Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

A casa

"Estou lhe esperando. Precisamos pôr fim a nossa história. Me encontre na casa".
   Quando ele leu o bilhete, ficou receoso de ir, contudo, precisava acertar as contas com o passado.

   A ventania tinha levantado algumas telhas, porém, como se elas tivessem apego pela casa, sustiveram-se no ar o tempo suficiente para o vendaval passar e voltaram para sua posição habitual. Ouviram-se murmúrios, pois ao assentarem nas ripas, as telhas soltaram suspiros de alívio. O tempo havia sobreposto nas telhas camadas lodacentas, impedindo que elas expressassem o seu sofrimento devido o abandono. 
   A copa da árvore em frente da casa, outrora frondosa e florida, estava carregada de solidão. As suas folhas amarelas, não se sabe se pelo tempo ou pelas agruras, trincavam-se e ao se esfacelar, perdiam-se no pó do esquecimento.
   Uma das janelas, presa por apenas um dos pinos da dobradiça, veio ao chão assim que uma rajada mais forte de vento abateu sobre ela, dando passagem ao odor guardado de sofrimento aprisionado dentro da casa. O alívio pela soltura do sofrimento não foi percebido pela casa, pois a permanência da dor era sentida nas suas paredes, intrincada no reboco.
   O vento, cada vez mais forte, desnudava a árvore levando as suas folhas para dentro da casa. As folhas se alojavam aonde as suas forças as conduziam, forrando o chão da casa com um tapete de desilusão. Lá fora, os galhos da árvore se contorciam, movidos pela ventania, implorando um abraço de despedida; desolados, debateram-se no ar até serem vergados ao chão. Sem a seiva da vida a árvore se foi sem deixar um fruto.
   A pintura ocre da parede da casa havia sido tomada pelo mofo, dando-a a aparência de uma tela abstrata pintada por um artista enlouquecido pelo ópio. Das suas rachaduras saíam limbos de tristezas, como se a parede fosse uma tela interativa, cujo artista, o tempo, a moldava de acordo com o temperamento da própria casa. O quadro não era um dos melhores. E foi assim que ele encontrou a casa quando chegou.
   Ele, trazido pelo bilhete, estava sendo empurrado pelas lembranças. Do alto do morro, viu a casa sem uma das janelas e a árvore no chão. Esse cenário, se fosse há anos atrás, o levaria as lágrimas, contudo, o tempo encarregou-se de apagar qualquer resquício de sofrimento, deixando apenas as lembranças do que de bom ali aconteceu. Se voltou, foi para entender o porquê de não ter dado certo e para acertar as contas com o passado.
   Ao entrar na casa, ele ouviu ruídos vindos dos seus pés, olhou para baixo e percebeu que estava pisando em folhas secas.
   O tempo acelerou no sentido anti-horário.
   Ela se tornava mais bela quando tinha uma atividade. Encostado no batente da porta, tomando um cappuccino, ele lhe sorriu perguntando que muda ela estava plantando.
   - Cerejeira. Vai dar a casa um ar europeu e lúdico. - Disse isso arcando a cabeça para frente seguido de uma gargalhada frouxa. Sempre fazia isso quando estava feliz.
   - Europeu! Lúdico! Sei. - Ele compartilhou da felicidade dela, olhou para o horizonte e viu o sol rompendo. Ali mesmo fizeram amor.
   - Quando estivermos estabilizados, você planta uma semente aqui. - Ela disse isso levando a mão dele a sua barriga. Com o sol estufando a abóboda do céu, ele permaneceu com a sua mão na barriga dela imaginando-a céu.
   O estrondo da porta se debatendo, movida pela rajada de vento que não queria cessar, o trouxe de volta do passado. Assustado, ele se jogou no sofá. Este, precisando de um leve empurrão para desabar, foi ao chão e o levou, novamente, para o passado.
   Ao entrar a casa, às escuras, ele foi de encontro à quina do sofá. Ao mesmo tempo em que a dor se fez presente, audível com o seu grito, ela também se fez ao ligar o interruptor de luz. A iluminação o tornou visível aos olhos dela.
   - Acho que o amor para você se resume a trinta e seis metros quadrados...
   - Não entendi.
   - ...ou então, a um colchão de casal com dois travesseiros...
   - Não faça drama.
   - ...pois você só me trata bem no quarto, em cima da cama e quando quer sexo.
   - Você deve estar de TPM.
