Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Aonde o sol se esconde - 5ª Parte

     Quando a mente humana não percebe a luz que emana de um solo sagrado é porque não sabe mais em que chão pisa.
     Aquela mão não lhe dava apenas a proteção, mas também o levava aonde os seus pensamentos permitiam. Aquela mão agora, desprendida da sua, tentava apoiar na parede para desacelerar a velocidade da queda. Aquela mão envolvida no sangue que espargia da cabeça tentava apoiar nele para evitar a queda. Aquela mão não o levaria mais aonde os seus pensamentos permitiriam, aquela mão não lhe daria mais proteção. O policial, com uma arma em uma das mãos, vasculhava o corpo morto em busca de provas para justificar o assassinato que acabara de cometer; não encontrando, ele plantou uma, e saiu passando a outra mão na cabeça do garoto que a rejeitou se desviando. Devido a repulsa, o garoto recebeu uma coronhada no queixo e foi lançado de encontro ao corpo morto do seu pai. Após a morte de seu pai, foi pelas mãos de sua mãe que ele voltou a ter segurança, mas durou pouco. Desgostosa, ela se foi, também, morta pela polícia. Mas foi pela mão, a pior mão, malévola, deseducativa, a mão do estado que ele mais sofreu. Por dois anos o peso desta mão exerceu influências negativas sobre ele o acompanhado até o fim dos seus dias. Aos seis anos, após fugir da FEBEM, o garoto buscou proteção na mão divina, mas o padre o aconselhou a procurar um abrigo governamental. Não se pode esperar muito da mão divina quando para se chegar a ela precisa da mão humana. Sem ter a quem pedir ajuda, o garoto enveredou por um caminho sem volta, o do tráfico. Mais do que mão, o tráfico foi braços, pernas, corpo, e, principalmente, mente. Com seis anos, o sofrimento lhe tirou qualquer capacidade de discernir o certo do errado. Ele foi alimentado pelo desejo de vingança, e pela mão que comia, a vingança era um prato cheio.
     Trêmulo, o garoto não conseguia mirar em um dos policiais que se encaminhava para a igreja, os seus pensamentos presos ao passado não permitiam. Seus pais mortos pela polícia, os maus tratos na FEBEM, a rejeição do padre eram dores incuráveis, mas que precisavam de alívio. Ele se refez e se encaminhou para a igreja.

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segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Aonde o sol se esconde - 4ª Parte

