Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

sábado, 2 de julho de 2011

Amigo fiel

Ao acordar fitei o céu, o dia estava plúmbeo. As nuvens cinza não permitiam ao sol o seu surgimento. Prenúncio de um dia entristecedor, ou, então, era apenas mais um dia de chuva torrencial.
  Sei muito bem o quê me entristece. Um dos motivos é quando olho nos olhos do meu dono e não o reconheço. O tempo, esteja ele frio ou quente, chuvoso ou ensolarado, não altera o meu humor, serve como uma moldura para o meu dia. 
  Sentei sobre as patas traseiras na garagem e farejei no ar o seu cheiro característico. Assim que o meu faro percebeu o aroma almiscaro, o meu rabo serpenteou pelo chão, atingiu uma joaninha estatelando-a na parede. Ferida, ela levantou voo, nervosa deu com a língua nos dentes zumbindo impropérios. 
  Os seus passos eram nervosos, irreconhecíveis, sua voz gutural estava incompreensível. Deitei o meu focinho no chão, coloquei as minhas patas dianteiras sobre o mesmo, e de rabo de olho, ora fechando as pálpebras, ora abrindo, esperei-o sem medo. Quando ele surgiu no corredor esbravejando, dando soco no ar, chutando seres imaginários e xingando aos quatros ventos, eu coloquei as patas sobre os olhos e retesei todo o meu corpo, dando-lhe um formato de bola.
  Todo este tempo de convivência e lá se vai doze anos, ele nunca levantou o pé para me chutar, ou a mão para me bater. Por isso a minha reação de retesar não foi movida pelo medo, mas, simplesmente, por não querer vê-lo com atitudes tão corriqueiras a maioria das pessoas. Nos meus pelos, as linhas de suas mãos significam em carinhos.   
  Os xingamentos, chutes e socos exacerbavam exageradamente. Ele estava irreconhecível, e não reconhecê-lo era me perder de mim mesmo, mais do que isso, era me tornar insignificante.
  Senti as suas mãos me tangendo para fora da casa. Freei nas quatro patas. Ele me empurrou suavemente com os pés. Aos poucos as minhas patas foram escorregando, levando-me em direção ao portão de ferro. Desesperado, eu tentei morder a barra da sua calça para impedi-lo de me empurrar. Eu, movido pelo ímpeto, ao abrir a boca, avancei mais do que deveria. Senti o gosto amargo do seu sangue escorrendo entre as minhas presas ao abocanhar, além da barra da calça, as suas pernas. O chute na minha barriga, balançando todos os meus órgãos internos, eu só vim sentir quando bati com as costas no meio-fio.
  Vi quando ele levou a mão à cabeça demonstrando arrependimento. Os meus olhos doridos encontraram os olhos dele sofridos. Interpretei o seu olhar como um pedido de perdão, como se pedisse a minha volta.
  Ao colocar as patas dianteiras na calçada, ele fechou o portão de ferro. Eu apoiei na grade, balancei a cabeça para a direita e esquerda e procurei em seus olhos o motivo de tanto desprezo. Ele penteou os meus pelos com os dedos das mãos fazendo um carinho em meu dorso. Em seguida ele tartamudeou:
  - Ah, meu amigo fiel! Estou doente. Vá, tá na hora de procurar outro dono.
  As palavras saídas da sua boca misturaram as lágrimas caídas dos seus olhos tornando o que ele disse ininteligível. Eu lati dizendo-lhe que não havia compreendido, mas ele formigou para dentro da casa esfumando na sua tristeza.
  Eu uivei entristecido. O sol se apagou e a lua se acendeu repetidas vezes. Prostrado em frente ao portão, eu esperei silente. No terceiro dia de espera surgiu um barulho intermitente, quase inaudível no início, como se estivesse longe dali. Minha audição apurada, aos poucos, percebeu o barulho constante e aproximado. Enfim, ensurdeceu-me.
  Quando o elefante branco com cruzes vermelhas nas laterais, luzes vermelhas e brancas piscando no teto parou, o barulho havia cessado. De suas portas laterais abertas saíram pessoas todas de branco que abriram a porta traseira e retiraram uma cama com rodinhas.
    Trouxeram-no de dentro de casa envolto em um lençol e colocaram-no na cama com rodinhas. Preso em uma haste de metal havia um frasco com um líquido gotejando em uma mangueira fina presa ao seu punho por uma agulha enfiada em sua veia. Procurei os seus olhos e os encontrei fechados. Empurram a cama contra a traseira do elefante branco. As pernas com rodinhas da cama se fecharam ao tocar na traseira do elefante branco, engolindo a cama com ele em cima. Lestamente, o elefante branco saiu em disparada serpenteando pelas ruas, apressado, gritando e piscando as luzes do seu teto.
  No céu havia um buraco grande, como se lhe faltasse a lua. Buracos menores ocupavam todo o espaço celestial como se lhe faltasse as estrelas. Sem chão, eu tentava me apoiar nas quatro patas, esperando que ele voltasse. Porém, faltava-me céu para que eu uivasse essa esperança. Repentinamente desabou um temporal, eu corri sem rumo. Dos meus olhos desabaram lágrimas que ao misturar à água da chuva não levou de mim a tristeza.
  Talmente óleo em máquina, a tristeza somente seca com o decorrer do tempo. Cabisbaixo, orelhas caídas, rabo entre as pernas, uivando dores, diminui os passos e me deixei ser levado pela água. Qual destino eu não sabia, carregava em mim um dilúvio de dor. Ele se foi para sempre, eu permanecia.

