Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Lux mea

“O homem que vê mal vê sempre menos do que aquilo que há para ver”.
“Se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha
para dentro de ti”.
“Quanto mais nos elevamos, menores parecemos aos olhos daqueles que não
sabem voar”.
Friedrich Nietzsche.

Os primeiros raios solares começavam a dissipar a névoa que encobria a cidade. O dia seria claro e sem nuvens.
Quando eu acordei estava escuro. A escuridão a todos iguala. Acendi a luz artificial para clarear o ambiente, mas envolto em trevas, por mais claridade que houvesse, eu permaneceria sem luz. Necessitava, indubitavelmente, do contato humano para me sentir lúcido. Vesti-me para sair. O louco se veste de escuro para tornar-se claro, e eu estava a um passo da loucura.
Descer o mais fundo possível para se atingir um desejo, para cima todo desejo se dissipa com o ar. O meu desejo era o fim corpóreo, o anímico, devido a sua negrura, se encontrava morto desde o sempre. Por nada saber sobre a morte, eu a desejava; o desconhecido exercia uma atração forte sobre mim. Conhecia em demasia a existência; a não-existência, agora, era o que me aprazia.
Escuro, eu estava escuro, no escuro me sossegava. A morte, por ser a falta de luz, era o que eu almejava. O sossego nos tira a visão física e nos dá a da alma, e a morte tira as duas para nos dotar da visão divina.
Claro, nenhum dos meus dias era claro, assim como minha estrada; mas por mais claro que fosse o caminho, quando se está enfermo da alma, o primeiro passo e os conseguintes é um pisar no vazio rumo a uma queda abismal e infinda. E por mais diferente que fossem os caminhos que eu tomasse, só tinha um destino e era o destino final, a morte.
Como não sofria da necessidade humana de se eternizar por ter certeza que a eternidade banha-se de escuridão e a morte é clareza divina, é verbo de luz que não conjuga nosso findar, eu, com certeza absoluta, atingiria meu fim, pois a permanência é tatear a esmo na nossa própria escuridão. Mas existem aqueles que findam, os solitários e solteiros, pois a solidão apaga qualquer chance de luz, não deixa atear o fogo divino. Estes, mergulhados em escuridão, permanecem na negrura após a vida, e são seres incompletos, pois a completude só se dá na soma de dois. E eu estava assim, solteiro e solitário. A alma na penumbra cobria-se de penúria. A escuridão interna não me dava à chance da procura. Meu universo temporal imerso em dor imaterial fez com que a solidão torna-se o meu espaço prisão.
Dotado de nenhum sentimento benigno, eu me tornei uma pessoa mecânica. Todos os meus movimentos eram como se fossem autômatos. Do levantar ao deitar, por não reagir, mas apenas deixar ser agido, eu me sentia programado. A escuridão fez de mim um ser sem nenhuma reação.
Saí. Apesar de sentir o calor do sol, eu não conseguia discerni nenhum objeto. O breu me envolvia. A bengala que me guiava só poderia ser a divina, pois enxergar no estado que eu me encontrava era impossível. Entrei na estação do metrô e sentei no primeiro banco da plataforma de embarque. Em total escuridão a esperança era que a luz viesse como passageira em todos os vagões do trem. E foi uma espera infinda como se o tempo estivesse parado naquele instante. Com os cotovelos sobre minhas coxas apoiei o meu rosto em minhas mãos. Sofrendo uma transformação anímica por falta de luz, sendo que a maldade não é transparente e nem colorida, mas sim escura, eu, internamente, escureci-me de vez. Precisava transmutar o corpo para salvar a alma. Minhas veias estavam dilatando, a pele arroxeando. O trem não vem. Sobre mim havia a necessidade de toneladas de ferro. Eu sobre os trilhos, sob mim o trem. Fim.
Assustei quando, ao invés do trem, um vulto se dirigiu a mim. Envolta em luz, a imagem da perfeição. Ela me puxou. Um rosto belo esculpido por Michelangelo. Olhos puxados bem postos entre um nariz pequeno e uma boca com lábios maravilhosamente delineados sobre uma pele negra; sobrancelhas traçadas no barro divino, cílios exuberantes e maçãs do rosto arredondadas; apelidada de japonesa falsa, seria, se fosse o sexto dia da criação, Eva feita da costela de Deus. Cabelos alisados e um sorriso encharcado de luz. Perfeição. Voltei a enxergar, era como se ela tivesse pincelado minha alma com todas as cores. Mas mal deu tempo de divisar todo o seu corpo, quando de mãos estendidas para mim o trem a arrebatou. A luz de seu sorriso se apagou. As trevas renasceram no meu existir. Escureci-me novamente.
A culpa me abateu por sempre ceder a inércia. Bastaria um gesto, um estender de mão para tê-la salva. O passo para a minha queda seria o único ato de coragem que me tiraria da minha inércia, e isso me angustiava, junto com a culpa que me levava ao desespero. O desesperado, por agir pela emoção, tem o raciocínio paralisado. Eu não entendia porque ainda pensava, era como se estivesse esperando um sinal que daria o estímulo para eu dar o primeiro passo. Estava ali, uma luz focada na cancela que separa a plataforma de embarque da linha metroviária. Tudo envolto no mais completo breu. A luz. O foco. A cancela. O aviso escrito: “Não entre, risco à vida”. A luz iluminando apenas a cancela. O aviso. O foco. Desespero. Luz. O desespero não guia e nem mede os passos de ninguém. Ouvi o aviso sonoro vindo da estação: “Não ultrapasse a faixa amarela, não arrisca sua vida”. Atravessei a faixa e a cancela. O aviso foi mais incisivo: “Para a sua segurança não ultrapasse a cancela. Não entre, risco à vida”. Vida? Quando o negrume impregna toda a alma, o corpo não passa de um ataúde a espera da primeira pá de terra.
Não sei quantos passos eu dei, só parei quando senti o cheiro podre do rio Pinheiros. Eu estava sobre ele. Sem enxergar qualquer objeto por estar na mais completa escuridão, tateei a esmo até encontrar a barra de ferro da mureta de proteção. Subi nela. A queda me libertaria. Antes do pulo ouço alguém me chamar. Olho para trás na certeza que não visualizaria nenhuma imagem. Olhei por puro reflexo. Emoldurada num quadro banhado a ouro lá estava ela. Viva. Luz a brilhar em seu belo rosto estampado em um sorriso que diferia de qualquer sorriso que eu tenha visto até hoje. Agora entendia, ela veio para me salvar. Ao tocá-la senti, mesmo não crendo, que tinha tocado a mão de Deus. Ela me sorriu novamente. Por entre seus lábios saiu uma luz intensa clareando tudo em volta. O mundo ganhou cores, formas e sombras. Meu anjo negro de luz e eu nos unimos, somamos e na soma dos dois tornamos um. Envolto em luz, eu e ela demos um passo à frente. Quando nos libertamos da escuridão não caímos, elevamos.