     Qual de nós nunca brincou de mocinho e bandido e sempre quis ser o mocinho por saber que no final o mocinho sempre vence? Qual de nós nunca quis ser o mocinho sabendo que no fim da história a heroína sempre fica com o mocinho?
     A igreja toda enfeitada de rosas brancas estava lotada; ansioso, o noivo aguardava no altar o início da celebração; seu casamento era a última cerimônia a ser realizada. Oscilando a cabeça, ele autorizou o desligamento da energia; assim que as luzes começaram a apagar, as duas mil velas postas em candelabros e distribuídas por toda a igreja foram acessas. Inquieto, ele andou de um lado para o outro, ora limpando o suor do rosto, ora batendo a ponta do sapato no assoalho de madeira chamando a atenção de todos.
     A força policial se preparava para mais uma incursão ao morro determinada a eliminar qualquer suspeito. A operação era de risco, como sempre era toda subida policial ao morro, mormente se fosse feita à noite. O Caveirão já estava ligado, pronto para partir. Com todo o aparato que aquela operação exigia, a polícia dava a entender que iria para a guerra. E ia.
     Marcha soldado, cabeça de papelão, quem não marcha direito, cai na ponta do facão. O garoto, tamborilando na mesa, cantava uma das cantigas que sua mãe lhe ensinou no pouco tempo que estiveram juntos. O dia estava sendo inusual para ele, o mais esperado de todos os dias de sua vida, o momento que ele esperava para vingar a morte de seus pais. O traficante lhe deu o AR-15, não lhe disse nada, apenas olhou dentro de seus olhos com a certeza de estar vendo um homem, passou a mão na sua cabeça, como sempre faz, e o deixou sozinho. A arma dava a entender que ele iria para a guerra. E ele era apenas uma criança.
     Havia um silêncio incômodo no morro, uma quietude imposta, sabendo-se de antemão que logo a balbúrdia imperaria, para depois um silêncio pior permanecer, o silêncio de quem vela os seus mortos. Fogos de artifícios estouraram no céu avisando que a polícia ia subir o morro, pipas povoavam o céu alertando os moradores que deveriam ficar em suas casas. Sabendo da batida policial, antecipadamente, os traficantes alertavam aos moradores o que estava por vir. O palco estava armado para a guerra.
     O padre pedia silêncio, pois a cerimônia seria iniciada.
     A tropa preparada começava a invadir o morro.
     Silente, o garoto fazia suas preces com as duas mãos postas sobre o cano do AR-15, e a cabeça sobre as mãos. Um tiro ecoou na rua, foi o sinal que ele precisava para sair.
     Todos olharam para trás, sem exceção, quando o organista tocou “Forever in Love de Kenny G”. A noiva, de vestido branco bordado com linha de seda, coroa de rosas naturais branca prendendo os cachos do cabelo, entrou na igreja iluminada pelas velas que bruxuleavam no candelabro da entrada da igreja até o altar. Atraída bela beleza da noiva a luz da vela ganhou mais vida e derramou sobre ela o seu lume a nobilitando; o noivo entre risos nervosos a aguardava, silente, com as mãos no bolso da calça e gotas de suor permeando sua face.
     Anjos infernais saiam dos canos das armas, tanto da polícia como dos bandidos, a procura dos filhos de Deus; os corpos no chão mortos, nenhum fardado, era a prova de que não havia bala perdida. A polícia aproximava da igreja deixando para trás rastros de destruição. O morro as escuras necessitava de luz, e o único lume que bruxuleava era o do interior da igreja, chamando a atenção da tropa policial.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Aonde o sol se esconde - 3ª Parte

   Qual de nós, em perigo eminente, o medo perscrutando, não ajoelhou e pediu ajuda aos céus; qual de nós, conseguindo a ajuda, não se prostrou diante do Altíssimo e agradeceu não a nossa existência, mas a Dele.
   Mesmo com o sangue, da carnificina, coagulando sob os seus pés, desnorteando o seu raciocínio, ele, apesar do embaçamento da visão causado pelo ferimento, ainda conseguiu ver o padre beijar o crucifixo que trazia consigo e ajoelhar-se em agradecimento por ter sido salvo; em seguida, ele viu o padre curvar-se e beijar o assoalho do altar, abençoando o único local que não foi maculado pelo sangue, até então. Uma nuvem vermelha e líquida, vindo de onde estava o padre, lhe atingiu o rosto, embaçando a sua visão, mais ainda. O padre caiu de bruços sobre o crucifixo. A permanência da maldade retirava a chance do milagre em terra de homens.
     O padre tentou localizar o seu matador, mas a visão lhe fugia, conseguiu discernir a figura de um garoto na porta do fundo da igreja com um fuzil na mão, porém o tiro veio da entrada da igreja. Mesmo com a morte eminente, ele não perdeu a esperança do milagre, pois sabia, por sua fé que a salvação não se dava pelo físico. Duas mãos em chagas lhe são estendidas, ele as agarra fervorosamente. Sua fé dava a certeza que em poucas horas estaria dormindo no colo do Pai.
     O garoto postado na porta do fundo da igreja, com um AR-15, caminhou até o padre, nervoso, olhou em todas as direções, perscrutou todos os cantos em busca de algum alvo móvel.
     A arma na mão direita do policial ainda fumegava após os disparos dados em direção ao fundo da igreja, com a mão esquerda ele ligou a lanterna e a apontou em todas as direções.
     O garoto se escondeu atrás do altar ao ver movimentos de feixes de luz e apontou seu AR-15 na direção do foco de luz.
     A luz em forma de uma pequena auréola surgindo na frente do noivo fez com que ele imaginasse que sua noiva voltou para buscá-lo e levá-lo lá aonde o sol se esconde. Ele foi em direção à luz estancando o sangramento na barriga com um das mãos.

