Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Depois - Parte final


   Pedro estacionou o carro em cima da calçada, sabia que estava errado, contudo, a pressa não lhe permitia outra ação senão essa. Ele retirou dois sacos de sessenta quilos do porta-malas do carro e colocou na garagem do salão de distribuição de sopa, em seguida saiu em disparada, sendo observado por Salvador. Voltou meia hora depois com duas caixas pequenas e as colocaram próximas dos sacos.
   - Pedro, posso saber o que se passa. Não me diga que vai tirar Jesus da cruz com toda essa pressa. - Salvador disse entre risos.
  - Não. - Pedro disse sorrindo, também. - Recolhi alguns sonhos nas padarias do bairro e algumas latas de doce de leite de alguns supermercados.
   - E o que pretende com isso, aqui só distribuímos sopa. Você sabe disso.
   - Sei, Salvador. Vou distribuí-los na rua para os famintos.
   - Pedro, depois de vinte anos, você ainda me surpreende. Isso é bom. Precisa de ajuda?
   - Desculpa, irmão, quero fazer isso sozinho.
   - Vá com Deus, Pedro. Ele te guiará aonde você quer chegar.
   Pedro partiu incomodado por Salvador ainda não chamá-lo de irmão depois de vinte anos de convivência.

   Socorro corria, mas a fome estava lhe tirando as forças das pernas, se descansasse, ela sabia que não levantaria, por isso passou a andar lentamente.

   Pedro havia distribuído todos os sonhos. Foi em direção ao carro e quando jogou os dois sacos vazios no porta-malas sentiu um ruído, então, ele enfiou a mão no saco e encontrou um sonho. Olhou para todos os lados para ver se encontrava algum faminto, como não encontrou, ele levou o sonho à boca. Neste mesmo instante, ele ouviu um ruído de algo se chocando no carro. Foi na direção de onde o ruído havia vindo e encontrou uma criança caída no chão.
   - O que lhe aconteceu? - Pedro perguntou ansiando uma resposta, pois estava preocupado.
   - Você é o anjo que veio me trazer o sonho recheado com doce de leite.
   Pedro não havia entendido a resposta, somente se deu conta quando a criança avançou sobre a sua mão retirando o sonho e o comendo vorazmente.
   Esbaforido, Pedro entrou no salão de distribuição de sopa, carregando a criança no colo e já explicando a Salvador o que se passara. Após pedir às voluntárias que desse um banho na criança, a alimentasse e a acomodasse num dos quartos do salão, Salvador, pela primeira vez, viu Pedro orando.
   - Pai, um dia, eu não dei valor a vida que me deste, atentei contra o bem maior que deixara para mim. Pai, sei que sou pequeno, ainda não merecedor de Sua graça, por isso, peço-Lhe, não para mim, mas para essa criança, não deixe que a Luz lhe expire, ilumina-a.
   Salvador, emocionado, se encaminhou a Pedro e lhe deu um abraço demorado.
   - Pedro, a sua fé trará Luz a ela. Você é um iluminado, irmão.
   Pedro, enfim, ouviu o que tanta ansiara, ser chamado de irmão por Salvador. Segurou mais um pouco aquele abraço para si e o agradeceu por não ter desistido dele. Salvador lhe sorriu e beijou a sua testa, abençoando, em seguida saiu da sala deixando-os a sós.
   Ainda emocionado, Pedro viu os seus olhos retrocederem em câmera lenta para o passado, no momento que encontrou com Angélica pela primeira vez na escola e voltar ao presente lestamente ao encontro dos olhos da criança que acabara de acordar. Gelou, o olhar das duas eram parecidos. O seu coração disparou, um sentimento que há muito tempo estava adormecido aflorava. Ela é uma criança, Pedro, disse para si. Agora sem controle dos olhos, esses voltaram para o dia que ele fez amor com a Angélica na padaria e foram trazidos de volta para o corpo da criança que remexia no sofá. A simetria dos corpos era idêntica, as curvas mais ainda, um detalhe as diferenciava, Angélica era clara, a criança é morena. Se não fosse pela magreza de uma em relação à outra, poderia dizer que eram a mesma pessoa. Olhou mais detalhadamente para o corpo dela, e ela percebera, gostara até. O delineamento simétrico das curvas do corpo dela já não lhe dava a certeza de que era uma criança. Perturbado, ele resolveu falar com Salvador, mas antes a criança lhe falou:
   - Posso saber o nome do meu anjo salvador?
   - Pedro, e o seu?
   - Socorro.
   - Pois bem, Socorro, eu não sou anjo e muito menos salvador, sou apenas um praticante do amor cristão. Agora preciso ir. - Pedro disse tartamudeando, nervoso e perturbado.
   Ele encontrou Salvador no jardim cuidando de suas flores.
   - Pedro, amar é exercitar o Deus em nós, isso você fez ao salvar esta garota, reduzir o amor a superfície do físico é diminuir o Deus intrínseco, é deixar de verbalizá-lo, é emudecer a Sua voz, é regá-Lo ao depois. Pense bem irmão, o conhecimento nos dá a oportunidade de saber escolher, e escolher é saber pôr em pratica as nossas vontades. Saiba das suas e escolha.

