Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

sábado, 15 de novembro de 2008

Imperfeição


O que houvesse de imperfeito nela, ele não notaria, afinal, quando se está enfeitiçado, os olhos se cegam para o que não quer vê, e, incontestavelmente, em tudo que ele via nela, somente via a total perfeição.
A neblina não lhe daria a chance de enxergar a um palmo de distância, por mais apurada que fossem sua visão, e ela, a visão, tinha que ser, pois todo matador tinha que ter todos os sentidos apurados, e ele os tinham, para não correr o risco de, sendo predador, virar presa. Com os olhos presos na foto de sua vítima, ele não entendia o porquê de ter sido contratado para matá-la, ainda mais que quem o contratou tinha condições de eliminá-la aonde e quando bem entendesse. Se, somente de olhar a foto, ele estava entontecido, quiçá se a visse em carne e osso sob a luz do sol, sua mente desfocaria do objetivo, e ao invés de matá-la, ele que morreria, posto que morto já se encontrava de amores. Quando ele terminou de se arrumar para cumprir a sua missão, o sol havia dissipado qualquer traço de neblina. Ao sair ele ouviu o barulho de impressão vindo da sua impressora, mas nada o deteria. Armado e entontecido, ele iria ao encontro dela. Ele saiu batendo a porta que se fechou automaticamente. Dentro da casa, no papel impresso estava escrito:
“ABORTAR MISSÃO. AGUARDANDO RESPOSTA DE RECEBIMENTO DA MENSAGEM”.
Não haveria resposta.
Passara tempo o suficiente para a resposta ter chegado. Desesperado, ele abriu sua caixa de entrada de todos os seus e-mails; olhando para sua HP, como quem implorasse que fosse cuspido o papel impresso com a confirmação de recebimento, ele, estático, com os olhos vidrados, encarou o vazio, e percebeu que a resposta jamais chegaria. Seu fim estava próximo. Ela o cercou.
Cercado por ela, ele ouviu sua voz vociferada:
“DO PÓ VINHESTE, AO PÓ VOLTARÁS. TOLO PÓ”.
Não haveria resposta, intuitivamente, ela sabia que o seu matador estava a caminho. O esperaria, pois sabia que ao findar uma vida, outra iniciaria. Hoje, até o fim do dia, seu ventre fecundaria. Seu ciclo estava próximo do fim.
O desespero tomou conta de sua alma, pois sabia que ao desprezá-la, ela, movida pela vingança, se transformaria na Besta.
O impacto dos pés dela sobre o seu peito o jogou de encontro à mesa do computador, partindo-a ao meio. Quando ele foi ao chão sentiu suas costelas se despedaçando. A violência utilizada no chute demonstrava que a transformação tinha iniciado.
Os pés dela, sustentáculo de sua beleza humana, assemelhando-se aos da mais bela rainha do Egito, degeneravam-se, assim como as mãos, adquirindo garras afiadas e medonhas. Seus cabelos louros da cor do ouro acobreavam-se, e o que antes pareciam fios da mais pura seda transformava-se em cordas de sisal. Os olhos negros avermelhavam-se, transbordando pelos cantos toda a sua ira. A sua pele, leitosa, que te tão clara iluminava qualquer ambiente escuro, incrustou-se de uma macula esverdeada, adquirindo características lunares, isto é, tinha toda a deformidade da lua vista de perto. Os seus seios de mamilos róseos tinham dado lugar a dois tubos flexíveis com pontas semelhantes a agulhas. O espécime mais belo sobre a face da terra e sob todos os céus havia se transformado numa besta hedionda.
A Besta, urrando de ódio, com o olfato apurado, sentindo que o seu predador estava chegando, sem dó e piedade, com as garras inferiores sobre o peito da sua vítima, desferiu com as garras superiores um golpe certeiro na sua genitália, a engolindo com prazer. Extática, sentiu-se vingada, por ele, ao ser infértil, desprezando-a, não ter lhe dado um filho. Aterrorizado, ele gemia, em seu rosto as marcas da dor estavam impressas. A Besta enfiou os seus dois tubos flexíveis no abdômen da vítima, sugando o que houvesse de seiva nele. Com a língua o adentrou extirpando todos os seus órgãos internos. Após saciar a sua fome, ainda não contente, completou a sua vingança, ao aproximar seus lábios dos dele, expirando-lhe a alma. Desfeito em pó, ela espirou até ele se perder no ar.
A Besta, de volta a sua forma humana, saiu do quarto e percorrendo seus olhos até onde as suas vistas pudessem alcançar, solitária por saber que existia apenas mais um do espécime humano, vivo, para fecundá-la, chorou como choraria qualquer humano por se ver sozinho. Ela olhou para o céu com uma esperança desesperadora de que o céu olhasse por e para ela, mas tão escuro como estava a terra, estava o céu também. Não haveria possibilidade de visão sem a luz. Descontrolada, ela começou a suar frio. Arrítmica, ela girava em torno de si procurando um eixo. Ela sabia que estes sentimentos eram devido à chegada do seu predador. Ela entrou no quarto e se aquietou.
O predador nem de longe parecia um matador profissional. Ao entrar no quarto divisou o corpo dela nu, perfeito, talhado pela mão do artista quando sublimado pela inspiração. Engabelado pelo amor, ele foi ao colo dela como a abelha vai a mais bela flor colher o doce néctar. Ela uivava de prazer, e uivou mais ainda quando sentiu dois semens fecundarem dois óvulos. Perfeito. Duas crias. Macho e fêmea. Ela deu uma boa gargalhada quando soube que o seu matador se chamava Adão.
Adão, dissoluto, descansando após o deleite proporcionado pelo amor, não percebeu as transformações que ocorriam em sua amada. Quando ele veio dar por si, a Besta estava lhe expirando a alma, mas antes de esmaecer, ele ouviu as últimas palavras ditas por ela:
“A PROPÓSITO, EU ME CHAMO EVA”.

6 comentários:

  1. Meu amigo... Você criou uma história digna de ser assinada por um mestre do terror!

    Muito, muito boa a sua história!


    Beijos de luz e um domingo feliz...

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  2. Caro amigo Eder;
    Esta "Imperfeição" é perfeitamente mais que perfeita...
    Gostei da crónica em que o Eder mostrou o outro lado do escritor que eu não conhecia. Além de grande poeta o Eder é um excelente escritor e contador de histórias.
    Gostei imenso e só prova que quando se sabe escrever, o tema e contúdo se tornam fáceis para os grandes autores e o Eder é um Mestre na arte literária.
    Um abraço

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  3. Me prendeste do início ao fim, quase sem piscar.
    Muito, muito bom.
    Abraços.

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  4. Um postulado acerdas das vaidades humanas desumanas. Cabedal de valores discutidos em prol de um tempo,

    melhor.

    Um abraço forte, Éder.
    Continuemos...

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  5. Interessante ver um texto seu, diferente. Você se utilizou de um mito, o da criação, para falar de uma realidade, a violência, a desvalorização da vida, etc.
    Um abraço.

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  6. Ola Éder...enho alguns mini contos, e achei interessante esta sua estória. Acho importante deixar no final esta espécie interrogação na própria resposta...sei lá...fica um suspense no ar...parabéns amigo...um abraço

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