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quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Aonde o sol se esconde - 2ª Parte

     Qual de nós nunca buscou a felicidade, qual de nós não a encontrou em uma barra de chocolate; em um perfume adocicado; no cheiro de terra molhada após a chuva, em uma tarde de verão; em um bom livro; ou então, nos olhos de quem se enamora?  
     Os cabelos cacheados lhe caíam sobre os ombros, emoldurando o rosto arredondado; seus olhos amendoados, cor de mel, abrilhantavam mais ainda o seu sorriso brejeiro. Fosse inverno, fosse verão, sempre de vestido, destoando das outras mulheres que preferiam a praticidade do jeans e camisetas, as masculinizando, ela, elegantemente, subindo o morro, passou com costas e colo à mostra, e se fez percebida pelo seu vasto sorriso marfim; a pele ébano e sedosa exalava o aroma de lavanda. Enfeitiçado por sua beleza, ele não lha disse uma única palavra com receio de parecer vulgar, contudo, era a timidez que colocava freios em sua língua. Daquele dia em diante ele viu que a beleza era negra e perfumada.
     Livro em mãos, aberto, fingindo ler, sentado no primeiro degrau da escadaria que conduzia do morro ao asfalto, ele percebeu ela vindo em sua direção, quase roçando os joelhos um no outro como se estivesse na passarela, desfilando. Ela, assim que colocou o pé esquerdo no segundo degrau, resolveu voltar; dobrando os joelhos em sentindo contrário de onde ele estava, ela de cócoras, abaixou um pouco a cabeça para ler o título do livro, e lho disse, poesias? Siiiii...im, gaguejou. Jogando os cabelos para trás, ela mostrou toda a exuberância exótica do seu rosto, e, rindo, voltou a descer a escadaria. Desprendendo dos freios que prendiam a sua língua, ou seja, a sua timidez, ele, quando ela estava com o pé direito no quarto degrau, a chamou. Sem titubeios ou gaguejos, ele lha perguntou aonde ela encontra a felicidade para estar sempre rindo. Ela lho disse que ele poderia achá-la em uma barra de chocolate, e fingindo ter uma em mãos, o ofereceu. Ou em um perfume adocicado, e com uma das mãos, ela jogou os cachos para o lado esquerdo, agachou e encostou o pescoço próximo ao seu rosto e pediu-lhe para senti-lo. Quem sabe no cheiro de terra molhado após a chuva das tardes de verão, e abriu os braços, jogou a sua cabeça para trás, fitou o céu, girou o corpo em volta de si como se estivesse sentindo gotas de chuva inundando o seu rosto. Quiçá em um bom livro, e tomando-lhe o livro recitou um poema de amor. Mas, provavelmente, nos olhos de quem se enamora, e, docemente, ela deixou os seus se perderem nos dele. Ele os encontrou, e, abraçando-a, lhe fez uma última pergunta. E se a perdemos, aonde poderemos encontrá-la, novamente? Ela riu risos soltos, estridentes, escutáveis por todo o morro, e lho disse. Lá aonde o sol se esconde. E onde fica? Aonde residem os mortos, disse seriamente, e depois se soltou em risos.
     Não houve a necessidade de eles dizerem uma única palavra para se entenderem. Silentes, os dois se olharam mutuamente, e seus olhos se encontraram; não houve, também, mais a necessidade da visão para se enxergarem, o amor faria isso. De olhos fechados, os seus lábios se encontraram. Cristo no alto do morro, de braços abertos, os abençoava.