7 comentários:

  1. Olá Eder, falar sobre a morte dessa maneira é simplesmente entregar-se ao desconhecido, mas uma coisa é certa, bela escolha nas frase do Friedrich Nietzsche. Este pdaço é sensacional...
    “Quanto mais nos elevamos, menores parecemos aos olhos daqueles que não
    sabem voar”. Isso em minha oipinião corresponde a humildade, o saber ser...boa sexta...um abraço

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  2. Olá caro amigo Eder;
    "Quando ns libertamos da escuridão, não caímos, elevamos".
    Confesso que qunto mais corria esta "Crónica de morte" mais temor sentia do seu final. Parei algumas vezes para tentar sentir o "pulso" literário do autor da crónica.
    Continuei com os mesmos temores, até que a frase final me fez compreender que afinal esta era uma "Crónica de vida"...
    Parabéns Eder e um abraço.
    Ps. Gosto imenso deste seu outro estilo que eu desconhecia.

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  3. E esse excerto do alemão que matou deus diz um mundo e um universo.

    Tem um tempo o teu texto, Eder.
    E eu me calo.

    Abraço forte.
    Continuemos...

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  4. Meu querido, enchendo novamente de beleza os olhos nas metáforas maravilhosas desse texto! Passando pra desejar um lindo domingo, com tudo de bom. Muitas beijokas, e boa tarde!:-)

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  5. Maravilha o seu texto, Eder!

    Tudo que você escreve, tem muito sentimento... Gosto!!!


    Beijos de luz e o meu sincero carinho, amigo...

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  6. Escuridão: tema instigante. Sentir-se escuridão, Ser escuridão e caminhar para o fim, para o desconhecido. Você a descreve com uma docilidade que faz a gente ir lendo, lendo, sem cansar, torcendo para que aconteça a Luz no final. E, que bom, acontece. A luz.
    Muito bom Eder.
    Abraços

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  7. Eder que texto lindo, pulsante, lavra extraída da mina funda da alma, sombras buriladas para o extase da compreensão, da luz! Parabéns! Não conhecia ainda a sua prosa, calou-me fundo! um grande abraço, lilian

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