Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

domingo, 25 de outubro de 2009

Urbe

O maravilhamento provocado pelas luzes artificiais, acabando com qualquer possibilidade de escuridão, o fez pensar que na urbe a probabilidade de felicidade não seria abstrata. Diferentemente do sertão, tendo o sol, sempiterno, como uma das causas concretizadora da infelicidade, acinzentando tanto a cidade como a caatinga, não dando ao sertanejo a oportunidade da semeadura, na urbe ele faria a diferença, a felicidade seria concreta. Claro como o dia, a noite o fez sonhar com dias melhores.
O concreto dos edifícios pintados com cores neutras, iluminados por luzes artificiais, com tonalidades diferentes, invadia os seus olhos de tal forma que onde quer que ele ponha as vistas tinha a impressão que na urbe a mão benéfica de Deus era mais presente do que no sertão. A inocência cabocla não o permite perceber que na urbe a mão humana se fazia mais presente. Ele ainda teria tempo de saber o quanto maléfica ela é.
Acostumado com os sons dos rouxinóis, canários, bem-te-vis e sabiás, o silêncio noturno da urbe o perturbava. Na sua crença cabocla, ele via a quietude como mau presságio.
O bloqueio da rua aonde ele se encontrava e das adjacentes, provocado por um festival musical nas casas noturnas da região, interrompia o fluxo dos carros. Alguns noctívagos perambulavam pelas ruas em busca de algo que preenchesse o seu vazio, como todo solitário, eles traziam consigo o silêncio imutável.
O som do helicóptero no céu alumínio quebrou a monotonia silente, provavelmente ele estaria levando algum artista, pois a rua já se achava movimentada com o término de um dos vários shows previstos. A balbúrdia era selvagem, garrafas de cervejas se espatifavam pelo asfalto, gás lacrimogêneo zunia no ar jogado pela polícia na tentativa de acalmar os ânimos; alheio a tudo isso, ele sem entender o porquê da rua em um silêncio símile a morte, do nada, assemelhava ao próprio inferno. A sua matutice cabocla o incutia que ali havia o dedo do Diabo, o que ele não sabia era que as mazelas humanas tinham as digitais dos dedos da mão humana.
Ele levou as mãos ao rosto para se proteger de uma garrafa lançada em sua direção por uma das tribos que se digladiava, perdido em uma batalha que não era sua, ele, confundido como participante de uma das tribos, foi levado ao chão por um golpe de cassetete. Ao acordar minutos depois, balas zuniam sobre a sua cabeça, ele não ficou ali para saber se eram de borrachas ou não.
O cansaço tomou conta do seu corpo, no primeiro dia na urbe, ele maravilhou-se com o que poderia ser o paraíso, a felicidade bíblica, e sentiu a tristeza apocalíptica, desrazoada, construindo infernos.
A força utilizada pelo balconista para abrir a portinhola do balcão deu a medida exata de quão forte era as suas mãos, a brutalidade de sua alma ele sentiu quando um soco atingiu na boca. Este foi o preço pago pela garrafa com água mineral oferecida pelo balconista quando ele havia pedido um copo com água, sedento, ele se agarrou a garrafa tanto quanto o sertanejo se agarra ao chão umedecido pelas chuvas na esperança da germinação, e a bebeu em um só gole. Na sua brejeirice cabocla, ele não sabia que teria de pagar pela garrafa com água. O preço foi muito alto, todos os dentes da frente, superiores e inferiores, quebrados.
O céu de alumínio povoado por pássaros metálicos, cujo canto é o barulho do motor que os sustenta no ar, sem as nuvens e suas formas poéticas, encoberto por uma lâmina acinzentada, despossuído de qualquer brilho, limpo de estrelas; a impermeabilidade do asfalto, frio, cinza, infértil e fosco; a indiferença, o individualismo, a impessoalidade de sua gente fez com que ele perdesse o maravilhamento pela urbe e com isso a possibilidade da felicidade. Com a boca ainda sangrando, metros distantes da padaria, cujo balconista o feriu, ele deitou na calçada e se cobriu com papelão achado na rua.
Pássaros metálicos congestionavam o céu de alumínio após o término dos shows levando os artistas para o aeroporto, no chão asfáltico os urbes se aglomeravam satisfeitos; o valor pago pela felicidade surtiu efeito, no rosto de todos havia um sorriso desmedido. Alguns se encaminhavam para casa com a felicidade que tinha, outros, com dinheiro o suficiente para comprar qualquer tipo de felicidade, urbi et orbi, se encaminhavam algures; outros tantos, ali mesmo ficavam a espera do amanhecer como se quisessem esticar ao máximo a duração da felicidade comprada; porém uns e outros, a minoria, caminhavam pelo fio tênue que separa o bem do mal, uns caiam do lado certo, outros nem tanto.
“Vamos porra, dê logo o litro de álcool”. “Espera caralho”. “Puta que pariu, cadê o isqueiro”. “Este jornal não, ele é importante, não pode ser queimado, vamos usá-lo no trabalho escolar”. “Então... merda, queimei o dedo... passa uma folha de caderno”.
Um litro de álcool foi jogado sobre o papelão, ele se mexeu, mas não acordou; com outro litro de álcool eles encharcaram um saco com areia e fizeram um filete do corpo até o carro, atearam fogo na folha de caderno e jogaram sobre o filete de areia. A chama andou aceleradamente sobre o filete de areia até atingir o corpo, o fogo se propagou rapidamente. A escuridão da madrugada foi tomada pelas labaredas iluminando o carro que saiu em disparada, cantando pneus. Ao dar a volta fazendo cavalo de pau na praça ao lado da padaria, os rostos dos adolescentes eram iluminados pelas chamas que consumia o corpo, a felicidade estampada em seus olhos era indescritível, a satisfação era indizível.
As chamas tomavam conta do seu corpo lhe tirando o fogo da vida, ao acordar pensou que as chamas eram a luz do sol, e no último ato de vida, como se estivesse no sertão, intuitivamente, abriu as mãos como se nelas houvesse sementes e as jogou no chão, semeando-o. A impermeabilidade do asfalto, a frieza concreta da urbe, a incontrolável pressa desvairada dos urbes não permitia a semeadura.
Quando amanheceu seu corpo era cinza, a acinzentada urbe havia acordada e os urbes apressadamente, com o olhar adiante, sem erguer ou abaixar a cabeça, se encarregaram de apagar qualquer vestígio que houvesse dele sobre o chão asfáltico.

