Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

domingo, 30 de novembro de 2008

A espera do milagre

Dos trinta e cinco anos vividos, vinte e cinco ela passou sem colocar uma gota de refrigerante na boca por pensar que as borbulhas pudessem embebedá-la. Quando, pela primeira vez, ela experimentou o refrigerante, receosa da embriaguez, a sensação de frescor na garganta não lhe trouxe alívio, e, demasiadamente exagerada, mais do que o medo de perder, alcoolizada, a consciência, ela teve medo de perder a própria vida, pois a acidez da bebida a fez pensar que estava sendo envenenada.
As ilusões perdidas no decorrer da vida são tantas que, malmente, poucas guardamos; algumas nos marcam e por um longo tempo a trazemos na lembrança, porém, corriqueiramente, as esquecemos sem perceber, mas outras nem tanto. A da embriaguez que poderia ser provocada pelas borbulhas do refrigerante, ela traz consigo até hoje; assim não é com a ilusão de amar, de ser feliz, de suceder bem em família como no trabalho, estas, ela perdeu há muito tempo. Contudo ela tinha uma característica que a distinguia das outras mulheres, a de mascarar as suas dores, a de esconder os seus sentimentos, criando em torno de si uma barreira intransponível; quem a visse não perceberia que toda aquela felicidade transparente, aparentemente verdadeira, era uma forma de defesa para escamotear todo o seu sofrimento. Como ela conseguia e o porquê, somente ela sabia.
Dos quarenta anos vividos por ele, ela perdeu a conta de quantas vezes ele colocou álcool na boca somente pelo prazer de se embriagar. Das vezes, trincado, socando, pelo fundo, a garrafa com a palma da mão na tentativa de que caísse uma gota de cerveja, desesperado ao divisar a gota vindo, despregando das bordas do gargalo com a intenção de atingir o chão, ele se jogava de boca aberta esperando, ansioso, que este último gole lhe escorresse pelos lábios, aguçasse a língua salivando-a, molhasse a garganta e saciasse a sua vontade. Como sempre, para todo viciado, exceder-se no vício nunca é o suficiente. Nunca satisfeito, ele ia amontoando garrafas vazias, uma sobre as outras, embebido de desespero por seu vício não ter sido saciado por completo, e devido a todo esse esforço, corpo em feridas, alma desequilibrando no vazio de si, despossuído de forças para se manter em pé, ele se mantinha, sem nenhuma noção do que estava fazendo, ziguezagueando pela rua até alcançar o bar mais próximo, trazendo a sacola empanturrada de garrafas de cerveja, desequilibrando devido ao peso, chegando ao seu destino final. E, assim, em casa, continuadamente, ele passava o dia, varando a noite até desmaiar de bêbedo em estado de coma alcoólica. Portanto, das vezes que isso acontecia, e eram muitas, ela chorava desesperada, porém não perdia a fisionomia de felicidade estampada no rosto. Era, pois, nela que seu filho espelhava. Era, pois, no seu colo que seu filho achava chão para se equilibrar.
De todas as fases da vida, é na infância que nunca devemos perder a ilusão, ou deixá-la ser podada. É, também, nessa fase, por sermos indefesos, que corremos o maior risco de perdê-la, e as influências são tantas que se não tivermos quem nos guarda, além de perdemos as ilusões, perdemos também os sonhos, as fantasias e a esperança, ou seja, resumindo, a própria infância. Apesar das mazelas, ele poderia dizer que era um menino de sorte, ele tinha a sua mãe; parece pouco, além do mais, dizer que isso é sorte soa com certo exagero, como se ter uma mãe não fosse um processo natura da criação, e o é, porém quantas crianças, tendo pai e mãe, se encontram perdidas no lar, sozinhas. Tendo a mãe como escudo para as agressões do pai, ele, ainda, conseguia ter um pouco de ilusão, sonho, fantasia e esperança. Ele a tinha todos os dias, mas nem sempre todas as horas. Nas horas que ela lhe faltava, o medo do pai era maior do que qualquer outro medo; não havia bicho-papão, boi-da-cara-preta, mula-sem-cabeça que suplantasse o terror que ele tinha pelo pai. Seu medo não era fruto de uma ilusão. Por ser real, além da dor anímica, havia também a dor física, e essa era a que lhe doía mais.
Dos oito anos vividos, se houve algum em que ele teve um momento de felicidade, por mais que ele procurasse na sua memória, apesar da pouca idade, ele não a encontraria. Porém os momentos de sofrimentos, ele não precisava de muito esforço para achá-los, somente não sabia em qual fase de sua pouca vida eles ocorreram. Mas um fato repetido, ininterruptamente, desde os dois anos não lhe saía da memória.
Aos dois anos seu pai o levou para uma roda de amigos no boteco próximo a rua que eles moravam. Ao colocar os olhos naquele lugar, ele não demoraria muito tempo para compreender que seu pai fazia do bar a extensão de sua casa, ou, mais precisamente, o contrário. O cheiro de gordura queimada vindo da cozinha não suplantava o de urina vindo do banheiro. A sujeira vicejava por todos os cantos. Se no ambiente a imundice era latente, nas pessoas a era a olhos vistos. Repugnado, ele tentou, desesperadamente, sair dali, contudo o seu pai, violentamente, o puxou para dentro do boteco. Ele sairia dali manchado, imundo, também.
Aos dois anos ele compreendeu que a violência pode vir de várias formas e de onde menos se espera. Seu pai vociferou em alto e bom som, como se o grito por si só fizesse do que se é dito uma verdade incontestável, que seu filho era macho por ser filho de macho. E a todos que se encontravam no boteco o que era aquela violência senão espelho de suas próprias vidas, por isso ninguém contestava, mas aprazia. Com o dedo indicador enfiado no copo de pinga, seu pai daria provas do que acabara de dizer. Retirou o dedo e passou nos seus lábios, depois o fez beber um corpo de cerveja. As lágrimas vieram aos olhos, mas ele as segurou, pois sabia que se recusasse à bebida, ou chorasse, ele seria surrado quando chegasse em casa. Ele, apesar da pouca idade, compreendera que a violência poderia vir de várias formas, e que ela somente tinha um rosto, o do seu pai. Essa rotina seguiu, maquinalmente, até a data de hoje, e por mais que ele procurasse entender, agora com oito anos, o porquê de o seu pai agir assim, ele, ininteligível para os atos violentos, não conseguia; não o odiava porque sua mãe o ensinara que somente o amor transforma. Ele estava à espera do milagre.
Passado seis anos, desde o primeiro dia que ele entrou naquele boteco, nada ali havia mudado. Os mesmos rostos, os mesmos sofrimentos, apenas mais envelhecidos; as mesmas cores nas paredes, apenas desbotadas e sujas; os mesmos odores, apenas menos perceptíveis por ele ter se acostumado. Seu pai, perdido, entrava ali para se encontrar; ele, sem a necessidade de ser puxado, e nem ser forçado a beber, entrava para se perder. Saídos dali, tanto pai como filho, olhavam para o horizonte distante tentando se apegar a um fio de esperança; o do seu pai, o fio final; o seu, o fio de salvação. Ele ainda acreditava no milagre. Porém eles não perceberam que se encurtassem o seu campo de visão veriam que em todas as casas havia luzes coloridas pisca-pisca, guirlandas nas portas; que as pessoas nas ruas estavam mais felizes; que suas vestes eram novas e mais coloridas; enfim, eles perceberiam que havia transformações intrínseca e extrínseca nos lugares e nas pessoas; somente neles e no boteco não havia. Porém se eles tivessem encurtado o seu campo de visão perceberiam que era véspera de Natal; que todas as pessoas, não importa se branco, preto, vermelho ou amarelo, como sempre, em época de Natal, traz a esperança do milagre, do renascimento, da renovação. É Natal, então.
Chegados em casa, tanto pai como filho procuraram o local que mais lhes apraziam. O pai dentro de casa próximo a geladeira; então a abriu e afastando os litros de refrigerante, pegou uma das muitas cervejas que ele tomaria até desmaiar. O filho do lado de fora da casa, na calçada, onde sua mãe já o esperava, sentada. Ela chorando internamente por não saber como transformar o seu lar; ele, no seu colo, chorava a cântaros por saber que estava se transformando, no seu pai.
FIM.

