Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

sábado, 14 de março de 2009

Candeia

                                                    imagem clique aqui

*Se de noite chorares por ter perdido o sol, as lágrimas não te deixarão ver as estrelas – R. Tagore*

*Um especial agradecimento a uma amiga que com seus poemas alimenta minha alma de fé*

Somos pescados por uma rede do útero da mãe natureza para não nos afogarmos, em terra firme não temos a certeza de que não sufocaremos. A alegria sempre ribeirou a minha vida, vogando assim, por rios doloridos, mareando a tristeza, eu cheguei até aqui. Não me considero escritor, nunca o fui. Neruda disse que escrever é fácil, basta começar com uma palavra e terminar com um ponto final, no meio encher de idéias. Estou a escrever, de lápis (quanta miserabilidade em me fazer escrever de lápis, essa atitude somente poderia partir dele.), obrigado. Não tive escolha, ou será que ainda tenho? Não tenho todas as respostas, eles com certeza sim. Toda história tem que ter um fim, até lá, antes do ponto final, quem sabe me desfaço do lápis e opto pela segunda escolha. O lume da candeia bruxuleava, a mesa com seu tampo de vidro refletia três rostos, o meu, o dele e o do outro, mas na escuridão não conseguia discerni-los; todos se assemelhavam a mim. Pela primeira vez me dei a escrever, e antes de fazer isso estava vindo da rua. Era um dia como todos os outros, desesperançoso, alcoólico e entristecedor. Quando entrei a candeia já estava acessa, bruxuleando. Ele ou o outro deve ter colocado azeite, pois há muito tempo que o pavio não era aceso. Na mesa um caderno e um lápis do lado direito, um revólver e três balas do lado esquerdo. Uma perturbação incansável dominou minha alma, tremi dos pés a cabeça. Um dos dois me disse, “escolha”. Não enxerguei o banco do lado esquerdo, tropecei e caí em cima do caderno. Ouvi, “saiba escolha”. Mas internamente eu sabia que a escolha não era aquela. O outro também, de alguma forma, sabia, pois o seu olhar era sarcástico e sagaz. Cinqüenta anos de idade. Inútil. Por não enquadrar no perfil de funcionário que a empresa precisava para expandir os seus negócios fui despedido friamente, descartado como uma máquina velha sem serventia. Lixo. Inútil. Pela segunda vez corria nas minhas veias um sangue diferente, fervente, desejoso por vingança. A linha que separava o bem do mal havia se apagado. Segurei-me para o intuito do assassino não tomar conta de mim. A falta de fé foi a minha única derrota, e, indubitavelmente, a minha derrocada como ser humano. Meu pai sempre sonhou em ter um padre na família, por ser primogênito eu fui o escolhido. Como todo sonhador, meu pai não tinha apenas um sonho, mas vários. O outro sonho era ter outro filho que lhe desse um neto, e esse neto um bisneto, e assim interminavelmente para perpetuar o nome da família. Muitos dos seus sonhos não foram realizados, precisamente a maioria. Não guardo mágoas dele, apenas uma comiseração pudica. Era um fracassado, e como tal, não cabia outro sentimento senão esse. Após o meu nascimento nasceram cinco meninas. Entrei no internato aos três anos, saí aos seis. Ele retirou dos meus ombros o peso de ser padre e me deu um peso maior, lhe dar um neto. Casei por imposição, a moça tinha sobrenome. Nunca fomos felizes. Quando ela engravidou, dei a notícia ao meu pai, “você vai ser avô, ganhará uma neta”. E o meu neto, quando vai me dar. Essa foi sua resposta. A história esta aí para nos provar que a história sempre se repete. Vieram mais duas meninas. Inútil, nem para me dar um neto você serve. Antes lhe tivesse casado com Cristo, assim não teria a frustração de saber que meu único filho não é homem. De que lhe serve os culhões se não sabe fazer um menino. Ouvi tudo calado. Engoli palavra por palavra a seco. Lixo. Inútil. Pela primeira vez corria nas minhas veias um sangue diferente, amargo, desejoso por vingança. A linha que separava o bem do mal não se distinguia mais. Silente, o intuito do assassino tomou conta de mim, antes que ele agisse abandonei a todos. No decorrer da minha vida toda ação foi um abandono de mim mesmo, um fim que nunca chegava. Como é difícil juntar as letras e dá um significado as palavras, e mais ainda chegar ao ponto final. A grafita estava chegando ao fim e somente agora eu percebi em cima da mesa uma borracha. Qual o significado dela? Infelizmente, com ela, eu não poderia me apagar, mas ainda havia o revólver. Haveria a grafita de durar até o momento do ponto final? Espero que sim, e ela escreverá a onomatopéia do meu fim. Toda história é uma repetição da história, muda os cenários e as personagens, mas a história não muda. Talvez seja por isso que o Neruda disse que escrever é fácil. Quando o dia é entristecedor, alcoólico e desesperançoso é difícil chegar em casa. Quando eu cheguei em casa, e, antes de entrar, percebi a candeia acessa. O susto é como um dia chuvoso, após o relâmpago sabendo que o trovão virá, mas sempre nos assustamos quando ele chega. Foi neste estado que entrei em casa. Nunca acreditei em milagre, mas havia algo estranho. A candeia não acenderia sozinha, haveria a necessidade de outra pessoa para acendê-la. Seria a explicação mais plausível. Quando tropecei no banco e caí sobre o caderno, ouvi, “saiba escolha”. A imagem refletida no tampo de vidro da mesa se transformou na mais pura luz, sem refração, iluminando todo o ambiente. A outra imagem, sulfúrea, desaparecia envolta em chamas. O revólver não, ele permanecia. De dentro da luz ouço uma voz me dizer, “nenhuma história é repetitiva, pois tens a capacidade de apagar a que está escrita e reescrever outra completamente diferente”. Houve um silêncio perturbável. A luz se extinguia, o lume da candeia se tornava mais forte. A grafita estava acabando, não haveria como escrever a onomatopéia que significasse o meu fim. Pego o revólver, coloco as bala e pá, pá, pá. Qual o significado das palavras quando as escrevemos, e quem as lêem como as interpretam? Neruda tinha razão, escrever é fácil, difícil é saber ler. Eu comecei a minha história com o nascimento sabendo que a morte era o ponto final, mas nem sempre toda história tem que acabar com um ponto final. A onomatopéia acima escrita não simboliza o som de um tiro, pois se assim fosse a história terminaria ali, seria o ponto final. Não, ela significa o som da transformação do revólver em uma caneta. Vou recomeçar a história para dar um começo e um sentido a minha vida...



