Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

sábado, 5 de setembro de 2009

Fronteira final

Ao entrar na casa a encontrei sentada de costas para mim com a bíblia na mão balbuciando, “Ore, ele vai chegar”. Gotas ininterruptas jorravam dos meus dedos, eu já havia perdido o dedo mínimo, o médio estava pela metade se transformando em líquido, logo eu seria uma poça de água se infiltrando na terra, desapareceria sem deixar um túmulo, como todos os outros. Meu tempo havia acabado.
24 HORAS ANTES.
Seu corpo leitoso, nu, sobre a cama ganhava a forma do número perfeito, curvas sem desalinho, sem erro de geometria, com exatidão matemática, banhadas pelos raios dourados matinais do sol lhe dava uma aura divina. Ela descansava, eu, na sala, após uma noite em claro gozando o prazer carnal, fumava assistindo tv.
“O governo alerta a população para uma doença desconhecida...
Eu dei pouca importância ao noticiário, Voltei os meus olhos em direção ao quarto para, mais uma vez, admirar as curvas do seu corpo, mas ela não se encontrava na cama. Deduzi que ela estava na cozinha, “Quero o meu café bem forte, preciso me despertar, afinal paguei bem caro pela tua companhia”. Não obtive resposta.
... chamada peste negra devido ter dizimado toda a população africana, e...
Fui ao banheiro, nem um sinal dela.
... cientificamente denominada H2O SANGUÍNEO, a doença ataca os glóbulos vermelhos e brancos, ao mesmo tempo...
Entrei na cozinha. Estava como a deixamos noite passada.
... o sangue torna-se aquoso. Depois de infectado, após vinte e quatro horas, o corpo humano transformar-se em água...
A última frase do locutor amplificou de tal forma que ao chegar aos meus ouvidos não teve como não prestar atenção. Preso ao que o locutor acabara de falar, mas com uma pressa de ir ao quarto para dizimar as dúvidas, eu, paralisado pelo medo, percebi gotas de água escorrendo pela borda do lençol. Não restavam dúvidas, ela tinha aguada.
... o governo alerta que o contágio se dá através da relação sexual, e não há nenhuma barreira que impeça o vírus, nem a camisinha. O governo enfatiza que não haja nenhum contato com africanos ou descendentes. Voltaremos com mais notícias assim que o governo souber mais sobre a síndrome H2O SANGUÍNEA, a peste negra”
Não haveria medo que me deixaria plantado naquela sala, corri até o quarto e revirei a bolsa dela, minhas suspeitas se confirmaram, ela era sul-africana. Eu tive que me conter para não desesperar. Minha mãe sempre me disse, “Na ora do desespero, ore.”
As pessoas de cor começaram a ser assassinadas brutalmente quando a imprensa noticiou que o vírus não era transmitido apenas pela via sexual, mas também pela via oral por africanos e descendentes de africanos a não africanos. Não demorou muito, independentemente da cor, para que cada um visse o outro como africano.
Havia passado oito horas, restava-me mais dezesseis horas de vida. As horas iam se passando e as palavras da minha mãe se tornavam audíveis, “Ore, a salvação está na bíblia.” Ouço barulho de um objeto caindo no chão. “Mãe?” Não haveria possibilidade de ser ela, estava morta havia muito tempo. O objeto no chão era a bíblia, e ela caiu aberta no evangelho segundo São Matheus capítulo vinte e seis, e como por milagre uma luz advinda do céu iluminava os versículos vinte e seis, vinte e sete, vinte e oito e vinte e nove. A desconsidero e a coloco de volta na mesa. “Ore, meu filho, a salvação está na bíblia”. Novamente a bíblia cai aberta no chão, mas agora no evangelho segundo São Marcos capitulo catorze. Uma candeia que até aquele momento servia apenas como peça de decoração igniza-se, trazendo a lume os versículos vinte e dois, vinte três, vinte e quatro e vinte e cinco; ignoro a leitura por achar que estava delirando, não me dou ao trabalho de colocá-la na mesa, novamente.
O silêncio, lá fora, era perceptível. Pelo vidro da janela via-se que metade das pessoas estava liquidada, morta, a outra metade havia desaparecida, por entre a terra, em estado líquido. Não me senti bem em abrir a janela por saber que estava sozinho, a fechei virando de costas. Um estrondo atrás de mim me joga no chão, a janela passa por sobre o meu corpo, espatifando na parede. A voz da minha mãe é trazida pelo vento, desesperada ela me pede, “Ore, a salvação está na bíblia”. O vento cada vez mais forte folheia a bíblia da esquerda para a direita, depois da direita para a esquerda, amiúde, arrancado sua folhas. Quando finalmente para de ventar, eu percebo que no apartamento somente havia eu, todos os objetos haviam sido levados pelo vento. Dou os primeiros passos para sair daquele ambiente aterrorizador sabendo que lá fora não seria diferente, quando tropeço em algum objeto no chão não percebido por mim, era o que sobrara da bíblia, nela havia somente o livro de São Mateus, o livro de São Marcos e a primeira epístola aos Coríntios capítulo onze, com destaque para os versículos vinte e três a vinte e nove, grafados com caneta marca texto. Meus olhos não passaram despercebidos por aquelas folhas, a li avidamente, quando terminei dei crédito as palavras da minha mãe, a salvação, realmente, estava na bíblia.
