Pedro estacionou o carro em cima da calçada, sabia que estava errado, contudo, a pressa não lhe permitia outra ação senão essa. Ele retirou dois sacos de sessenta quilos do porta-malas do carro e colocou na garagem do salão de distribuição de sopa, em seguida saiu em disparada, sendo observado por Salvador. Voltou meia hora depois com duas caixas pequenas e as colocaram próximas dos sacos.
- Pedro, posso saber o que se passa. Não me diga que vai tirar Jesus da cruz com toda essa pressa. - Salvador disse entre risos.
- Não. - Pedro disse sorrindo, também. - Recolhi alguns sonhos nas padarias do bairro e algumas latas de doce de leite de alguns supermercados.
- E o que pretende com isso, aqui só distribuímos sopa. Você sabe disso.
- Sei, Salvador. Vou distribuí-los na rua para os famintos.
- Pedro, depois de vinte anos, você ainda me surpreende. Isso é bom. Precisa de ajuda?
- Desculpa, irmão, quero fazer isso sozinho.
- Vá com Deus, Pedro. Ele te guiará aonde você quer chegar.
Pedro partiu incomodado por Salvador ainda não chamá-lo de irmão depois de vinte anos de convivência.
Socorro corria, mas a fome estava lhe tirando as forças das pernas, se descansasse, ela sabia que não levantaria, por isso passou a andar lentamente.
Pedro havia distribuído todos os sonhos. Foi em direção ao carro e quando jogou os dois sacos vazios no porta-malas sentiu um ruído, então, ele enfiou a mão no saco e encontrou um sonho. Olhou para todos os lados para ver se encontrava algum faminto, como não encontrou, ele levou o sonho à boca. Neste mesmo instante, ele ouviu um ruído de algo se chocando no carro. Foi na direção de onde o ruído havia vindo e encontrou uma criança caída no chão.
- O que lhe aconteceu? - Pedro perguntou ansiando uma resposta, pois estava preocupado.
- Você é o anjo que veio me trazer o sonho recheado com doce de leite.
Pedro não havia entendido a resposta, somente se deu conta quando a criança avançou sobre a sua mão retirando o sonho e o comendo vorazmente.
Esbaforido, Pedro entrou no salão de distribuição de sopa, carregando a criança no colo e já explicando a Salvador o que se passara. Após pedir às voluntárias que desse um banho na criança, a alimentasse e a acomodasse num dos quartos do salão, Salvador, pela primeira vez, viu Pedro orando.
- Pai, um dia, eu não dei valor a vida que me deste, atentei contra o bem maior que deixara para mim. Pai, sei que sou pequeno, ainda não merecedor de Sua graça, por isso, peço-Lhe, não para mim, mas para essa criança, não deixe que a Luz lhe expire, ilumina-a.
Salvador, emocionado, se encaminhou a Pedro e lhe deu um abraço demorado.
- Pedro, a sua fé trará Luz a ela. Você é um iluminado, irmão.
Pedro, enfim, ouviu o que tanta ansiara, ser chamado de irmão por Salvador. Segurou mais um pouco aquele abraço para si e o agradeceu por não ter desistido dele. Salvador lhe sorriu e beijou a sua testa, abençoando, em seguida saiu da sala deixando-os a sós.
Ainda emocionado, Pedro viu os seus olhos retrocederem em câmera lenta para o passado, no momento que encontrou com Angélica pela primeira vez na escola e voltar ao presente lestamente ao encontro dos olhos da criança que acabara de acordar. Gelou, o olhar das duas eram parecidos. O seu coração disparou, um sentimento que há muito tempo estava adormecido aflorava. Ela é uma criança, Pedro, disse para si. Agora sem controle dos olhos, esses voltaram para o dia que ele fez amor com a Angélica na padaria e foram trazidos de volta para o corpo da criança que remexia no sofá. A simetria dos corpos era idêntica, as curvas mais ainda, um detalhe as diferenciava, Angélica era clara, a criança é morena. Se não fosse pela magreza de uma em relação à outra, poderia dizer que eram a mesma pessoa. Olhou mais detalhadamente para o corpo dela, e ela percebera, gostara até. O delineamento simétrico das curvas do corpo dela já não lhe dava a certeza de que era uma criança. Perturbado, ele resolveu falar com Salvador, mas antes a criança lhe falou:
- Posso saber o nome do meu anjo salvador?
