Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

sábado, 19 de novembro de 2011

Violência urbana

   Maria fazia, como todos os dias, antes de sair de casa, sua oração ajoelhada em frente do oratório. Tendo Santa Rita de Cássia como protetora, ela perdera a esperança no ser humano, mas não na vida, mesmo sabendo ser difícil desassociar uma coisa da outra. Muito cedo perdera o marido atacado por cirrose hepática. Sozinha, ela criara os três filhos e por deixá-los a sós, para trabalhar, os perdera para o crime. Bola era o único filho vivo, mas havia dez anos que não o via, desde que ele fugira de casa.
   Ao sair de casa, Maria se benze fazendo o sinal da cruz e beijando a medalha de Santa Rita que traz sempre consigo. Ela se dirige ao ponto para tomar o ônibus que a levará a Rua Cascalho.
              
   Rua Cascalho cedo da manhã. O silêncio imperava. De vez em quando se ouvia o vento que trazia um pouco de umidade. Amanhecia seco. Do nada surge um carro em alta velocidade. O barulho da frenagem dos pneus no asfalto interrompe o silêncio.
   - Porra Neto estacione o carro próximo da saída. Que merda cara, você quer nos ferrar?
   - Calma Paco! Você não está falando com qualquer um não.
   - Bola passa as máscaras. Apressa-se porra. Vamos cacete, isso aqui vai ser um assalto, não um piquenique de fim de semana com a família. Atenção, quando entrarmos quero todos com as máscaras. Neto deixa o motor ligado. Bola, você fica com o caixa... Não, você é muito gordo para isso. Neto, você fica com o caixa, e revolver apontado para cabeça dele, qualquer movimento, você estoura os miolos dele. Bola, você fica na porta vigiando. Vamos!
   Os três entraram surpreendendo o caixa e o atendente. Neto já havia pulado o balcão e estava com o revolver apontado para cabeça do caixa. Bola estava na porta da loja desempenhando a sua função. Paco estava com o atendente que lutava desesperadamente para se desvencilhar.
   - Que merda! O que este prego tem, fumou bosta de gado? – Paco dá uma rasteira no atendente levando-o ao chão. Com o joelho sobre o seu peito e o revolver enterrado na sua boca, ele grita:
   - Quieto. – Repetiu a frase só que pausadamente.