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segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Aonde o sol se esconde - 1ª Parte


        A maldade é fruto da incapacidade humana de aceitar o outro. Qual de nós, em busca da felicidade, a alcançou fazendo o outro feliz? Qual de nós plantou a semente da alegria em um coração que não fosse o nosso?
     Ele não teve a oportunidade de fazê-la feliz, o suficiente. Agora, a felicidade residia aonde o sol se esconde; por mais que a procurasse, ele nunca a encontraria. A bala alojada em seu intestino não era impedimento para tanto, era preciso muito mais do que força física para se chegar lá. Tendo a morte como passaporte certo, ele estava tão próximo disso.
     Seus pais, sogro e sogra; tios, tias, cunhados e cunhadas; irmãs, irmãos, sobrinhos e sobrinhas; padrinhos, madrinhas, alguns amigos e amigas; o padre e alguns desconhecidos que estavam na igreja para assistir a celebração do seu casamento; e, finalmente, a sua noiva; todos mortos. Algumas pessoas se arrastavam sobre os corpos mortos caídos no chão; assustadas, sem conseguir desviar das poças de sangue, preocupavam-se em se desviar das balas que zuniam sobre os seus corpos. Fora da igreja, o cenário era de guerra; o Caveirão estava sendo crivado de balas; o morro, campo de batalha aonde inocentes ou não tinham um único destino, a morte, vivia mais um começo de noite, onde polícia e bandido não escolhia a quem abater. Houve um tempo que o morro sabia quem era o mocinho e quem era o bandido.
     Naquele momento não importava qual mão havia os matado, pois a sociedade não sabe mais dos seus heróis. Qual de nós, por menor que seja a atitude, por desprezo a dor do outro, ou por júbilo a esta mesma dor, também, não tem as mãos manchadas pelo sangue que são derramados, tanto no morro como no asfalto?
     A raiva não lhe permitiu as lágrimas. Seus olhos se moviam, intermitentes, em meio ao fumaceiro provocado pelo tiroteio, buscando alguma resposta plausível.
     Albert Pine dizia que o que fazemos para nós morre conosco, o que fazemos por outros e pelo mundo continua e é imortal. O que o homem faz, quando faz, só faz movido pela maldade, e é aí que ele mais se sobressai; a bondade é uma pequena sombra sobre a vasta luz que ilumina o seu caminho, e não importa se este caminho o leva ao morro ou ao asfalto, ao centro urbano ou a periferia, posto que a estrada em si não é boa ou ruim, mas sim quem sobre ela caminha.
     Seus olhos fixam na imagem de Cristo colocada atrás do altar da igreja, e, por alguns segundos, esperam, não a resposta para o que estava ocorrendo, mas o milagre da ressurreição, não de quem já estava morto, mas da bondade de quem vivo estava. Enfim, ele chora, Cristo estava morto, também.
     Platão um dia disse que perdoamos uma criança com medo do escuro, mas a grande tragédia da vida é o homem ter medo da luz. Um pequeno halo de luz se encaminhava em sua direção, vindo da entrada da igreja; ele não teve medo, dentro dele havia uma certeza de que era ela.

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sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Traição