- Pedro, e o seu?
- Socorro.
- Pois bem, Socorro, eu não sou anjo e muito menos salvador, sou apenas um praticante do amor cristão. Agora preciso ir. - Pedro disse tartamudeando, nervoso e perturbado.
Ele encontrou Salvador no jardim cuidando de suas flores.
- Pedro, amar é exercitar o Deus em nós, isso você fez ao salvar esta garota, reduzir o amor a superfície do físico é diminuir o Deus intrínseco, é deixar de verbalizá-lo, é emudecer a Sua voz, é regá-Lo ao depois. Pense bem irmão, o conhecimento nos dá a oportunidade de saber escolher, e escolher é saber pôr em pratica as nossas vontades. Saiba das suas e escolha.
CINCO ANOS DEPOIS
Contristo e cabisbaixo, Pedro alimentava os pombos, fazia isso para ter companhia. Com cinquenta anos, os vincos no rosto, a rigidez da pele e dos sentimentos o envelhecera muito. Sombreava por onde passava, perdera a luz depois que abandonou o serviço voluntário no salão de distribuição de sopa. O alarido dos pombos, após ele jogar as migalhas de pão despertava em seu rosto o sorriso de antes. Repentinamente, o bater de asas dos pombos voando por sobre a sua cabeça o assustou, uma sombra no chão encontrava com a sua. Ele levantou a cabeça e não acreditou no que estava vendo.
- Angélica? - Pedro disse, incrédulo.
- Não, Pedro, sou eu, não me reconhece mais.
- Socorro. - Pedro disse se refazendo do susto.
- Pensou que ia fugir de mim. Demorei, mas te achei. Levante.
Socorro pegou-o pela mão e o ergueu, Trazendo-o para junto de si. Parados, se olharam demoradamente, um procurando no outro quais eram as suas vontades. Não precisou de muito tempo para saber.
Pedro voltou para o serviço voluntário e reencontrou Salvador. Deu-lhe um abraço demorado segurando as lágrimas.
- O bom filho a casa torna. - Salvador disse sorrindo.
- Ele torna porque sabe que o Pai sempre estará de braços aberto para ele.
- Sempre, Pedro, Ele sempre estará com e será por nós.
E durante mais cinco anos Socorro exercitou o amor divino ajudando aos necessitados, juntamente com Pedro, Salvador e outros voluntariados. Em um dia comum, um dia de sol brilhante, ela se foi, alegre. Sofrera, aos vintes e cinco anos, um ataque cardíaco fulminante. Pedro estava ao seu lado, mas quando o resgate chegou já era tarde. Antes de ir, ela, segurando na mão de Pedro, disse:
- Meu amor, estou indo pelas mãos do amor, o amor divino, por isso não sofra, sempre há um depois.
- Eu sei, amor. Vá em paz.
Pedro disse escondendo a sua tristeza em um sorriso sem convicção e deixando as lágrimas jorrarem assim que os olhos de Socorro foram fechados por ele. Aos poucos, ele foi perdendo a tristeza ajudando aos outros no serviço voluntário. Permaneceram em si as saudades e as boas lembranças vividas.
Aos sessenta anos, ele não aguentava mais o serviço voluntário, o seu corpo não fraquejava, cansava fácil. Sentou, arcou o corpo levando a cabeça ao braço do sofá, adormeceu. Em seu rosto havia sorrisos da época que ele amara a Angélica e Socorro, os mesmos sorrisos.
- Você voltou, veio realmente me buscar como havia prometido.
- Sim, Pepito. Eu sempre lhe disse que há um depois. Vem meu amor, me acompanha.