*O autor alerta que a história não é fato, e tão pouco autobiográfica, as personagens pertencem ao mundo da ficção, qualquer semelhança com fatos reais pertencem ao campo da coincidência*

7 comentários:

  1. Olá Éder, interessante a idéia de como cada um interpreta o ato da esrita ou de se considerar poeta, acho que as duas palavras pesam, justamente por sermos amadores, pelo menos eu me considero assim, mas no fundo tudo é uam questão de interpretação...Uma coisa é certa, escrevemos uma coisa e as vezes as pessoas interpretam outra, por iso Quintana tenha feito este poemeto que te deixo aqui...

    A COISA

    A gente pensa uma coisa, acaba escrevendo outra e o leitor entende uma terceira coisa... e, enquanto se passa tudo isso, a coisa propriamente dita começa a desconfiar que não foi propriamente dita.

    Mario Quintana

    Um abraço na alma...

    ResponderExcluir
  2. Recomeço outra vez, só de te ler ;-) Parabéns pela crônica! Invejo (com carinho.. rs) essa sua facilidade em criar histórias que, bem no fundo, podem morar dentro de cada um. Excelente, menino! Beijocas de admiração. (Só lamento que aqui não dê pra inserir os pontinhos saltitantes..rs.. obrigada por tudo, sempre, amado amigo!)

    ResponderExcluir
  3. Grande Eder,

    blog de cara nova e escrita forte.
    A palavra agradece.

    Abraço forte, meu camarada.
    Continuemos...

    ResponderExcluir
  4. Éder... tenho pensado muito sobre isso, o fato de ao escrevermos sermos interpretados de muitas formas...cada um com a sua leitura e interior.

    Já te disse e repito...admiro sua forma de escrever e nos ligar as palavras.

    ...desejo uma semana rica em dádivas para o seu coração!

    Um abraço carinhoso

    ResponderExcluir
  5. _______________________________

    Um ótimo texto! Prendeu minha atenção do começo ao fim...Triste, como a maioria das histórias reais...

    Beijos meu querido amigo e uma semana FELIZ!!!

    _________________________________

    ResponderExcluir
  6. Olá caro amigo Eder;
    A Crónica está perfeita, o conto, quase real obriga-nos a pôr mais azeite na Candeia para que ela não nos deixe no escuro antes de acabarmos de ler e não vá, na escuridão, o ponto final se antecipar ao epílogo...
    Pela primeira vez digo que afinal Neruda não tinha razão quando dizia que escrever era fácil, dificil era saber ler...
    Mas, acredita caro amigo Eder, a forma como você escreveu este conto
    transformou o dificil em fácil e atraente de ler...

    Uma vez mais parabéns por suas capacidades de escrever e nos prender a suas "letras".

    Um abraço,
    Osvaldo

    ResponderExcluir
  7. Interessante a sua narrativa, sua escrita é fluída, com uma condensação instigante, penso que a palavra busca-nos em infinitas dimensões nesse caleidoscópico olhar que nos pulsa para grafar-nos em múltiplos planos sensorais. Grande abraço

    ResponderExcluir