Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Cumplicidade


Ao chegar em sua casa ele ouviu dela que o matara, pois a sua cobardia não o deixara tomar alguma atitude, que ele fosse homem o suficiente, pelo menos, para se livrar do corpo. Por mais indelicadas que fossem as palavras, elas tinham que ser pensadas quando são ditas, mormente quando são por quem se ama. Dizíveis, as palavras, invenção do homem, deveriam ser ponderadas, visto que os atos não os são. Ditas por sua esposa com tanta propriedade, mesmo inverídicas para ele, as palavras tornavam-se verdadeiras, conquanto quem o visse, os atos falavam por si. Portanto relatamos os atos para que as palavras não sejam incongruentes. Ele foi ensimesmado querendo colocar para fora, pela boca, o jantar que comera minutos antes. Corpo no saco, segurando a ânsia e evitando pôr os bofes para fora, ele se deu por contente, afinal, com isso, as palavras de sua esposa deixavam de ter significado. O saco não estava tão pesado, da sua consciência não se poderia dizer o mesmo. Mesmo que a palavra cúmplice tenha um significado diferente de criminoso, como criminoso ele se sentia, a vista disso a cumplicidade, neste caso, é um crime. Corpo no saco, saco nas mãos, ele, periclitando, andou em círculos amiúde. Era como se um pé quisesse seguir adiante e o outro retrocedendo quisesse voltar. Mas quando se comete um crime ou se é cúmplice de um, o que queremos é nos livrar das pistas que possam nos incriminar, quiçá, também, se livrar da culpa de consciência. O que lhe preocupava era o corpo, como se livrar dele sem ser visto, da consciência o tempo era juiz. Porém pensou, e se houvesse outras pistas, se houver que a esposa cuidasse de se livrar delas, concluiu. O medo exsudava pelos seus poros. Com olhos curtos ele olhou se não havia alguém na rua, com olhos longos ele pressentiu dois casais vindo, esperou eles desaparecerem de suas vistas e ele das deles, visto que ele foi visto. A natureza estava colaborando na ocultação do delito, a garoa fina que caía nas primeiras horas da manhã aprisionou as pessoas em suas respectivas casas. O caminho estava livre, e usando as palavras apropriadas, para ocultar ou cometer um crime. Atabalhoado, guiado pelo nervosismo, carregando o saco nas costas, tropeçando, ora no ar, ora nos próprios pés, ele virou na primeira viela, como sempre faz quando vai ao trabalho, e deixou o saco escorregar pelo corpo até atingir o chão. Desfeito do corpo, ele olhou para trás certificando-se que ninguém o observava. Talmente a criança que maldosamente quebra a vidraça do vizinho, corre para a sua casa e após horas nenhuma reclamação o chega à porta, esbalda-se de felicidade. Assim ele estava a caminhar. A felicidade durou pouco, pois a sua consciência além de o acusar pela ocultação do corpo, o acusava também pela felicidade de a ter feito. Entrementes sua consciência o pedia para delatar o crime, o seu coração pedia o contrário. Ele obedeceu ao coração, pois quando se ama e é amado em demasia, o amor por si só oculta qualquer delito. Na volta do trabalho para casa ele percebeu que tardava anoitecer. Todos os olhares em todas as casas eram para ele. Como ele e sua esposa, mais a esposa do que ele propriamente, eram os únicos que não tinham o morto como querido, os olhares para eles sempre seriam os mais acusadores possíveis. Percebendo que todos deram falta de quem morto estava, ele apressou os passos sem perceber que agindo assim se incriminava. Ao abrir a porta da sua casa ele sentiu alguém o puxando pela barra da camisa. Certamente deveria ser um daqueles que o acusava com o olhar pela morte daquele animal. Era uma criança com um olhar meigo, nem por isso menos acusador, que lhe perguntou se o tinha visto. Foi dito, e as palavras foram inventadas para serem ditas e escritas, para o bem ou para o mal, que uma mentira dita amiúde pode se tornar uma verdade, e ele que disse a si mesmo repetidas vezes o que dirá a criança não se convenceu por dois motivos, um, que ele conhecia, usando de pleonasmo, a verdade verdadeira, e outro, que a sua consciência não permitia uma mentira qualquer que fosse. A criança voltou a lhe perguntar se ele o tinha visto e antes que o silêncio, como resposta, fosse prova do seu crime, e assim lhe pareceria pois todo silêncio é dúbio, ele lha disse, sem claudicar, de uma forma peremptória, sem titubeios posto que a palavra tem que ser dita com contumácia para que tenha a sua real significância, que não o tinha visto, visto que provavelmente ele havia sido atropelado ou quem sabe a carrocinha o havia levado, e neste caso deveria estar morto, pois como se sabe, gato ou cachorro levado pela carrocinha vira sabão, e como isso é dito pela voz do povo, sabe-se que é a voz de deus, e sendo a voz de deus não há palavra que a conteste. Ele seguiu com sua verborragia, símile ao político, posto que todo político usa da palavra para enganar, disse-lhe que isso somente acontecia quando não cuidamos de quem estimamos, e concluindo, foi mais político do que o próprio político, é o teu caso. Disfarçando o seu cinismo, ele entrou em casa e encontrou sua esposa cuidando dos vasos de flores, feliz, afinal não havia mais aquele maldito animal a estragar orquídeas, bem-me-queres, amores-perfeitos, tulipas e etc. O morto, ou seja, o gato da criança não mais fazia dos vasos de flores receptáculo de fezes. Por mais que a noite tarda quando se é feliz, o tempo passa a ser uma abstração da criação. Os dois foram para a cama como se estivessem carregando consigo uma felicidade sempiterna talmente os animais no cio, posto que todo animal, quando livre, é feliz. Como a vontade era maior do que a fome, eles satisfizeram a vontade, insaciáveis, como animais, não se deixaram morrer de fome. Porém ele sabia que a vida seguiria o seu curso e, indubitavelmente, que após uma noite prazerosa, segue-se um dia nem tanto. Justamente por ele não querer que a pressa se apoderasse do tempo, foi o tempo que se deu à pressa e por ela foi levado. A manhã chegou. Era de seu conhecimento que por mais que desviasse do seu caminho, amiúde, um dia ele seria levado ao local que ele deixou o saco com o gato morto, mormente se aquele era o seu caminho habitual. Para não dar razão a sua esposa, melhor dizendo, para não dar significado verdadeiro as palavras ditas por sua esposa sobre a sua coragem, ele tomou a si uma coragem somente vista em super-heróis e nesta mesma manhã, sem manha que isso não é dado a um super-herói, virou na viela que havia deixado o saco com o gato morto para enfrentar os seus medos. O animal quando está diante do perigo, ele não se acobarda, pois sabe que para se livrar do seu predador ou ir a busca de sua caça há a necessidade da luta. E que luta foi para ele seguir adiante quando virou em direção a viela. Houve a sua frente um gato com os pelos ouriçados, as unhas afiadas prontas para o ataque. Ele ficou paralisado, não teve reação, não lutou. Por mais que se diz de uma pessoa, as palavras ditas ganham um maior significado quando a pessoa diz de si pelos seus atos. Ele acobardou. O gato, mirando a sua presa, preparou-se para dar o pulo, entrementes, ele, como todo cobarde, fechou os olhos e se encolheu talmente o tatu bola. O gato voou sobre a sua cabeça, ele, agachado, de olhos fechados, ouviu guincho saindo de uma boca próxima da morte. Quando se levantou, de olhos abertos, riu com ri todo cobarde ao se ver livre do perigo. O gato desfiava com as patas um rato preso à sua boca. Se o predador do rato era o gato, do gato poderia ser o homem, do homem quem seria, interrogou-se, e respondendo a si mesmo disse, ninguém. A falta de saber não torna o homem ininteligível, porém imperceptível para as coisas e inidentificável às pessoas. A ignorância somente o faz enxergar a si mesmo. Ele seguiu sem saber que era o próprio homem o seu predador.