   - TPM? Seu desgraçado. São seis horas da manhã de sábado, você saiu de casa às seis horas da manhã de sexta e vem me dizer que tou com TPM. Toma o que lhe cabe neste quarto. A partir de hoje você dorme no sofá.
   Ele desviou do travesseiro arremessado por ela.
   - Eu não estava com nenhuma mulher. Estava bebendo com os meus amigos e perdi a noção do tempo.
   - Não estava com mulher. Em que diabo de mundo você vive? Quer enganar a quem? - Ela ameaçou tirar da bolsa a prova da traição dele, mas recuou. - Para você tudo gira em torno do sexo, não existe amor, companheirismo, aliançar uma ao outro...
   - Isso não é amor, é prisão.
   - Prisão? É isso que você pensa. Sinta-se livre. Acabou.
   - Você diz isso porque está nervosa, amanhã lhe pego na casa de sua mãe.
   - Dessa vez não sou eu que vou sair.
É você e não tem volta. - Ela bateu a porta do quarto, trancando-a. Encostou-se a ela e chorou abraçada a foto dele nu com outra mulher. Não teve coragem de mostrá-la. A traição seria paga sem ele saber.
   Ele bateu repetidas vezes na porta, mas ela não abriu. Conhecia-lhe muito bem para saber que o casamento havia terminado. Sentou no sofá abraçando o travesseiro na tentativa de preencher o vazio intrínseco. Olhou para parede como se buscasse uma história de amor que ambos se prometeram. Lembrou que ela quis a cor ocre para as paredes. Cor de casa, disse um dia, arcando a cabeça para frente e gargalhando.
   A mancha de mofo na parede apagava a sua história de amor, se houve uma, escrita com ela. O limbo saindo de suas rachaduras era como tinta borrada sobre as linhas do papel, ininteligível. Compreendendo que estava no tempo presente, ele se levantou e encaminhou ao quarto com uma ilusão, infantil até, de que ao abrir a porta, ela o estaria esperando no quarto. Mais do que uma ilusão, ele tinha era um desejo, por isso levava consigo o travesseiro. Sentou na cama alisando o lençol, desejando que ela estivesse sobre ele e sob a sua mão a pele aveludada dela. Em devaneios, jogou-se sobre a cama levantando a poeira do abandono. Uma névoa acinzentada e densa encobriu o quarto. Envolto no torpor das lembranças, delirando, ele a viu surgir vestida somente de alegria e desnuda das camadas do tempo. Abraçado a ela, ele a teve mais uma vez. Suas peles tinham a mesma temperatura, a mesma febre dos amantes. Exsudado, após o frenesi sexual, ele percebeu que o pó havia impregnado em sua pele. Sentindo-se aprisionado, ele esfregou as mãos sobre o corpo, porém, a massa formada do pó com o seu suor não saía. Correu, desesperado, ao banheiro e com esponja, água e sabão esfregou-se. Foi inútil, a massa estava imantada ao seu corpo.
   Ele não percebeu que o tempo avançara, trazendo consigo vendavais, trovoadas intensas, prenúncio que as nuvens iriam desabar.
   A casa, percebendo o movimento da natureza, o prendeu no quarto sem precisar de muitos esforços, pois ele já estava preso aos seus delírios sexuais.
   A casa se desprendeu das amarras que a prendia ao chão, o sofrimento por ele ter falhado ao não transformá-la em um lar, e se deu a tempestade sem arrependimento.
   O telhado se desfez em pó após as telhas se debaterem movidas pelo vendaval. Vários estrondos em intervalos pequenos ecoaram no ar. Um dos pilares não aguentou a força do vento e trincou derrubando uma das paredes. Pequenos tremores de terra desestruturaram o alicerce levando ao chão as outras paredes. O último estrondo rompeu entre os destroços, uma nuvem de pó se elevou ao céu, não havia nada em pé. A casa se foi aliviada, ele nem tanto.
   Passado alguns minutos, a poeira ainda baixando, ela surgiu, saída de uma van, trazendo em uma das mãos a foto dele com outra mulher, nus; e na outra mão o controle remoto que acionou o dispositivo das bombas colocadas estrategicamente na casa. Acendeu um cigarro, tocou fogo na foto, jogou-a sobre os escombros e, ao vê-la transformar em cinzas, deu uma gargalhada estridente arcando a cabeça para frente.
   Finalmente as nuvens desabaram abaixando a poeira que teimava em permanecer. Ela ergueu a cabeça sentindo a chuva banhar o seu rosto, vingada, estava de alma lavada.