   Eu não lhe tinha nenhuma comiseração, apesar de ela não estar sofrendo, a sua dramatização para uma dor que não lhe pertencia, provava que todos os seus sentimentos eram fingidos.
   Eu não lhe tinha nenhum amor, pois a sua amabilidade era para proveito próprio, interesseira, seus sentimentos eram frívolos, fútil, ela não fixava em ninguém.
   "Mas menino, quah! O amor é um sonho platônico, é para vocês escritores intuir nos leitores o que nem vocês mesmos acreditam. Diante da beleza do corpo físico, o amor é uma formiga assustada com a grandeza do elefante. Casa-se com uma bela mulher e deixa o tempo acumular sobre ela o seu peso, então, - ela tal qual uma aliá - vocês chegarão à conclusão que o amor é um delírio platônico".
   Assim diria o meu primo com a sua filosofia de botequim e com tanto acumulo de tempo que seria cansativo quantificar o seu peso, o mesmo poderia dizer de quem estava ouvindo-o.
   Eu não sei se foi um matemático ou físico que projetou a Itiê, pois as suas curvas eram milimetricamente perfeitas, no entanto, o acabamento foi poético, pois as partes de seu corpo eram um lindo soneto com rimas ricas e não era à toa que seu nome também fosse poético.
   Quando levei Itiê ao quarto, não percebi que estava entrando numa caverna. Quando a levei à cama, mesmo com minha prosa rimando com a sua poesia, eu não enriquecia o meu texto.
   Ao dizer-lhe que foi a primeira e última vez que íamos nos encontrarmos na horizontal, o seu choro era um drama fora do contexto. Aquela dor não lhe pertencia, nem a mim. Ao falar-me de amor, a caverna ecoou a minha risada ensurdecendo-nos. Tanto a dor quanto o amor pertencia ao meu primo. Por que eu não pensei nisso antes? Saí da caverna, mas a caverna não saiu de mim, ela me incutia a minha traição, o meu erro.
   A culpa não passa de uma bala que não matou, incrustada em nós sem poder ser retirada, ela nos lembra, ad infinitum, o nosso erro.
   Não tive coragem de esconder do meu primo a traição. Ao contá-lo, ele, simplesmente, colocou duas pedras de gelo em seu copo, não sei por que ele não pôs no meu, virou a garrafa de Red Label até derramar pelas bordas dos dois copos. Ele bebeu o seu uísque pausadamente e perdeu o seu olhar buscando um ponto para se apoiar, o meu uísque, eu virei de uma vez e senti a caverna sair de mim para eu me enfurnar nela.
   "Sabe primo, você não traiu a mim, mas aos seus princípios, a sua família. O amor, para nós, homens, é um sentimento aprisionado numa caverna sem luminosidade, dificilmente o enxergamos, porém, se uma luz refletir na caverna, veremos na sua parede a imagem perfeita do sentimento, assim, ao sairmos da caverna, cegamo-nos devido à luminosidade e nos perdemos tateando o superficial no outro para moldá-lo ao sentimento, contudo, a mesma luz iluminada na caverna se encontra no interior, na profundeza do outro, e, simplesmente, bastaria ligar o interruptor para voltarmos a enxergar o mesmo sentimento refletido na parede da caverna".
   Ele encheu novamente o seu copo, sem colocar as pedras de gelo, bebeu-o de uma só vez, suspirou, olhou nos meus olhos procurando comiseração, ou quem sabe amabilidade e, cego pelo uísque, não os achou, porém, eu os tinha. Então me disse com a calma dos monges, soletrando a frase:
   - Sai daqui!
   Encheu novamente o copo, mas não o bebeu. Apoiou as mãos fechadas na mesa, fechou os olhos, abaixou e suspendeu a cabeça e ao mesmo tempo inspirou e expirou o ar irrespirável do ambiente, silenciou por um segundo, e, enfim, vociferou:
   - Antes que eu lhe mate e me arrependo pelo resto da minha vida, pois eu lhe admirava, principalmente a sua retidão. - E repetiu por cinco vezes a palavra retidão. Abaixou a cabeça, lágrimas compulsivas inundaram o copo de uísque.
   A sua dor era tão santa, aliás, o seu amor por mim e pela Itiê era tão puro que eu duvidava quando ele dizia que o amor era um sonho platônico.
   Saí. Por mais luminosidade que houvesse na caverna, a imagem refletida na parede não era a minha. Eu me desconhecia.

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terça-feira, 13 de setembro de 2011

