Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Herança

Ela arrastou o filho evitando pisar no gramado em volta da trilha calçada com ladrilho português. Ajeitou-o no banco traseiro do Hilux pedindo que afivelasse o cinto. Voltou para dentro de casa sem perceber que havia pisado no gramado. Saiu, novamente, trazendo nas mãos os sacos de lixo separados para reciclagem na noite anterior e os acondicionaram em seus respectivos contêineres. Retirou da bolsa a tiracolo Louis Vuitton um frasco de álcool em gel – hábito adquirido depois da primeira pandemia da gripe suína -, e fez a higienização das mãos ali mesmo, na rua. Já dentro do carro, através do controle remoto, lacrou todas as portas da casa acionando o sistema eletrônico de vigilância, e, cantando os pneus, saiu costurando as ruas, ziguezagueando entre os carros, como se assim recuperaria o tempo perdido nos afazeres.

O suor porejava do seu rosto e se misturava na água lodosa que corria pela sarjeta. Monstros inauditos povoavam o seu corpo, intrinsecamente, comendo os seus órgãos. O martelo de Thor timbalejava ao chocar-se com seu cérebro, ensurdecendo-o. Das hordas do inferno, os filhos do lúcifer vinham montados em dragões cuspindo fogo. Ele, em completo desespero, se arrastava procurando uma guimba de diamba para suavizar os delírios provocados pela abstinência ao craque.

A mãe desferiu um tapa em direção ao filho, atingindo-o, de raspão, no rosto por este a irritar devido ao atraso; e, possivelmente, a criança chorou não pelo tapa em si, mas pela possibilidade de chegarem atrasados para o início da sessão do filme “A era do gelo – 6” em quarta dimensão.
A mãe, mais irritada ainda com o choro do filho, fora de si, parou o carro no meio da pista, puxou o freio de mão, desafivelou o cinto de segurança, virou-se e, aos gritos, pediu-lhe para parar com o choro. Um sussurro lhe chegou aos ouvidos, quase inaudível, tartamudeado pelo medo, chamando-lhe a atenção, “maaa... maaa... ê”. Ela viu o filho com dedo apontado para o para-brisa traseiro, assustado com o monstro brilhante se aproximando da traseira do carro. Quando ela olhou adiante, procurando a pista, viu, apenas e somente, uma luz intensa ofuscando os seus olhos. O grito dos pneus sobre o asfalto a fez voltar a si.
Ela virou-se lestamente. Sem afivelar o cinto, ela ligou o carro, pisou fundo no acelerador e olhou no espelho retrovisor. Os faróis do caminhão iluminando o Hilux aproximavam cada vez mais. O estrondo da buzina do caminhão abafou qualquer pedido de socorro, dela e da criança. A atmosfera ao redor do carro foi tomada pelo cheiro de borracha queimada, e o Hilux se viu coberto por uma tênue fumaça gris. Ela havia se esquecido de soltar o frei de mão.
Quando ela voltou a olhar o espelho retrovisor, o caminhão estava com o farol baixo. Não passava de um ponto, em movimento, perpendicular a linha no horizonte, símile a um dos caminhões de brinquedo do seu filho. A criança amuou-se na porta lateral do carro, entremeada por raiva e incompreensão deixou seus olhos se perderem na paisagem.
O shopping ainda distava algumas horas de onde eles estavam; a mãe, ainda rancorosa, irritada consigo mesmo, não menos com o filho, abaixou o espelho retrovisor para avistar o filho e com os olhos o fulminou. O olhar da mãe o culpando, amedrontou-o mais do que o acidente não ocorrido horas atrás. Ela acelerou, mais e mais, o Hilux furando todos os semáforos vermelhos. No centro, na região conhecida como cracolãndia, ela foi obrigada a parar porque os carros a sua frente assim fez obedecendo à sinalização.
Após o semáforo fechar, crianças formigavam saindo de todas as esquinas, batendo nos vidros dos carros; algumas esmolando, outras vendendo, a maioria fazendo malabares em troca de qualquer trocado para não ter que vender seu corpo por um prato de comida. Assim que o semáforo abriu, todas as crianças voltaram para a calçada rindo à toa; não sei se toda criança é feliz por natureza, ou, ali, a probabilidade de felicidade estava no interlúdio do abrir e fechar dos semáforos.
A mãe, antes de o semáforo abrir, já estava acelerando o carro, segurando-o na embreagem. Assim que abriu, os pneus cantaram um som agudo e nervoso. O fluxo estava lento devido à quantidade de carro. O seu filho notou uma criança se arrastando pela sarjeta, com a boca colada ao meio-fio, trêmula, com o olhar perdido. Permaneceu olhando, agora de joelhos sobre o banco, pelo para-brisa traseiro, até perdê-lo de vista.