   Maria já estava no ônibus, um ponto antes de descer ela tem a impressão de que uma voz sussurrava aos seus ouvidos: “não desça!”. A voz era doce e tinha hálito de rosas. Ela não dá ouvido. O cheiro de rosas aumenta, tem a impressão de estar num roseiral. Ela desce.
   Em um momento de descuido, Paco só teve tempo para sentir o chute na região genital. A dor era intensa, mas mesmo assim ele engatilhou a arma, mirou no atendente e, no momento do disparo, sentiu um impacto no ombro.
   - Você tá louco Paco. Estamos aqui para roubar não assassinar. - Neto esbraveja após se chocar com Paco.
   Não ouve tempo de evitar o disparo. A bala seguiu seu destino. Passou de raspão pelo atendente, atravessou a porta de vidro assustando Bola, e acertou em cheio, no outro lado da rua, Maria que a pouco havia descido do ônibus. Ela levou as mãos ao peito e, mergulhada em sangue, desmaiou. Em poucos segundos estava morta. Rodeada por rosas brancas, ela acordou no colo de Santa Rita de Cássia. Alcançou, enfim, para sempre, a paz.
   - O que está acontecendo aí, cara? Porra, tem um presunto do outro lado da rua. Melou, melou. Que merda! – Bola assustado começa a andar em círculos, e só se deu conta que havia outro corpo no chão quando tropeçou nele, desabando de uma vez.
   Após o choque que levou de Neto, Paco disparou de novo. A bala alcançou o atendente antes dele atravessar a porta de vidro, estilhaçada pelo primeiro tiro, e cair na calçada da loja. A última imagem, antes de morrer, que viu, foi um corpo imenso que desabava sobre ele. Era Bola que acabara de tropeçar.
   - Que está acontecendo aí, isso aqui é um assalto ou uma carnificina? – Interroga Bola, aturdido, aos seus amigos.
   O imprevisto havia acontecido e a vida de cada um deles estava em suas mãos, cabia a cada um tomar a decisão. Paco havia tomado a sua e, com a sua decisão, mudou o destino de todos. Após Paco amarrar o caixa, Neto pegou sua arma que havia caído no choque. Com aquele movimento, Neto selou seu destino. Paco não hesitou quando viu Neto com a arma na mão. Apontou-lhe seu revolver sem esboçar nenhum sentimento, a não ser raiva. Instantaneamente, Neto também lhe apontou a sua. Os dois frente a frente, de arma em punho, duelavam.
   - Seu merda, por que atravessou o meu caminho? – Paco esbravejou.
   - Não havia necessidade de matá-lo. – Neto demonstrava serenidade.
   - Agora o bostinha vai dar um de bom samaritano. O merdinha escolheu o crime como opção de vida e agora se acha defensor dos fracos e oprimidos. Há, há, há, me poupe bosta ambulante.
   - Ele é um ser humano...
   - Chega de bobagens, seu riquinho de merda. Por que então você está aqui?
   - Você sabe muito bem, Paco. A culpa é sua.
   - Não me culpa pela tua escolha, seu merdinha filho de papai. O seu erro é fruto somente da sua escolha. Você que subiu o morro atrás de drogas, não fui eu que desci.
   - Meu fascínio pelo crime foi devido à ilusão que você me passou...
   - Chega desse papo. Você já me atrapalhou muito.
   - Se atrapalhei é porque não havia necessidade de você tirar a vida do cara.
   - Não havia, não havia. – Paco imita a voz de Neto. – Chega de bobagens. Para você que nasceu bem, afinal seus pais são ricos, é fácil ter dó dos outros. E eu que vi só pobreza, pergunta-me se alguém teve dó de mim, se teve dó dos meus pais. Meu pai, aos trinta e cinco anos, foi mandado embora do emprego, não conseguiu outro porque estava velho e, além disso, era discriminado por ser negro e favelado...
   - Isso não lhe dá o direito de matar alguém.
   - Cala a tua boca que eu ainda não terminei. Envergonhado, meu pai abandonou a família, entregou-se a bebida e morreu. Alguém teve dó dele? Não. Vivemos num mundo egoísta, onde ninguém dá a mínima para sua dor. Minha mãe foi obrigada a trabalhar de empregada doméstica. Um mês, exato um mês de trabalho, o sacana do seu patrão tentou estuprá-la. Ela o denunciou, o delegado disse que não podia fazer nada, pois ela não tinha testemunha. Na segunda tentativa de estupro, ela o matou. De desgosto, minha mãe, morreu na prisão. Aos dez anos, sozinho no mundo, não tive assistência do estado, só quem olhou para mim foi o traficante da favela que eu morava. E estou aqui vivenciando minha dor todos os dias e você vem me falar de dó. Só há um sentimento em mim: “Ódio”. Agora abaixa sua arma.
   Foi o erro de Neto. Ao abaixar a arma, Paco com um tiro estourou seus miolos. Caído no chão, como último espasmo, riu. Ao se virar, Paco percebeu que ao cair, Neto soltou-se de sua arma, e esta já estava na mão do caixa que havia se soltado das cordas. Paco só sentiu o impacto das balas no seu corpo para perceber que chegara seu fim. Disse suas últimas palavras:
   - Seu merda.
   Bola, desesperado, entrou na loja quando foi surpreendido pelo caixa que disparou sua arma, mas não tinha mais balas. Riso sarcástico, Bola abaixou-se, encostou seus lábios próximos da orelha do caixa e sussurrou:
   - Seu terror vai começar agora. Sabe por que eu estava lá fora? Porque eles tinham medo de eu estragar tudo, pois dos três eu sou o mais malvado.
   O caixa tentou falar alguma coisa. O medo o impediu e ele engasgou com sua própria saliva.
   - Eu quero a chave do cofre. – Agora Bola gritava.
   - Não está comigo. – O caixa conseguiu atinar as palavras.
   A orelha esquerda do caixa foi arrancada, com um tiro a queima roupa, dado por Bola.
   - Eu quero a chave do cofre.- Disse Bola aos berros.
   - Não...
   Bola não deixou ele completar a frase e deu-lhe um tiro na perna esquerda. Quando Bola lhe apontou a arma na direção da sua cabeça, o caixa apontou à esquerda do balcão. Era o local onde estava a chave.
   - Imbecil, não havia necessidade de lhe arrancar a orelha e nem quebrar sua perna. Vou lhe aliviar a dor. Vá para o inferno!
   O estampido do descarrego da arma é ouvido em toda a loja. Bola abre o cofre, põe tudo que tem valor numa sacola e sai em disparada com o carro. Após meia hora dirigindo, ele liga o rádio do carro:
   “Aqui é Amari Terra falando da periferia de São Paulo. Mais um assalto seguido de morte. Por que São Paulo está violenta? A resposta talvez esteja na impunidade que os infratores gozam. Em um país onde os mandatários, que são responsáveis em manter a ordem e a lei, são os primeiros a deixar roubar ou, eles próprios, a roubarem. Em um país onde deputados são pego em ato de corrupção, absolvidos pelos seus pares, só pode passar a sociedade que o crime compensa. Daí advém toda violência que nasce e cresce assustadoramente em São Paulo. Amari Terra falou para o programa Violência Urbana direto da periferia de São Paulo. Bom Dia”.
   - Seus trouxas. – Bola desligou o rádio. 