E então, é natal. Como sempre, todos, indubitavelmente, trazem em si o desejo do milagre. Ela passou a mão, carinhosamente, nos cabelos do seu filho e ficou feliz quando ele, ao erguer a cabeça, aparentou um rosto rido por estar no seu colo. Porém suas vistas trespassou a porta da sua casa e percebeu seu marido caído, desmaiado, por conta das cervejas.
Anoitecia, tanto mãe como filho guardavam em si a esperança do milagre, seja ele vindo por quaisquer mãos, porém como toda espera demorada, esta, a do milagre, esmaecia a esperança. O céu, de olhos postos neles, não deixaria amanhecer o esmaecimento.
Ela pediu ao filho para fechar os olhos e silentes escutaram Deus. No silêncio e pelo silêncio ouvimos e somos ouvidos por Deus.
- Mãe, escuta! Ouço a voz de papai Noel dentro de casa. Vamos entrar.
Ela teve receio de entrar, pois sabia que seu marido estaria caído, desmaiado, no chão; mas como não entrar sem matar a esperança do seu filho. Pois, ela entrou.
E então, é natal. Como sempre, todos, indubitavelmente, trazem em si o desejo do milagre.
O barulho das borbulhas efervescendo na taça ela ouviu ao entrar em casa. Três taças forram enchidas por quem menos ela esperava. Seu filho, com a alma rida, correu em direção a papai Noel, o abraçando.
- Você leu minha carta.
- Sim filho.
Os três brindaram juntos desejando a cada um, um feliz Natal. Foi nesta hora, olhando, bem a fundo, os olhos do papai Noel que ela percebeu quem ele era. O agradeceu pela transformação.
Então, é Natal e como sempre, todos, sem sombras de dúvidas, trazem em si o desejo do milagre.
Os dois abriram os olhos e antes de entrar em casa sua mãe o perguntou qual era o seu pedido de Natal.
- Um Natal em família, um lar com paz.
Dos trinta e cinco anos vividos, vinte e cinco ela passou sem colocar uma gota de refrigerante na boca por pensar que as borbulhas pudessem embebedá-la, e hoje, noite de Natal ela beberia seu refrigerante em taças.
- Vamos entrar filho. É Natal, e por trazermos o desejo do milagre, ao abrimos esta porta, tenhamos certeza de que o milagre se realizará.
Os dois entraram...