Ele se arrastou com os joelhos sangrando, tateando a calçada a procura de uma guimba de diamba. Avistou, também, o garoto e chorou por saber que há tempos atrás, em um carro igual aquele, sua mãe o espancou, com a anuência de seu pai, por ter derramado o sorvete no estofamento do carro. Foi a última vez que ele foi espancado.

Extasiado pelas vendedoras das lojas do shopping devido à similitude as bonecas chinesas de porcelana, o filho foi arrastado pela mãe em direção ao cinema. Com óculos apropriados para assistir filmes em 4D, eles tiveram a sensação de vivenciar o mesmo, pois se no filme chovia, do teto caíam gotículas de água dando a impressão de chuva; se nevava, a temperatura ambiente caía tanto na sala de cinema que se tinha a sensação de estar nos pólos; se alguma árvore fosse cortada, o ar era borrifado pela essência da mesma, dando a sensação que o corte foi real. Eles saíram do cinema entorpecidos.

Ele não teve outra opção. A abstinência as drogas o levou a padaria; frêmito, com arma em punho, ele, tremendo tal qual vara verde, com a voz, também trêmula, tartamudeou o assalto.

Ela entrou no Hilux e acomodou o seu filho no banco traseiro beijando-lhe a testa. Serena, passou a mão sobre os seus cabelos, rosto e a pousou no seu queixo por alguns segundos. A sua irritabilidade diluíra durante a sessão cinematográfica. Quais marcas a sua violência deixará em seu filho é uma herança que cabe ao tempo dizer. O carro dirigiu-se a marginal pinheiros evitando o centro da cidade.

A noite chegara trazendo consigo todas as personagens. Ratos, baratas e viciados se misturavam, na região da cracolândia, as prostitutas, travestis, traficantes e notívagos.
O Hilux ia a setenta por hora na pista local da marginal; os ocupantes pareciam estar em outra dimensão. Quilômetro distante dali, o estrondo da bala propagou no ar, a bala atravessou a rua e se alojou, lateralmente, na cabeça dele. Arremessado contra o balcão, o seu corpo quebrou o vidro e seu sangue se misturou ao glacê do bolo.
O dono da padaria o pegou no colo, apontando a arma para o policial, disse-lhe, “É de brinquedo”.
“Hoje. Amanhã será uma de verdade, e aí? Eu lhe digo. Vocês correm para a TV reclamando a falta de segurança”.
“Mas é uma criança...”
“Ora, as crianças. Disse o policial com desdém. – Olha para essas – disse apontando para as crianças, viciada em craque, do outro lado da rua -, elas não têm isso aqui – ajuntou o dedo indicador ao polegar – de inocência. São frutos podres. O mal tem que ser arrancado pela raiz”.
O policial saiu da padaria tragando um cigarro. Com a boca fez anéis da fumaça expelida, atravessou a rua em direção as crianças, jogou o cigarro no chão e pediu a um deles que o apagasse com a sola do pé, pois os mesmos estavam descalços. Um deles, demonstrando uma coragem inabalável, pisou no cigarro; imediatamente o policial pisou em cima do seu pé, esmagando-o.
“Sabe qual a diferença entre o meu cigarro e você? Nenhuma. Os dois me fazem mal. Porém, garoto – o policial fez uma pausa procurando nos olhos do garoto algum medo; mas, no meio em que ele vivia, ter medo era sentenciar-se à morte, por isso, destemido, ele procurava, de alguma forma, entender a sua vida. Desde que ele nasceu, indiferente as intempéries, tinha conseguido isso até aquele momento - , você eu posso eliminar, o vicio ao cigarro é mais difícil”.
Dia mais tarde, o garoto empunharia uma arma, colocaria uma garrafa de coca-cola sobre a trave do campo de futebol, e, após vários tiros, se contentaria ao derrubá-la tendo em mente a imagem do rosto do policial.