CINCO ANOS DEPOIS

   Contristo e cabisbaixo, Pedro alimentava os pombos, fazia isso para ter companhia. Com cinquenta anos, os vincos no rosto, a rigidez da pele e dos sentimentos o envelhecera muito. Sombreava por onde passava, perdera a luz depois que abandonou o serviço voluntário no salão de distribuição de sopa. O alarido dos pombos, após ele jogar as migalhas de pão despertava em seu rosto o sorriso de antes. Repentinamente, o bater de asas dos pombos voando por sobre a sua cabeça o assustou, uma sombra no chão encontrava com a sua. Ele levantou a cabeça e não acreditou no que estava vendo.
   - Angélica? - Pedro disse, incrédulo.
   - Não, Pedro, sou eu, não me reconhece mais.
   - Socorro. - Pedro disse se refazendo do susto.
   - Pensou que ia fugir de mim. Demorei, mas te achei. Levante.
   Socorro pegou-o pela mão e o ergueu, Trazendo-o para junto de si. Parados, se olharam demoradamente, um procurando no outro quais eram as suas vontades. Não precisou de muito tempo para saber.
   Pedro voltou para o serviço voluntário e reencontrou Salvador. Deu-lhe um abraço demorado segurando as lágrimas.
   - O bom filho a casa torna. - Salvador disse sorrindo.
   - Ele torna porque sabe que o Pai sempre estará de braços aberto para ele.
   - Sempre, Pedro, Ele sempre estará com e será por nós.
   E durante mais cinco anos Socorro exercitou o amor divino ajudando aos necessitados, juntamente com Pedro, Salvador e outros voluntariados. Em um dia comum, um dia de sol brilhante, ela se foi, alegre. Sofrera, aos vintes e cinco anos, um ataque cardíaco fulminante. Pedro estava ao seu lado, mas quando o resgate chegou já era tarde. Antes de ir, ela, segurando na mão de Pedro, disse:
   - Meu amor, estou indo pelas mãos do amor, o amor divino, por isso não sofra, sempre há um depois.
   - Eu sei, amor. Vá em paz.
   Pedro disse escondendo a sua tristeza em um sorriso sem convicção e deixando as lágrimas jorrarem assim que os olhos de Socorro foram fechados por ele. Aos poucos, ele foi perdendo a tristeza ajudando aos outros no serviço voluntário. Permaneceram em si as saudades e as boas lembranças vividas.
   Aos sessenta anos, ele não aguentava mais o serviço voluntário, o seu corpo não fraquejava, cansava fácil. Sentou, arcou o corpo levando a cabeça ao braço do sofá, adormeceu. Em seu rosto havia sorrisos da época que ele amara a Angélica e Socorro, os mesmos sorrisos.
   - Você voltou, veio realmente me buscar como havia prometido.
   - Sim, Pepito. Eu sempre lhe disse que há um depois. Vem meu amor, me acompanha.
   - Mas, onde está Socorro?
   No rosto de Angélica havia um sorriso que não era seu, o sorriso de Socorro. Pedro entendera. Foi para amá-la até um novo depois.