A rotina de Marina


   Eu sempre desejei ser sábio. Busquei este objetivo lendo muito. Contudo a sapiência você realmente atinge ao travar conhecimento com várias pessoas. Tive a sorte de iniciar a minha carreira profissional no centro velho de São Paulo, em uma empresa com uma gama variada de pessoas situadas em todas as escalas da pirâmide social. Tinha todos os matizes do gênero sexual, pois havia muitos universitários, além disso, no centro velho habitava o baixo meretrício, e lá também situava a cracolândia. Portanto o que não me faltou foi escola para atingir a sapiência. Passados quinze anos, nutrindo deste caldeirão, saí sabendo, não obstante sem ser sábio.
   Agora, trabalhando em uma indústria no interior de São Paulo, as pessoas me têm como sábio, coisa que eu não sou. Se há alguma dúvida em qualquer assunto, elas vêm a mim, principalmente a bela Marina.
   Marina, ou Samarina, como ela gosta de ser chamada, não é apenas uma mulher, mas uma obra de arte, enquanto algumas mulheres necessitam de milímetros de silicone para se significarem como tal, ela não. Samarina nasceu com seus traços geométricos bem definidos, simétricos, sem nada em excesso, sem nada a faltar. Não havia um homem que não se sentisse atraído por ela, contudo, a sua conduta reta não dava brecha para que alguém ousasse uma conquista. Samarina tinha este defeito, além de reta, era bem casada.
    Quando em uma bela tarde de sexta, após o expediente, tomando uns chopes, ela me confidenciou que seu casamento havia caído na rotina, eu me perguntei como um homem com um pedaço de mulher dessas poderia deixar acontecer isso. Mas ao mesmo tempo me perguntei se a vida em si já não era rotineira. Expliquei isso para ela, mas ela só tinha olhos para a rotina do casamento e me pedia ajuda. Até onde a minha parca sabedoria iria chafurdar para ajudar neste assunto de difícil solução, eu não sabia. Enfim me veio a ideia de lhe dar o endereço da melhor loja de sex shop da região de Santo Amaro.
     Foi uma semana de sorrisos no rosto de Samarina, ela havia encontrado o nirvana. Mas, infelizmente, houve outras semanas e Samarina voltou com suas queixas, agora habitual, sobre a rotina no casamento. Ela me agradeceu pelo endereço e que havia feito bom uso das algemas... Pedi para ela não entra em detalhes senão... Ela continuou e quando me disse o que fizera com as velas perfumadas, eu saí dali, afinal, mesmo ela me considerando sábio, eu sou, antes de qualquer nomeação, humano.
     E houve outra semana, afinal, os dias seguem, rotineiramente, e Samarina voltou a sorrir. Perguntei qual o motivo, e quando ela me disse, eu fiquei estupefato. A saber, com suas próprias palavras:
   - Troca de casal, Eder.
   Perguntei a ela se ele, no caso o outro, havia quebrado a rotina no casamento, ela me saiu com essa:
   - Tolo Eder, agora percebo que você não é tão sábio. Quanto a ele, você deve perguntar ao meu marido, porque ela, Eder, ah, ela!
   E terminou assim, com exclamações pululando dos seus sorridentes olhos. É, eu tenho muito que aprender.

* A crônica nada tem a ver com a minha amiga Samarina.

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sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Memorias do meu jardim

"A distinção entre passado, presente e futuro não passa de uma firme e persistente ilusão" - Albert Einstein.