Imagem: clique aqui

11 comentários:

  1. Magnífico, adorei seu texto, amigo, forte e sensível,

    Aquilo a que chamamos felicidade consiste na harmonia e na serenidade, na consciência de uma finalidade, numa orientação positiva, convencida e decidida do espírito, ou seja na paz da alma.
    Thomas Mann

    forte abraço

    c@urosa

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  2. Nossa, que triste.

    Se antes apreciava seus textos, a condução que dá aos mesmos, a criatividade, depois da nossa parceria, é que aprecio mesmo a sua narrativa, o desenvolver do texto.

    Muito triste, mas muito sentimento.

    abraço

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  3. Bom dia, Eder!

    Amai, pois, a vossos inimigos, e fazei bem, e emprestai, sem nada esperardes, e será grande o vosso galardão, e sereis filhos do Altíssimo; porque ele é benigno até para com os ingratos e maus.
    Sede, pois, misericordiosos, como também vosso Pai é misericordioso.
    Não julgueis, e não sereis julgados; não condeneis, e não sereis condenados; soltai, e soltar-vos-ão. (Lucas 11:35-37)

    Que sua semana seja abençoada e de muita paz!

    Deus seja contigo.

    Blog Yehi Or!
    www.hajalluz.blogspost.com

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  4. Que tristeza! Muito bom seu texto, como sempre, a emoção pula pelas linhas atá a gente.
    beijos

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  5. Apesar de triste a história nos mostra a realidade de muitas relações verdadeiras...
    Sentimentos nobres envolvem pessoas puras e boas e os animais sentem muito mais que possamos imaginar!
    Receba um abraço carinhoso e repleto de admiração

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  6. Belíssimo texto, amigo.
    Sou teu acompanhante e admirador.
    Aos meus inimigos apenas um chute na bunda, hahaa!

    Abraços.

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  7. Muito bacana. Animais são muito sensíveis, já tive alguns. Existem histórias muito fortes de relações que parecem eternas, de outros tempos e talvez sejam. Abraços!

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  8. Triste e comovente...Bom fim de semana

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  9. Boa tarde, Éder.

    Você, como sempre, escrevendo a realidade. Triste, mas verdadeira.
    Estamos felizes com a sua volta, meu amigo.

    Um abraço!
    Que seu fim de semana seja de paz!
    Wilson

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  10. Éder, não consegui ler até o fim.
    Muito triste. :(
    Adorei que vc voltou, amigo!
    Tava com saudade.

    Beijo grande e lindo fim de semana pra vc!

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    Eder, você cresce a cada texto! Conduz suas narrativas de uma maneira muito feliz... Pena ser essa, uma história tão triste...


    Beijos de luz e o meu carinho, especial!!!

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