava como meu segundo pai. Ele caiu em prantos e me pedindo perdão ordenou que eu saísse. Fiquei sentada do outro lado da rua embaixo do pé de manga tentando entender o que se passara, quando eu vi o tio Pedro* entrar na casa do tio Arthur armado de um facão e acompanhado pelo seu cachorro. Não ouvi um grito de socorro, como se o tio Arthur aceitasse a sua morte como ela estava sendo executada. Quando o tio Arthur foi enterrado jogaram uma pá de cal sobre o ocorrido. Éramos uma família com muitos segredos.
Dez anos se passaram e como sempre fazemos nas reuniões familiares, as primas se fecharam em um quarto para dividir segredos. Paola*, em prantos, filha do tio Pedro, contou-nos o que se passara com ela e tio Arthur. Foi então que percebemos que as folhas de nossas vidas tinham a mesma história, com uma única exceção, a de Paola teve uma final diferente. Ela era três anos mais nova do que eu. Silentes, choramos sabendo que as lágrimas não apagariam o que estava escrito.
As feridas são muitas e nunca cicratizarão, porém, o que mais me doeu foi ter assistido a prima Paola murchar como uma flor no outono sem nunca ter tido a oportunidade da primavera.
Escrevo esta crônica tendo o sol na minha janela e a minha rosa amarela perdendo as suas pétalas, estamos em outono e levo sempre comigo a esperança que o sol possa nos iluminar.
*Nomes mudados.
+ em memória de Paola.
Que coisa terrível!
ResponderExcluirBJ.
Oi Samaryna!Seguramente não há família sem histórias mais ou menos dramáticas como esses exemplos que apresentaste.Porém,uma coisa é certa,quando se pode dar abertura a um diálogo ou discussão que seja é sempre melhor que manter o silêncio sepulcral pois este a qualquer momento pode ser rompido e pior, da maneira menos oportuna e ferindo ainda mais.
ResponderExcluirMeu afeto também pra você!
As feridas que atingem a alma são difíceis de serem cicatrizadas.
ResponderExcluirQuando revelamos nossas vivências elas deixam de ser segredos... E passam a pesar menos em nosso íntimo! Isso nós aprendemos com o tempo e sabemos que mesmo assim elas não vão deixar de nos ferir quando forem relembradas.
Um abraço carinhoso
Sim, a vida, a vida se atravessa de vários fatos e acontecimentos, marcas que ficam no tempo, crônicas que não gostaríamos de escrever. Como diria margarite Duras, é o descoonhecido que trazemos conosco: escrever, é isto que se alcança. Isto ou nada.
ResponderExcluirOlá,
ResponderExcluirNossa, e pensar que já vi histórias como essa!!
A realidade nua e crua ...
Tenha um lindo final de semana
Abraços
Escrever ajuda, senão a entender, porque tais fatos fogem ao entendimento, pelo menos a se esvaziar um pouco deles, se estes foram vividos.
ResponderExcluirSeja para fazer rir ou comover continuas a encantar.
Beijos Samaryna
Existem muitas Paolas por aí e uma história com morte e um pacto de silêncio torna tudo muito mais doloroso e sem chance de mudança.
ResponderExcluirFlor que fenece botão é muito triste e nenhuma mulher merece.
beijos
Li logo quando postei, e não comentei. Fico pensando no que li, e não voltei.
ResponderExcluirRelendo. São tantas histórias assim, são tantos casos, são vidas modificadas, são fatos silenciados, traumas que não adormecem.
Lembrei de uma amiga que a família é de Alagoas e nesta família existem vários casos de abusos de tios com sobrinhas, de pais com filhas...e as famílias ficam em silêncio.
abraço
Oi amiga..a gnte comça a ler...vai imaginando o qu pode acontecer...desvia a vontade do que seria o enredo, mas le chega e vai cortando a pele, dando nó na garganta...
ResponderExcluirDificil mesmo esquecer qualquer história desse tipo
Um abraço na alma...boa semana
Beijo
Samaryna, amiga! Mesmo sabendo que fatos assim acontecem em nosso meio, sua história me impressionou demais. O tio-pai, aquele que carinhosamente lhe dava colo, transformou um afeto infantil em violência. Foi um sonho desfeito, um amor pisoteado. Que dor, menina! E Paola? Levou seu segredo... Que bom que escreves sobre isto, nada melhor que compartilhar. Beijo no coração.
ResponderExcluirObrigada pelo carinho... sempre!
Triste é quando ninguém fala nada e o crápula continua por aí fazendo mais e mais vítimas sequeladas, muitas vezes, para o resto de suas vidas.
ResponderExcluirQue Deus livre e guarde nossas crianças e nossos filhos.
Beijos, linda!