   A impressão, ou seja, a percepção física do passado se dá através da filmagem ou fotografia dos acontecimentos, e também pelo que fica gravado em nossa memória. É somente dessa maneira que o passado se significa, porém, se não houvesse luz não teríamos como contar o tempo, ele seria imperceptível.
   Nossa residência na Bahia ia de uma rua a outra. Numa rua ficava a moradia, o nosso lar; na outra rua, paralela, ficava o comércio, a padaria, e entre elas um florido corredor de ligação. Madrugada, o meu pai levantava do seu quarto, silenciosamente, atravessava o corredor e chegava à padaria para fazer o pão. Eu, ao mesmo tempo, pés após pés, ia atrás dele - então, se fazia a luz -, ele me pegava no colo, colocava-me na rede armada na padaria e eu deixava meus olhos percorrer as gotas de suor escorrendo pelo seu corpo antes de me perder em sono recheado de sonhos. Eu tinha quatro anos, essa é a primeira imagem da minha vida.
   Morando em São Paulo, casado, a minha filha, minha Rosa, florindo aos quatro anos, me perguntou, ao ver um negro passar em nossa rua, o porquê dele ser "preto". Expliquei o motivo e disse que nós também éramos negros. Ela finalizou: "Pai, eu não sou "preta", eu sou é rosa. A primeira imagem que eu tenho dela não é essa. Lembro como se estivesse acontecendo hoje, o chumaço preto de seus cabelos querendo brotar da sua mãe – então, se fez a luz – e o médico puxando-a para a vida a deu para ser levada à enfermagem para a limpeza. Uma cena espantável, porém, divina.
   Domingo cedo, assistindo a corrida de fórmula um, o meu filho, meu pequeno Cravo, aos quatro anos, subiu no sofá e sussurrou, como sempre faz, nos meus ouvidos: “Pai, posso assistir com você?”. Seus sussurros devem conter algum pó de pirlimpimpim, pois nunca consigo dizer não para ele. No entanto a primeira imagem que eu tenho dele não é essa. Lembro como se estivesse acontecendo agora, ele preso na incubadora da UTI pré-natal, talmente a semente que ainda necessitava do chão para brotar. Após quinze dias se fez luz, e, ele, tal qual o botão de cravo que abre as suas pétalas para se significar como flor, abriu os seus olhos à vida. Uma cena espantável, porém, divina.
   Neste mesmo domingo, minha Rosa, hoje com dez anos, conversando com sua mãe, a minha Flor de Liz, girou nos calcanhares, e, como se o giro avançasse o filme, eu a vi mulher. Confesso que isso me abalou, então a chamei e ao abraçá-la chorei. Surpresa, ela quis saber o motivo das lágrimas. Sem meias palavras lhe disse que a vislumbrei como uma mocinha. Entre risos, ela me disse que eu era um pai estranho, pois chorava por ver a sua filha crescer. Ela permaneceu abraçada a mim como se quisesse me confortar. Eu tive que abrir os braços, e percebi que o perfume da Rosa não era mais infantil.
   A velocidade da fórmula um parecia acelerar o tempo, meu Cravo, grudado na televisão assistindo a corrida, não se levantou e nem sussurrou nos meus ouvidos: “Pai, eu não vou crescer”. Porém, o seu perfume permanecia infantil. 

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terça-feira, 6 de setembro de 2011

A tinta - Ensaios sobre o papel

   A tinta não sabia quanto tempo estava presa ali, mas no estado que estava, líquida, pouco lhe importava, afinal, o tempo não passa de uma obsessão humana, determinante para deixar as camadas do sofrimento sobrepostas. Ela era de alegria, por isso, liquida, poderia fluir sobre o tempo. Ela também, tampouco, se incomodava com o cheiro do ambiente. O que é o odor, quando a felicidade pode ser absorvida pelos outros sentidos, quando refletindo sobre ela, a beleza serena da escritora se transfigura em imagens idílicas, quando até mesmo no seu silêncio ela ouve a poesia se transmutando pelo seu sorriso, quando na tentativa de escrever, os dedos da escritora dão a sensação que flutua sob seda, ou, então, desesperada ao tentar escrever, passando o dedo na língua para folhear o caderno como quem buscasse uma palavra mágica que desse início ao texto perdida entre as folhas, por engano, a escritora leva o dedo ao tinteiro e a tinta sente o gosto âmbar de sua saliva percorrer por todo o tinteiro a significar toda ternura da artista que leva consigo um céu. E mesmo sendo só uma cor, o azul, a escritora ao escrever dava-lhe, pelas letras desenhadas no papel, todas as cores das asas duma borboleta e a tinta era acometido por uma metamorfose, pois as palavras, escrita pela escritora, usando-a, eram risos e choros no rosto de quem lia. Já valeria a pena ter existido só por este momento. Mas a escritora havia parado de usá-la. Ela estava ali, inerte, dentro do tinteiro, esperando que, a escritora, ao escrever, a usasse, assim a vida significaria por todos os sentidos. Ela seria sólida, então, o tempo se encarregaria de sobrepor sobre o papel o peso da idade, mas ela continuaria viva nas lembranças de quem a leu.
   O tempo é cruel em qualquer estado. Ao líquido, evapora-o, se houver massa contida nele, seca-a.
   Havia tempo que a pena não ia ao tinteiro, porém, o que ela não sabia é que bastaria a tinta sentir a pena tocá-la para a vida pulsando por fios invisíveis ser trazidos pelo toque suaves dos seus dedos aveludados e assim, novamente liquida solidificar no papel os significados da vida.   
   Ila pegou o tinteiro e percebeu que ele estava seco, não desistiu, pegou a pena, mergulhou-a no tinteiro e deitou a tinta no papel assim:
   "Deixei que o tinteiro secasse aberto por sobre a mesa e o azul líquido escorreu por sobre a folha e desenhou uma espécie de nuvem..."
  