16 comentários:

  1. Ai, Eder. Puxa vida... Moradora dessa capital, consigo ver os olhos dos meninos viciados, tremendo pela falta da droga em seus organismos. Quanto à mãe na Hilux - faltou a babá. Essas mães não criam seus filhos, seus empregados é que o fazem... Vemos um verdadeiro "exército branco" andando, melhor, marchando, atrás dessas "mães", carregando junto a si o que deveria ser o orgulho daquelas que os pariram.
    Meu coração acelerou a cada curva percorrida na sua história. Praticamente parou, perdeu uma batida, na hora do tiro. Arma de brinquedo? Quantas vidas perdidas, quantas histórias interrompidas...
    Sempre sua fã,
    Deia

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  2. Olá!

    Estou vindo lá do "Espaço Aberto" que me deu a oportunidade de estar aqui. Pois é... é só no que é de cada um que podemos conhecê-lo melhor.

    "Herança", Eder, é um texto cheio de cenas. Mundos até. Assim como esses mundos em que vivemos. Seria cômico se não fosse trágico - frase que virou clichê de nossos dias. Mas eu vou destacar uma cena que me chamou mais a atenção e me fez pensar mais:

    "...não sei se toda criança é feliz por natureza, ou, ali, a probabilidade de felicidade estava no interlúdio do abrir e fechar dos semáforos."

    Essa sua colocação me marcou fundo porque o que eu acho mesmo é que as crianças não são "felizes por natureza" pura e simplesmente. Elas nasceram para serem felizes mas, infelizmente, não o são. Fico pensando naquelas crianças e me entristeço mais quando percebo que a felicidade para elas depende do abrir e fechar de semáforos...

    Saudações!
    Zélia

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  3. Oi Eder! Adorei seu comentário, me fez pensar em uma variável que não tinha me dado conta na primeira vez que li o seu conto. A mãe poderia estar irritada daquele jeito justamente porque era folga da babá e sem ela, a própria mãe não sabia como lidar com o filho. Daí tanta violência. Sem a convivência íntima, que aconchega, ela não aprendeu que outro recurso usar para "domar" seu filho.
    Quantas coisas esse seu texto nos faz pensar... Obrigada por dividi-lo e por me fazer imergir um pouco mais nessa análise que, no fundo, é o cotidiano ao nosso redor. Temos filhos e não conseguimos nos colocar no lugar dessas pessoas.
    Um menino que perde a vida porque seus próprios pais não souberam lhe amar. Pode ter sido a folga da babá - quem sabe?
    Ufa! Bastante para meditar...
    Um abraço fraterno, aproveite sua linda família nesse final de feriado! Sua fã incondicional,
    Deia

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  4. Confesso que as minhas pernas ainda estão bambas e o meu ritmo cardíaco ainda está alterado com a intensidade deste texto.

    Beijinhos doces, Ava.

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  5. Cria-se todos os dias "monstros" e não importa qual o nível social, simplemsnte cria-se.
    Abraços.

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  6. Oi Eder...parabéns pela entrevista e por ter conquistado novos amigos com seu carisma e amizade
    Quanto a sua postagem, sabe que a estória me lembrou os filmes do Tarantino, esse vai e vem de personagens intercalados numa mesma História, agora com H, porque sua História é rela, cotidiana e vredadeira, pois estão acontecendo neste instante...parabéns amigo...
    Éder...quando puder, venha conhecer um pouco mais sobre a arte de fotografar, com o nosso amigo e convidado Miguel Almeida.
    Uma pessoa de um talento incrível que sentimos muito orgulho em poder apresentar a todos vocês.
    Um abraço no coração e na alma...