- Mas, onde está Socorro?
No rosto de Angélica havia um sorriso que não era seu, o sorriso de Socorro. Pedro entendera. Foi para amá-la até um novo depois.
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Acreditar num depois desta forma, ainda não acredito.
ResponderExcluirEmbora muita coisa que nos acontece, de encontro que parecem reencontros, nunca teremos explicação.
abraço
sou Myra como Anonima
ResponderExcluirme desculpa, querido amigo, mas nao acredito!claro voce sabe que gosto como escreve, isto sim!
abraços,
Olá, Éder
ResponderExcluir" Das alturas orvalhem os céus,
E as nuvens que chovam justiça,
Que a terra se abra ao amor
E germine o Deus Salvador"...
Fico tão sem palavra para agradecer o carinho imensurável com que me cumula ao longo do ano que só posso lhe dizer que:
Seja muito abençoado e feliz, amigo!!!
Bjs fraternais de paz e FELIZ NATAL... apesar de qualquer vestígio de dor em seu coração...
"Quando eu estiver contigo no fim do dia, poderás ver as minhas cicatrizes,
e então saberás que eu me feri e também me curei."
(Tagore)
Muito bonita essa visão da continuidade da vida e do amor, Eder, muito envolvente o teu conto, cativante também.
ResponderExcluirParabéns.
Um beijo.
...lendo você,
ResponderExcluirrelembrei Laços Eternos, lindo
romance de Zíbia Gaspareto.
tá vendo como tudo se entrelaça
nesta vida?
bj, menino querido!
Amigão,
ResponderExcluirNão sei se já o faz, mas deve escrever profissionalmente!
Agradeço as palavras de força, de coração... Obrigado!
Abraços :)
Caro amigo Éder
ResponderExcluirHoje minha visita é para agradecer
o presente que é para mim
a sua amizade,
e também desejar
um maravilhoso Natal,
onde possas encontrar nestes dias
ainda mais inspiração
para a alegria de ser feliz,
e para o milagre de fazer
quem passa por tua vida feliz.
Que o teu olhar seja a mais perfeita
luz do Natal a enfeitar o mundo.
Eder, meu querido
ResponderExcluirHoje vim agradecer-lhe, pela presença, pelo incentivo, pelo carinho e pela sua amizade que tão bem me faz. Desejo à você e sua família um natal abençoado, cheio de paz, saúde, união e alegrias.
Feliz natal!
Ps; Volto para ler tudo que perdi, nessa semana.
Lindo demais,Eder!!!Parabéns! Desejo um lindo e Feliz Natal pra ti e teus! abraços, chica
ResponderExcluirOlá Eder...independente de um depois, o agora é a hora de fazermos o mínimo, solidariedade é uma forma de conversamos com Deus, mesmo sem pronunciarmos uma unica palavra...parabéns pela escrita...á demorando seu livro..rs
ResponderExcluirUm abraço na alma...beijo no coração amigo...
Eder,
ResponderExcluirTer acompanhado seus registros para mim foi um grande aprendizado que espero poder prosseguir no próximo ano também.Sem dúvidas seus contos são uma forma literária de apresentar a realidade urbana com suas feridas e traumas.Seria mesmo muito bom se pudesse reuní-los num livro.
Meu abraço sincero e desejos de boas festas para ti e todos aqueles que te estão no coração!!!
Ah! Meu Amigo Éder... Quantos de nós ainda precisa ser tocado por essa benção do verdadeiro amor... Esse sentimento puro que não olha a quem doá-lo.
ResponderExcluirA história trouxe muita emoção para esse meu coração! Obrigada por tão bela partilha!
Hoje além de apreciar eu vim também desejar que o seu Natal seja rico em amor e o novo ano seja marcado por muitas realizações!
Um abraço carinhoso, repleto de admiração e amizade
Eder.
ResponderExcluirCheguei ao teu blog através do blog "Retalhos do que sou", da Van.
Fiquei emocionada com essa história.
Belissíma...
Parabéns!
Da sua mais nova seguidora