Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

domingo, 20 de junho de 2010

Desatino de um nordestino

 
    Quando eu saí de Brasília com o meu cabelo a lá Pepeu Gomes, ainda tinha muito da minha baianidade, pois Brasília, com os seus dezesseis anos, procurava uma identidade e pouco importava se você era baiano, mineiro, carioca ou gaúcho, acolhia-o como seu.
    Antes que alguém se pergunte quem é esse tal de Pepeu Gomes, explico, é um cantor baiano, cuja música de maior sucesso tem esses versos, “se deus é menino e menina, sou masculino e feminino...”; portanto, provavelmente, essa música deve ter sido composta em sua homenagem, não que ele fosse deus, mas como aquele cabelo liso e comprido abaixo dos ombros, ele estava mais para menina, mesmo sendo menino. Concluindo, eu tal qual ele cagado e cuspido, lógico, sem a sua fama.
   Quando cheguei a São Paulo com o meu cabelo a lá Pepeu Gomes, as pessoas colocavam uns olhos sobre mim como se buscassem uma identidade, um gênero específico, e isso me aborrecia, pois quando se nasce no sertão, macho, você não opta, não muda de gênero, grau ou número, é macho e ponto, mormente quando o sertanejo carrega uma jeguice genética para lhe dar sustentação e agüentar todo o peso de ser quem é.
   Quando aprocheguei-me em São Paulo trazendo no cocuruto um cabelo de Pepeu Gomes fiquei maravilhado com o mundaréu de carros quase embucetados um atrás do outro, alumiando os letreiros das Casas da Banha, Buriti, G. Aronso, Mesbla, Mappin e Arapuã, e deu nos meus miolos que seria rico. Mas menino, quah! Besta, tabaréu, tabaroa de dar nos quartos, eu não assuntei que São Paulo é um mundinho onde se come sonhos e caga arrogâncias.
   Oxente! Mainha, que não é besta não, não ia querer que eu desse com os burros nágua; bastou painho ter dado, diga-se de passagem, para ficar bem entendido, meu pai deu foi os burros nágua, pois como nordestino paidégua, para não aperrear com o peso de ser quem é, a sua jeguice é porreta de arretada. Como ia dizendo, mainha, que de besta não tem nada, sabida que só ela, cortou o meu cabelo como quem soubesse que eu sofreria um sertão de preconceito, não de gênero, mas de regionalidade.
   Mas menino, quah! Sofri tanto preconceito que fiquei cuma reiva da gota serena destes cabruncos que mangavam deu. Esses chibungos, filhos de uma égua raparigueira, boiolas chinfrins, chibatas, baiotolas trim-trim assim-assm, cabrobós empertigados. Fiquei tão zureta, arretado, zuruó da vida, aporrinhado e avexado até, por ser chamado, na escola, no trabalho, ora de baiano burro, ora de burro baiano por falhar e até por não que eu joguei fora a régua e o compasso e munido de lápis e borracha reinventei a minha própria história. 
   Quando São Paulo chegou a mim, Pepeu Gomes se encontrava no ostracismo, o cabelo estava cortado a lá reco como se dizia na época, a régua e o compasso há muito tempo eu havia perdidos pelo caminho. A minha história havia sido reinventada em outra língua, sem a musicalidade baiana, sem os oxentes, porretas, mainha e painho, carregada de palavras com tantos erres e aprendidas em noites trancado no quarto.
   Ô meu! Somente agora, passados trinta anos, após trocar de vocabulário, percebo que não me signifiquei, mais do que perder a identidade, mano, vejo que de nordestino eu só tenho o tino. Puts! Perdi foi muito mais. Pô meu! Perdi foi o meu norte.
   O meu norte permaneceu escondido nas mãos do vô Pedro que chorou ao me ver partir, e sentado embaixo do pé de amêndoas esperou-me por um sertão inteiro.
   Oh, vida paidégua, vida da peste que não se recupera o que se perdeu. Isso é mais que vida Severina, é desatino de um nordestino. 