11 comentários:

  1. Você se supera a cada dia, amigo.
    Abraços.

    ResponderExcluir
  2. Eder;

    Possivelmente, foi o conto mais dramático que eu li escrito por si.

    Eu lendo, imagino o seu estado de espírito para escrever crónicas dramáticas... O que será que no momento de passar a história para o papel o autor terá à sua volta..., o cenário, o sujeito principal, ou o desenvolvimento da crónica?!...

    E uma pergunta, talvez um pouco pertinente;... em que momento o autor descobre como terminará e a história, e como o fará?.

    Eder, mas que grande escritor, você é!!!

    Um abraço, amigo Eder,
    Osvaldo

    ResponderExcluir
  3. "Claro como o dia, a noite o fez sonhar com dias melhores."
    Confesso que eu também estou esperando esses dias chegarem bem rápido!
    É triste a realidade que vemos em nosso dia-a-dia.

    Admiro a forma como nos prende aos seus escritos.

    Deixo meu abraço carinhoso

    ResponderExcluir
  4. Vou incentivar sim, Eder.
    Pode deixar.

    Continuemos...

    ResponderExcluir
  5. "A impermeabilidade do asfalto, a frieza concreta da urbe, a incontrolável pressa desvairada dos urbes não permitia a semeadura."

    Urbe - um lindo escrito e me fascina as tuas idéias.

    Concordo com o Osvaldo: Você é um grande escritor. Que bom, fico feliz com você.
    Beijo

    ResponderExcluir
  6. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  7. Éder..que é isso menino? to maravilhada com o texto...com os textos!...exímio no que faz!

    Reverêncio aos teus escritos...no começo eram tão simples, hoje ~estão muitos mais estruturados, esteticamente perfeitos!

    Não sou boa escritora, mas posso me afirmar excelente observadora...rs

    Adorei mesmo, de coração..sensibilidade pura...e aí do lado ...que familia linda...tem muita inspiração perto, por isso o talento surge como luz..

    Bjo pra vc, Feliz Feriado pra todos aí!e obrigada pela visita sempre, teus curtos comentários, dão longas respostas...:)

    ResponderExcluir
  8. ___________________________________

    Maravilhosa narrativa, Eder! As outras pessoas que comentaram, já disseram tudo...Você é um ótimo escritor!

    O mais triste é saber que o seu conto, é verídico, não?


    Beijos de luz e o meu especial carinho!!!

    __________________________________

    ResponderExcluir
  9. Pessoa querida e talentosa! Estive aqui essa semana, te lendo, mas com o dia a dia corrido, deixei pra reler com calma esse finde. Que bom que concluiu um dos textos, te ler é sempre muito enriquecedor, valioso, hora dá ao imaginário beleza, surpresa, dor, hora reconstrói tanta coisa dentro! E a cada vez fica melhor! Sou tua fã, menino! Beijo no coração. Bom fim de semana! Bom descanso ;-)

    ResponderExcluir
  10. Amigo,
    Estou começando um novo projeto de Blog que acredito possa ser mais profissional. Quero colocar o mundo dentro dele. O JORNAL AFOGANDO O GANSO, continua com as matérias críticas, debochadas, sarcásticas e tal.
    Agora eu apresento o "AFOGANDO O GANSO PRESS"/ http://jafogandooganso.wordpress.com/
    Será a oportunidade de mostrar as coisas lúdicas, que não estamos prestando mais atenção. Aquele lugar belíssimo, O bairro que tem história, a rua, o bar espetacular, o motel extimulante, a praça boa de sentar, os lugares de bons shows, a roda de samba, o chorinho, o fado e a f..., ah essa deixa pra lá, rsrsrsrs!

    Depois se achegue, viu moço?
    Abraços.

    ResponderExcluir
  11. Olá, amigo..
    Leia no AFOGANDO O GANSO ENTERTAINMENT http://jafogandooganso.wordpress.com/
    "EM ABRICÓ TODA NUDEZ SERÁ PERDOADA"
    BJS.

    ResponderExcluir