    Espaço Aberto

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  7. Eder,

    Enxerguei duas cenas distintas, embora conectadas num outro plano.
    Na primeira, a mãe abdica do diálogo, da compreensão da infância e seus desafios na arte de educar.Esquece, ainda que momentâneamente, o amor sem medidas. O legado, como você bem disse, será servido adiante.
    Foi preciso uma "sessão cinematográfica" para irradiar um pouco de consciência e retomar o amor.
    Na segunda cena assiste-se ao "longametragem" estrelado pela exclusão social, pela ausência de políticas públicas austeras, pela marginalidade social e pelas discrepantes diferenças impingidas por uma sociedade canhestramente ávida por status e dividendos.
    Violência que gera violência.
    Penso como Savater, em seu livro "Etica para meu filho": "Ao tratar as pessoas como pessoas e não como coisas, estou possibilitando que elas me devolvam o que só uma pessoa pode dar a outra"!
    Fraterno abraço,

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  8. Eder,
    o vento afaga
    o cabelo das velas
    que apaga
    Bom final de semana,
    Boas energias sempre!
    Mari

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  9. Li e reli várias vezes seu conto , forte e denso, Obrigado por dividir com a gente acho que é só o que consigo dizer no momento! Valeu!

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  10. Fiquei deslumbrado não só com seu blog, como também pelas suas postages, maravilha!!!
    Conheça os meus em:
    www.congulolundo.blogspot.com
    www.queriaserselvagem.blogspot.com

    Um abração do tamanho do mundo.

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  11. A vida. E você consegue descrever com muitos detalhes, e com a possibilidade de imaginar mais, ou lembrarmos de algum que complementa o texto.

    A vida, suas heranças, os entrelaces com o mundo de dentro e o de fora.

    Atitudes e comportamentos gerando outras atitudes e comportamentos.

    abraço

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  12. Mestre Eder;

    Simplesmente divino. Que da verdadeira arte literária. Caramba, como pode que tanta maestria na arte de escrever ainda não tenha sido recuperada por uma grande Editora?.

    Parabéns amigo Eder por nos oferecer tão belos momentos de uma literatura genuína, diferente e bem brasileira que só enriquece a nossa tão rica língua de Camões.

    Um abraço, caro amigo e Grande Mestre na Arte de bem escrever.

    Osvaldo

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  13. É com muita alegria que nós, do Espaço Aberto, viemos te convidar a participar do nosso primeiro Concurso Literário, a ser realizado no dia 12 de Junho, próximo sábado. Os interessados deverão fazer, nesse dia, um post em seus blogs, escrevendo sobre o tema: “Meu jeito de dizer que te amo” e o título do post deve ser esse mesmo. Mas ATENÇÃO: desta vez não haverá prazos, o concurso é válido SOMENTE para o dia 12 de JUNHO.
    Assim que postar o seu texto, visite-nos no Espaço Aberto e deixe lá o seu link para que possa participar do concurso.

    Contamos com a sua participação!
    Até sábado!

    Todas as informações sobre o concurso poderão ser encontradas e as dúvidas tiradas nos seguintes blogs:

    http://bomruim.blogspot.com/
    http://jardimdasan.blogspot.com/
    http://lienemarcia.blogspot.com/
    http://lienemarcia.blogspot.com/
    http://frutosdoverseiro.blogspot.com/

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  14. Oi Eder! E, de reflexão em reflexão, nossos horizontes são forçados a se alargar, para aceitarem o mundo de ideais que estão soltas ao nosso redor! Obrigada pelos seus comentários, gosto demais de ler o que você escreve, você me emociona! Um abraço a sua família linda, ótima semana, Deia

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  15. Vou falar mais nada não. A desgraça boa aqui se instalou.

    Só vivas.

    Vamos, Eder.
    Continuemos...

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  16. Olá Eder parabenizo-o pela excelente entrevista realizada pelo Espaço Aberto.

    Oportunamente retorno para conhecer melhor suas propostas e apreciar seu talento literário.

    Forte Abraço,

    Hod.

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