Parte I
O frio metálico dentro do ônibus não me
atingia. Sinceramente, eu era indiferente a indiferença, talmente o camaleão,
adaptava-me ao ambiente em que me encontrava sem demonstrar o meu processo de
mutação. Por isso, quando ele tocou em minhas mãos, no primeiro instante,
impulsivamente, e depois, insuflado pela rejeição, eu pensei em retraí-las do
encosto do assento e colocá-las na barra superior do ônibus, própria para o equilibro
de todos os passageiros. Não fiz. O calor nas palmas de suas mãos entrou pelos
poros das minhas e atingiu um ponto em que somos despertados para a libido. O
correto era ter me perguntado o que estava me acontecendo. Não fiz isso. Outra
pessoa em mim, da qual não conhecia, estava se revelando. Ou, ela já estava em
mim, melhor dizendo, ela sou eu e durante todos esses vinte e cinco anos de
existência a rejeitei com uma couraça camaleônica, sendo vários para sufocar a
minha verdadeira identidade. Nesse vários modos de ser o que eu não conseguia
era ser eu mesmo por não me aceitar, pois ao me olhar nos outros não me
identificava por ter outra identidade e, consequentemente, me sentia rejeitado
e, portanto me rejeitava perdendo o significado de existir.
Lembro-me, agora, quando esses sentimentos
me ocorreram pela primeira vez, foi no pátio do colégio católico que eu
estudava. Não sei precisar a idade, porém, eu não devia ter mais de sete anos.
As brincadeiras no intervalo eram sempre as mesmas, havia muito contato entre
os colegas. Até aquela data, acho, os meus sentimentos deveriam ser como de
qualquer criança da minha idade, corriqueiros, comuns, contudo, uma nova
criança havia chegado, vinda de um colégio adventista, para abalar as minhas
certezas. A princípio, todas as crianças acharam estranho o fato dele ter
estudado num colégio adventista e ser transferida para um católico. O seu
comportamento era muito estranho, diferente ao comportamento dos outros
garotos. Rejeitado, eu fui o único que tentou uma aproximação, no início, ele
recusou, depois, nos tornamos grandes amigos. Numa tarde de verão, o céu havia
desabado em águas; para nos proteger, corremos para debaixo de um toldo. Como o
toldo era muito pequeno, tivemos que colar os nossos corpos nos abraçando para
não sermos molhados. Sentimos o nosso calor adentrando os nossos poros e as
nossas partes íntimas avolumarem em nossos shorts escolares, entrementes, olhos
maldosos dardejaram em nossa direção toda a rejeição possível. Sinceramente, eu
não sabia o que estava acontecendo comigo, o motivo do meu corpo estar
expressando esses sentimentos, as transformações que estava ocorrendo, quanto
mais esses mesmos sentimentos afloravam se me aproximasse da mesma forma de uma
menina. Pensei, Deus me dará as respostas.
Eu senti nos olhos do padre toda a
severidade divina quando se comete um pecado. Apesar da aproximação com Deus
ser espiritual, o homem, através de suas religiões, se ocupa mais com as
aflições da carne do que propriamente as do espírito. Confessei ao padre glutão
todos os meus pecados, até os que ele me imputou. Sabedor da fé dos meus pais e
usando dela, o padre os fez me impor um castigo que bloqueou essa passagem da
minha vida até a data de hoje. O Diabo usa de todos os meios para apossar da
nossa alma, cabe a nós intercedermos, usando o poder que nos foi atribuído por
Deus para nos livrar das tentações, e nessa hora, Deus é severo. Essas foram as
palavras ditas pelo padre e repetidas pelos meus pais durante todo o tempo que
durou o castigo. Hoje me questiono, se é assim que Deus salva a alma de seus
filhos, com a dor ao invés do amor. Não é de se espantar que a cada dia os seus
fieis O abandona. Eu não, perseverei me escondendo de mim em mim mesmo, esse
foi o pior castigo que inconscientemente me impus ao sair do castigo severo de
Deus praticado pelas mãos dos homens. Depois desse fato, meus pais souberam o
motivo da transferência do novo aluno, e mais uma vez, sofrendo rejeição ele foi
expulso do colégio. Porém, os meus pais esconderam de mim o motivo da expulsão,
ele era gay, e essa não tinha sido a primeira vez. O diretor do colégio sugeriu
ao meu pai que ele me transferisse para outro colégio. Ele fez mais do que
isso, mudamos de cidade. O assunto foi apagado da nossa história familiar, uma
professora particular foi contratada para me ensinar e quando, já na fase
adulta, atribuíram novas funções que ela desempenhou melhor do que as aulas
dadas. As aulas ministradas na sala de estar passaram a ser ministradas no
quarto, para lá não levei lápis ou caneta, usei outro material.