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13 comentários:

  1. Sou MYRA, a AnonimA!!!
    OH!AH! voce deveria escrever policiais!!!|||
    tremendo mas acho que tem muita verdade ...
    um gde abraço,

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  2. Eder! Ah, muito intenso. Infelizente assim acontece na realidade, não é? E você nos transfere para este mundo... o linguajar típico, os apelidos e as cenas que sucedem como se víssemos um filme. Será que a violência vai diminuir um dia?

    Grande beijo

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  3. Muita verdade, muita realidade em um conto. Este é o dia a dia que escutamos nos programas de violência urbana, que divulga a violência, e explora de forma exaustiva, mostrando este outro mundo.
    Ainda bem que tem um outro mundo acontecendo, o mundo dos que fazem o bem, ainda pouco divulgado.

    beijo

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  4. ...triste e real, infelizmente!

    que Deus olhe por nós!

    bjs, alma querida!

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  5. Meu amigo...
    Que história tão triste, mas tão atual, não?
    Que pena que a violência de hoje em dia tenha chegado a pontos como este do seu conto...
    Beijos, flores e muitos sorrisos!

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  6. Forte! Mas é a realidade. Quase morri assim, mês passado. Nem o metrô consegui pegar noutro dia. Beijokas

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  7. Uma crónica muito atual ...lamentavelmente. O mundo do crime é bárbaro...geralmente o fim é sempre trágico... Obrigada pelo comentário no sei lá.

    Beijo

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  8. Triste, assustador, principalmente por retratar a realidade, infelizmente.

    Beijo, Eder.

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  9. Oi Eder

    É quando confrontamos essa realidade, vendo-a cono espectadores, como aqui te lendo, que fica ainda mais claro a insanidade na qual vivemos.

    Um beijo

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  10. Já nem choca, mais! As palavras vão se repetindo, o coração vai endurecendo, e a vida continua. Seu texto muito bem escrito, como sempre, você deveria ser repórter policial ou cronista de algum bom jornal. Beijos.

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  11. É estarrecedor Eder quando situações de vida tão difíceis são encaradas como banais ,como parte do cotidiano de uma periferia urbana.Sim, me dói ainda ver ou ouvir algo assim,mesmo que fictício.
    Abraços,

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  12. Sabe o que me admira nesta situação, é que se torna normal, banal, estou junto em seu grito de alerta.
    com carinho
    Hana

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