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10 comentários:

  1. Nossa, suspense do começo ao fim. A loucura que algumas pessoas são capazes de cometer, sem pensar em simplesmente seguir em frente e não olhar para trás... Uma aula de escrita, como sempre, mano! E material para refletir o resto da tarde! Um beijo, Deia.

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  2. Sou Myra sempre Anonima!
    este teu texto é mais que bellissssimo! é formidavel,me chamou a atençao entre outras frases, esta:
    ":::ele a viu surgir vestida somente de alegria e desnuda das camadas do tempo...."
    como gostaria de poder escrever assim..
    um gde beijo meu querido Eder

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  3. Dando uma olhada por aqui. Voltarei com mais tempo. abraço!

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  4. PROCURO POR MINHA CASA TODOS OS DIAS...


    Passando para te visitar e lembrar que o blog agora está de cara nova, além de mim, Adriana, temos mais cincos autores em companheirismo no blog para escrevermos a vocês, é só procurar pelo nome ou foto das postagens do dia.
    Lembrando que o sorteio de setembro, serão 16 livros, que já estão disponíveis no blog em "Parceiros" para vocês irem conhecendo o conteúdo.
    Um beijo grande, e uma ótima semana, meu post de hoje está neste link, http://drisph.blogspot.com/2011/08/fechado-as-vezes-como-um-leque-ninguem.html#comments
    Adriana

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  5. ...os bens materiais podemos
    jogar fora de qqr jeito.

    mas os danos emocionais não há
    fogueira que os extermine, até
    que surja um outro amor provando
    ser verdadeiro.

    engraçado como o amor e ódio
    caminham no mesmo fio.

    você é fantástico com as palavras!

    bjs, alma linda!

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  6. Tudo cobra seu preço. Todos os atos ecoam um dia.

    A natureza vingativa feminina, existe e é um monstro a ser domado, sempre.

    Ótimo conto, Eder.

    Beijos!

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  7. Não adianta tentar acertar as contas com o passado ele vai vencer sempre por isso se chama passado já passou e se passou não volta mais um conto profundo, gostoso poder caminhar por aqui estive aqui faz um tempinho mas não consegui dizer nem um oi por causa do "Bug do blogspot"
    UM ABRAÇÃO MEU AMIGO.

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  8. Acertar conta com o passado não é facil o passado sempre vence afinal ele é o passado.
    Mano tempo atras tentei comentar aqui mas não consegui por causa do Bug do Blogspot hoje de novo deu pau vamos ver se agora vai Curto muito seus escritos e adoro caminhar por aqui ando é super enrolado por aqui em tudo mas vamos levando um abraço e tudo de bom em tudo e sempre.

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  9. Oi Eder, realmente concordo com a leitora Myra. Essa frase ":::ele a viu surgir vestida somente de alegria e desnuda das camadas do tempo...." é poesia pura, da mais alta inspiração...Vale a pena estar aqui, sempre que posso. Um grande beijo meu querido.

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  10. O ser humano e as muitas formas de lidar com os sentimentos, o de amar, o de se entregar, o de sofrer...

    Ao falar da casa, me trouxe lembranças de pessoas, com seus sentimentos.

    beijo

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