O ambiente fora do apartamento não era menos aterrorizador. Os carros incendiados, as portas arrombadas de estabelecimentos comerciais, as árvores arrancadas pelas raízes, as casas com suas fachadas destruídas e por todas as ruas, onde quer que eu olhasse, corpos se deteriorando davam a dimensão do quanto seria sofrível viver sozinho. Nunca me foi necessário outro ser humano, vivo, para a minha sobrevivência como estava sendo agora. Sozinho, as horas passavam diferente de como normalmente passam; a morte, a bela senhora do tempo, as controlavam, e dava a elas uma pressa descomunal. Meu fim estava próximo, eu tinha somente duas horas de vida e um ser humano, vivo, a encontrar, quem e aonde eu não sabia. O silêncio permanente tornava esta busca inglória.
O barulho do motor do carro ligado quebrava a monotonia agora presente. Após percorrer, em alta velocidade e em todas as direções, um longo percurso, encontro somente o silêncio como companheiro. Nunca a terra me foi uma ilha desabitada como estava sendo agora. Sigo por carro mais trinta minutos. Um campo rodeado por árvores é meu destino final, giro cento e sessenta graus e não encontro nenhum espécime animal vivo, eu era o último. Restava-me dez minutos e minhas mãos estavam suando, logo chegaria ao estado líquido. Sento-me debaixo de uma árvore e a brisa traz o cheiro de flores, ou então era a morte que estava chegando, adormeço. Sou acordado por uma ventania que me impulsiona a seguir adiante, meu dedo mínimo se desfazia em gotas, não tive mais coragem de olhar as horas.
Uma casinha simples com chaminé borrifando o ar de fumaça cheirando a sândalo, cercada de flores rodeadas de colibris e borboletas, árvores frutificas serpenteadas de pássaros preenchendo o ar com seus cantos melódicos davam a dimensão de quanto era consolador viver cercado por outro espécime, seja humana ou não. Senti-me no paraíso, não sei se levado pelas minhas próprias forças ou se pela ventania.
A grama aparada, recentemente, a altura do chão levava à porta de entrada da casa. Ao entrar a encontrei sentada de costas para mim com a bíblia na mão balbuciando, “Ore, ele vai chegar”. Gotas ininterruptas jorravam dos meus dedos, eu já havia perdido o dedo mínimo, o médio estava pela metade se transformando em líquido, logo eu seria uma poça de água se infiltrando na terra, desapareceria sem deixar um túmulo, como todos os outros. Meu tempo havia acabado.
Eu não sei se a minha visão tortuosa me permitiu interpretar corretamente o que estava escrito na bíblia, somente sei que não teria coragem de fazer o que tinha que ser feito, mormente se vai de encontro à sua crença, mas se eu quisesse ter uma chance de cura teria que agir. Não tive tempo.
Ouvi suas botas arrastarem pelo chão, eram pretas. Ela, com uma calça jeans bem alinhada, preta e um agasalho com capuz lhe cobrindo toda a cabeça, também preto, se encaminha em minha direção tirando peça por peça. Seu corpo é lívido, sua pele ao encostar-se à minha é tenra e quente, dos seus poros sinto exalar um calor infernal, mas ao me beijar seus lábios são gélidos, seu beijo tem sabor de morte, se não fosse ela a própria bela senhora do tempo. Envolvido por sua beleza não percebo que ela traz na mão um punhal. Somente percebo o punhal no ar quando ela levanta o braço. Procuro levar a mão direita ao rosto, mas não tinha mais mão, procuro pela mão esquerda e me desolo, não tinha mais braço esquerdo, uma poça de água está se formando em volta de nós. Ela me abraça e beija, novamente, meus lábios e diz, “Não tenha medo, ela me disse para orar e que você viria para cuidar dos escolhidos. Ela enfatizou, a salvação está na bíblia. Eu li e entendi a escritura sagrada, você veio para salvar a humanidade. Não se preocupe, a morte será suave, não haverá dor”.
Ela ergue o braço, novamente, com o punhal na mão e, automaticamente, eu fecho os olhos esperando o golpe final. Como, após alguns segundos, não sinto o golpe, eu abro os olhos e vejo gotas de sangue jorrando do seu pulso. Ela o enfia na minha boca dizendo, “Beba do meu sangue, ele é o teu alimento”, e em seguida, com o punhal, ela corta um pedaço do seu corpo, a carne, trêmula, ainda viva é empurrada para dentro da minha boca. “Coma, a minha carne é o teu alimento”. Animalescamente eu a deixei no osso. Desmaiei.
12 MESSES ANTES.
“Atenção, falta cinco segundos para ir ao ar. Um, dois, três, quatro, cinco. Vai Presidente, no ar”.
“Senhores e senhoras, o céu não é mais divino, não existe mais fronteira no espaço, posso afirmar que sabemos de onde viemos, atingimos, por assim dizer, a casa de Deus...
Atrás do Presidente um telão mostra imagens do avião espacial Infinity no espaço.
...Daqui a pouco veremos, no telão, o avião Infinity pousando em solo sul-africano, mais detalhes da missão será dada pelo diretor da agência espacial. Boa noite.”
TEMPO ATUAL, 25ª HORA.
Sou acordado por duas crianças, curiosas. Sólido, percebo meu corpo em estado perfeito, braço e mãos haviam regenerados. Pergunto as crianças os seus nomes, e elas em coro me respondem, “Adam, Eva, e você?”.
Deus, só Deus sabe a resposta.