* Tanto este texto como o anterior bebeu de sua inspiração no blog  http://rumoaescrita.blogspot.com da minha amiga Deia.

9 comentários:

  1. Ola, fez-me lembrar do meu pai, ido há 10meses... veio de Pernambuco... se deu bem no RJ... mas a saudade de lá nunca o abandonou...
    Conto lindo!
    Abraços e votos de paz!

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  2. É amigo, quando se perde o que tem, fica-se num vai e vem e não acha mais.

    Abraços.

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  3. Caro Professor;

    Pepeu Gomes recordo foi e é referência enorme da música e cultura nordestina.

    Mas comentando esta maravilhosa "Crónica de um filho do Sertão" onde o Luar é mais belo que a própria Lua, fiquei simplesmente maravilhado com o desfiar e desfilar de termos literários típicos do povo do nordeste e que confesso, embora os conheça todos, a distância me fez esquecer alguns...

    Eder, caro amigo, Eder Professor, se há blogs que tenho prazer em visitar, o "Gotas de Prosia" me fascina pela inteligência literária e gramatical do autor.

    Parbéns, caro amigo, e cotinue a nos fascinar com o que de melhor tem a nossa universal língua que é a adaptação a todos os contextos, basta para isso que apreça um autor / escritor como o Eder.

    Um abraço, caro Eder, parabéns professor.

    Osvaldo

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  4. Olá meu Amigo Eder...

    pode até ter bebido inspiração em outra fonte, mas tu não necessitas mais além da tua!

    Um beijo e que tenhas uma excelente semana!

    Força Brasil...:=)

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  5. Eder, que fantástico! O ritmo em "baianês" foi fluindo até que, numa virada de mestre, os erres e os esses apareceram duros, marcados, nessa história. História que é sua, é um pouco minha e é de milhões de imigrantes nessa cidade caótica que não para nunca.
    Que da nossa troca de ideias, nossa liberdade para opinar, nos permita, sempre, dar como frutos textos belíssimos como esse! Dizer que sou sua fã já ficou redundante! Um beijo, Deia.

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  6. Olha eu aqui de novo! Agora é para falar sobre o post de hoje lá do Rumo. Sabe, Eder, eu acho que o nome como chamamos Deus pouco importa. Se sua comunhão é com o Bem, isso basta! Ele tem vários caminhos (por isso ele é Deus, senão seria o padeiro da esquina! rsrs) e cabe a cada um de nós escolher o que deseja seguir. Mesmo se escolhermos não seguir nenhum! Pois, comigo, sinta-se à vontade para dizer, quando quiser, como se sente. É sua forma de estar em comunhão com o seu Deus! E eu, jamais vou chamá-lo de ateu! Confio no trabalho que Ele faz em todas as vidas! Um beijo da sempre amiga, Deia.

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  7. Ola Eder, realmente Deia é uma fonte de forte inspiração.
    Exuberante e real esse conto seu.

    Grato por sua visita e o gentil comentario.

    Forte abraço

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  8. Que lindo texto Eder!! Fez-me lembrar da inesquecível obra "Morte e Vida Severina" de João Cabral de Melo Neto. "E se somos Severinos iguais em tudo na vida"...seja esta nossa sina, migrantes que brigam pela vida onde quer que estejamos. Parabéns!!! Uma ótima semana para você, ;)

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  9. Oi amigo,
    Li seu texto gostei muito,pois minha familia vieram de Salvador qdo eu so tinha 9 meses.Aqui em SP,papai criou e formou 5 filhos,onde sou a caçula.
    Costumo dizer que ele chegou aqui não como Pepeu,mas como Caetano,querendo Caetanear.Não foi fácil.Ele transcendeu aqui,eu amo São Paulo,onde escolhi viver e quem sabe transcender.
    Boas energias,sempre!
    Mari

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