O ônibus estava lotando, a maioria dos
passageiros se queixava do seu cotidiano, alguém tecia um comentário maldoso
sobre uma pessoa, ora um conhecido da família ou colega de trabalho, ora sobre
alguém que passava na rua naquele momento. Inexoravelmente, ninguém estava
contente com a sua própria vida, pois, a vida do outro é sempre melhor do que a
sua. Apesar do que se discute em transporte público me irritar, nesse dia, dei
pouca importância ao que se conversava ali, as minhas preocupações eram outras.
Aproximando da minha parada de descida, eu me encaminhei para a porta traseira
e ele me acompanhou trazendo consigo um encanto no rosto. Ele ia começar um
diálogo comigo, quando uma passageira, dessas que pensa que somos invisíveis ou
uma pedra em seu caminho, o jogou para cima de mim ao descer. Rimos, pois a
ignorância da passageira nos aproximou. Como o ônibus estava lotado, ele se
posicionou atrás de mim chamando à atenção de alguns passageiros.
Coincidentemente, dois pontos depois descemos, sem deixar de ouvir comentários
maldosos vindo do ônibus que estava parado devido ao trânsito.
Assim que me encaminhei em direção à rua
transversal que me levaria para a minha casa, ele me reteve segurando na minha
mão e não a soltou. Convidou-me a continuar nossa conversa - Qual? Pensei. - em
sua casa apreciando um uísque com gelo. Estava propenso a aceitar, porém quando
olhei na minha mão - ele retirou a sua assim que olhei -, vi a minha aliança no
dedo esquerdo brilhando. Pus as mãos no bolso para esconder a aliança - ele riu
da minha atitude infantil -, e lhe disse que não podia, contudo, outro dia quem
sabe, desde que o uísque fosse seco. Concordando, antes de eu tomar rumo de
casa, garantiu que somente o uísque seria seco, as emoções não.
Continua
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.. e assim tudo pode acontecer...:) estou à espera da continuaçao:)
ResponderExcluirbeijos
Não adianta reprimir, tem que olhar, conhecer e decidir com a consciência o que se quer, caso contrário o reprimido um dia retorna com força total.
ResponderExcluirVamos ver o desenrolar da sua história, que sempre são bem contadas.
beijos
Oi, Eder, nem vou comentar o que entendi, porque da última vez me surpreendeu com a mudança do rumo da história. Vou aguardar a sequência, um abraço!
ResponderExcluirEder, todos nós somos camaleões e nos transformamos conforme o momento e a hora. Assim como a ocasião faz o ladrão, pelo menos em algum instante da vida, o nosso eu "feminino" ou "masculino" aflora e nos deixa com aquela sensação de estranheza. Aconteceu comigo, e eu não achei ruim...Há que se viver todas as possibilidades, ou como digo num curtinho meu: "...Sabor de loucura: há que se provar, ou nossa vida será apenas um desfilar de brancas nuvens..." Beijos meu lindo.
ResponderExcluirOi Eder,
ResponderExcluirassim se criam as dores que envolvem outras pessoas e outras, famílias são construídas sobre uma mentira e um esforço de negar a própria natureza que um dia prevalecerá. Vejamos os novos rumos no próximo.
Beijos
alguns dizem que no futuro todos seremos bi. Deus não castiga, Ele é muito maior que nossas fraquezas humanas. nós é que projetamos nele nossas expectativas e traumas.
ResponderExcluirvou esperar os próximos capitulos, beijos
Eder,
ResponderExcluirAgradeço a gentileza nos seus comentários.
Já estou sentindo falta daqui porque estarei ausente pelos próximos dias.
Mas,desse conto dramático podemos extrair a frieza da realidade que existe em tantos lares formatados pela superficialidade e pseudoverdades.
Abraço carinhoso,
As emoções nos causam surpresas. Acontece do ser humano tentar esconder sentimento, mas um dia retorna de alguma forma.
ResponderExcluirabraço