Clique aqui e leia o texto que inspirou a crônica 

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sexta-feira, 2 de setembro de 2011

O lado escuro

   Ele buscava dentro de si um local para o refúgio, tentava se esconder do que se passava na sua mente. O medo não estava lá fora, mas em si mesmo, nos seus atos, se ele se deixasse levar pelo que estava aflorando no lado escuro de sua mente. Sentado na calçada, encolhido e recolhido em seus pensamentos, com as mãos apontadas para o céu, tambolirando os dedos, ora uns contra os outros, ora contra a própria cabeça, ele conversava consigo mesmo sem saber quem sairia vencedor nessa luta infrene de si contra si mesmo. Na própria calçada, rolou de um lado para o outro, esmurrando o ar tentando atingir o ser imaginário do lado escuro de sua mente que o insuflava a agir. Tateou o chão, perscrutando-o, em volta de si, olhou para cima e como se estivesse cercado de abelhas, espalmou o ar na tentativa de expulsar os insetos, porém, ele não sabia que eram os seus pensamentos que o estava aterrorizando. Em pé, não percebera as pessoas que passavam, seus olhos fixados em um ponto, como se estivessem olhando num espelho, enxergavam somente a si, e não tendo medo, rindo para si, disse, é isso mesmo. Andou alguns passos, aproximou-se da árvore no meio da praça, girou os olhos em volta e encontrou o que estava procurando. Retirou o saco da lixeira, revolveu o lixo e, enfim, encontrou um pedaço de sanduíche comido. Limpou-o na própria roupa encardida que usava e abocanhou-o com tanta voracidade que mordeu uns dos dedos da mão. Saciado com o mísero pão, virou-se para o lado e disse para o ser imaginário do lado escuro da sua mente:
   - Dessa vez eu te venci.
   Rindo, o outro lhe abraçou e lhe respondeu convicto:
   - Hoje, sim. Porém, amanhã, quando não achar o alimento, você o roubara. É da nossa natureza o crime.

   Ele adormeceu, sentiu uma luz aproximando, viu um anjo pegá-lo pelo braço e levá-lo. Freou ao percebe que o ser imaginário do lado escuro da sua mente não os acompanhava. O anjo explicou que para aonde estavam indo só entrava pessoas dotadas de luz, a escuridão ficava do lado de fora, por isso seria inútil levá-lo.

   A noite estava escura, as nuvens vestiam a lua de trevas, a rua pincelada de cinza enegrecia o ambiente, as lâmpadas no postes eram um ponto perdido no ar, destoavam no cenário plúmbeo, pois não iluminavam. No meio da praça, deitado próximo da árvore, ele, com um sorriso iluminado no rosto devido ao sonho, não percebeu quando a moto aproximou jogando sobre si a luz do farol. Duas pessoas vestidas de preto com um capacete na mesma tonalidade retiraram de suas mochilas pretas um frasco, jogou o conteúdo líquido sobre ele, acendeu um cigarro, tragou-o esbaforindo a fumaça no ar e com os dedos arremessou-o sobre ele. Aceleraram a moto, fez um cavalo de pau, empinou-a e saiu em disparada dando gargalhadas.  Escuros, sumiram no meio da escuridão noturna.
   Por alguns instantes a praça se iluminou, mas assim que as labaredas cessaram, voltou à escuridão de antes. Ventos revoltos levaram as cinzas do corpo carbonizado, indelével, no chão, a marca escura do que ali ocorrerá.

   O sol rompia no horizonte iluminando o dia, algumas pessoas saíam de suas casas deixando para trás o amor ao próximo, iam escuras...

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