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13 comentários:

  1. Acreditar num depois desta forma, ainda não acredito.
    Embora muita coisa que nos acontece, de encontro que parecem reencontros, nunca teremos explicação.

    abraço

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  2. sou Myra como Anonima
    me desculpa, querido amigo, mas nao acredito!claro voce sabe que gosto como escreve, isto sim!
    abraços,

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  3. Olá, Éder

    " Das alturas orvalhem os céus,
    E as nuvens que chovam justiça,
    Que a terra se abra ao amor
    E germine o Deus Salvador"...



    Fico tão sem palavra para agradecer o carinho imensurável com que me cumula ao longo do ano que só posso lhe dizer que:
    Seja muito abençoado e feliz, amigo!!!
    Bjs fraternais de paz e FELIZ NATAL... apesar de qualquer vestígio de dor em seu coração...

    "Quando eu estiver contigo no fim do dia, poderás ver as minhas cicatrizes,

    e então saberás que eu me feri e também me curei."

    (Tagore)

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  4. Muito bonita essa visão da continuidade da vida e do amor, Eder, muito envolvente o teu conto, cativante também.

    Parabéns.

    Um beijo.

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  5. ...lendo você,
    relembrei Laços Eternos, lindo
    romance de Zíbia Gaspareto.

    tá vendo como tudo se entrelaça
    nesta vida?

    bj, menino querido!

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  6. Amigão,

    Não sei se já o faz, mas deve escrever profissionalmente!

    Agradeço as palavras de força, de coração... Obrigado!

    Abraços :)

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  7. Caro amigo Éder

    Hoje minha visita é para agradecer
    o presente que é para mim
    a sua amizade,
    e também desejar
    um maravilhoso Natal,
    onde possas encontrar nestes dias
    ainda mais inspiração
    para a alegria de ser feliz,
    e para o milagre de fazer
    quem passa por tua vida feliz.

    Que o teu olhar seja a mais perfeita
    luz do Natal a enfeitar o mundo.

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  8. Eder, meu querido

    Hoje vim agradecer-lhe, pela presença, pelo incentivo, pelo carinho e pela sua amizade que tão bem me faz. Desejo à você e sua família um natal abençoado, cheio de paz, saúde, união e alegrias.

    Feliz natal!

    Ps; Volto para ler tudo que perdi, nessa semana.

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  9. Lindo demais,Eder!!!Parabéns! Desejo um lindo e Feliz Natal pra ti e teus! abraços, chica

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  10. Olá Eder...independente de um depois, o agora é a hora de fazermos o mínimo, solidariedade é uma forma de conversamos com Deus, mesmo sem pronunciarmos uma unica palavra...parabéns pela escrita...á demorando seu livro..rs

    Um abraço na alma...beijo no coração amigo...

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  11. Eder,
    Ter acompanhado seus registros para mim foi um grande aprendizado que espero poder prosseguir no próximo ano também.Sem dúvidas seus contos são uma forma literária de apresentar a realidade urbana com suas feridas e traumas.Seria mesmo muito bom se pudesse reuní-los num livro.
    Meu abraço sincero e desejos de boas festas para ti e todos aqueles que te estão no coração!!!

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  12. Ah! Meu Amigo Éder... Quantos de nós ainda precisa ser tocado por essa benção do verdadeiro amor... Esse sentimento puro que não olha a quem doá-lo.
    A história trouxe muita emoção para esse meu coração! Obrigada por tão bela partilha!
    Hoje além de apreciar eu vim também desejar que o seu Natal seja rico em amor e o novo ano seja marcado por muitas realizações!
    Um abraço carinhoso, repleto de admiração e amizade

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  13. Eder.
    Cheguei ao teu blog através do blog "Retalhos do que sou", da Van.
    Fiquei emocionada com essa história.
    Belissíma...
    Parabéns!
    Da sua mais nova seguidora

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