12 comentários:

  1. ___________________________________


    Meu querido amigo... Passando para deixar um beijo e desejar um bom feriado!

    Não tenho estado muito na internet...Voltarei para ler seu texto com muita atenção!


    Beijos de luz e o meu carinho!!!

    _________________________________

    ResponderExcluir
  2. Menino do Eden... rs... haja imaginação! Para mim isso é humor negro! (Ah, uma boa pitada dele, com certeza!) Mas parecia mais um filme de terror - eu deixei de assistir filmes de terror no fim da adolescência (mas findou mesmo?), passei a ter medo deles! Filme pq vc sabe muito bem como abrir as imagens! Muuitos parabéns! Como sempre, prendeu a minha atenção do começo ao fim! Como vc usa bem isso, viu? Beijocas. Bom descansoooo! (E olha, só, amigo!, hoje tem sol :))

    ResponderExcluir
  3. OI.VISITANDO O BLOG DO DADO ENCONTREI O SEU E RESOLVI VISITAR.BEIJOS!!!!

    ResponderExcluir
  4. Eder,
    arrepiei-me até à espinha, cheguei a sentir frio!
    Como tu escreves bem!
    Parabéns!

    Um beijo.

    ResponderExcluir
  5. Olá Éder!
    Estar aqui e ler as suas palavras é uma aventura para a imaginação!

    Saudades daqui...ando numa correria que parece não ter fim!

    Mas impossível esquecer os amigos que tanto gostamos.

    m abraço carinhoso


    OBS: Na CBJE abriram novas inscrições!

    ResponderExcluir
  6. Eder!
    Que texto, menino! Quase virei água ao lê-lo. No final, ainda lanças uma boa cartada. Surpresa total. Você nos conduz às últimas consequências de sua imaginação fértil: Fronteira final!!

    Beijo
    Bom findi!

    ResponderExcluir
  7. Pataquerapiu´Eder, postei e estou aqui comentando para iniciar a longa caminhada nos blogs amigos, pode parecer brincadeira ou mentira o que vou dizer, mas, meu irmão mais idoso..rsrs...escreveu um conto parecido com este seu como forma de um exercício de sua faculdade de letras, tinha que inventar um conto e pelo que li muito parecido, confesso que te ler aqui hoje me arrepiou diante sua criatividade, esculpa não ter lido antes, foi por pura correria, e como o conto é dos grandes, prefiro esperar e ler como gostaria que as pessoas fizessem com os meus...rsrs...não gosto de comentar sem ler. Lembrei também de um pedaço de meu poema "Eu, água...rsrs
    "Para depois escapar por entre os dedos...e cair como gotas nas entranhas da terra"
    No final imaginei que o presidente estaria falando meses atras para que as pessoas não se preocupassem com a doença, pois estava tudo sobre controle, assim como a gripe suína...ficção e realidde...rsrs
    Parabéns Eder, já encomendou o livro na CBJE?
    Um abraço na alma escritora..

    ResponderExcluir
  8. Olá Eder muito obrigada bjuss otima noite pra ti e seja sempre bem vindo

    ResponderExcluir
  9. Éder... reler as suas palavras é absorver conhecimento em fonte cristalina.
    Te admiro muito!
    Um beijo muito carinhoso para você!

    ResponderExcluir
  10. Olá Eder,

    já sinto saudades de nova mensagem...

    beijos.

    ResponderExcluir
  11. Oi, querido! Vim fazer uma visitnha... o texto me lembrou um filme que assisti na semana passada... acho que se chamava sinais. Tá, era mais bonitinho, até..rs,rs.. Beijos!!!

    ResponderExcluir
  12. Meu querido Eder,

    não há nada de novo escrito no teu blog, mas não dispenso o teu comentário no meu blog no concurso "Uma carta para mim"!

    Um beijo português!

    ResponderExcluir