Esta história não tem um fim, pois, sempre, não importa a data, temos que trazer em nós a esperança do milagre.

9 comentários:

  1. Comovida, escuto em A espera do milagre, a realidade de muitos - meninas e meninos - que na desestrutura perdem tudo, inclusive a capacidade de sonhar. Então, o resta é a repetição do comportamento que tantas vezes rejeita em seus pais.
    Belo texto Eder
    Abraços e boa semana

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  2. Além da mensagem, bonita e oportuna, gostei do modo de construção do texto. Muito bom.
    O texto, o modo de escrever valorizou o conteúdo.

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  3. Além do milagre, há sim a certeza que a maior dádiva de um homem é ainda poder acreditar nos seus passos. O dia que raia é o milagre, assim como as possibilidades infinitas desse dia.

    Texto grande e com sentido, meu caro.

    Um abraço forte, Éder.
    Continuemos...

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  4. ...sim! O milagre sempre pode acontecer...

    Que belo e tão triste o seu texto, meu amigo!
    Obrigada por compartilhar conosco...

    Beijos de luz e o meu especial carinho!

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  5. que belo texto! ela e seus medos, ele e suas desmedias e a criança, no natl trazendo a esperança, reforçando a fé e fazendo o milagre acontecer!
    parabéns!
    Muitos milagres nesse natl e em 2009!
    abraço amigo
    renata

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  6. Olá Eder...caramba amigo...acredito que esta estória possa se repetir em muitos lares por aí...A forma como você foi desenvolvendo cada momento merece elogios. Sei um pouco o que é isso, não da mesma forma e nem com os mesmos personagens, mas sei...
    Grande abraço amigo e que os milagres possam ser os verdadeiros presentes para o mundo...valeuuuuu

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  7. Passando, relembrando e deixando um abraço de domingo, meu amigo.

    Firmes, continuemos...

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    Passei para desejar um FELIZ NATAL e um ANO NOVO melhor ainda!!!

    Beijos de luz...


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  9. Interessante teu blog aceite minha amizade beijosssssss

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