* Por mais inverossímil que possa parecer a história, ela foi baseada em fatos reais. Os nomes das personagens, tanto humana como animal estão ocultos para preservar os mesmos.

7 comentários:

  1. Fiquei aqui pensando como vc concluiria... Acho que se fosse eu, q não sei escrever nada disso, teria enlouquecido os dois no fim.. ela e ele.. sabe? aterrorizando à noite, como numa perseguição macabra, entre garras e miados alucinantes! rs.. Genial, amigo! :-) Beijo grande, e mais uma vez parabéns! Bom fim de semana!

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  2. Que texto, menino! Nossa, fiquei sem fôlego. Há aqui uma cascata de palavras que prendem o leitor do início ao fim. Bela narração. Parabéns Eder!

    Obrigada por passar no Ensaios.
    Fiquei muito feliz.

    Pois, a gente se vê!
    Beijo

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  3. Eder,

    tive a impressão de já ter lido este teu texto, quando ainda na outra configuração do blog.

    Abraço forte, meu caro.
    Sigamos...

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  4. Eder



    Um beijo para ti e espero-te mais vezes ...na minhapoesia...


    gostei muito do que li...


    deixo um pouco da minha liberdade...



    AMARRAS
    Amarras…
    Soldadas…
    Apertadas…
    E que doem…

    Vou…
    Esticar os braços…
    Com força…
    E cortá-las…
    Quero ser livre…
    Saber quem sou…
    E o que quero…

    Não quero…
    Sonhar por sonhar…
    Esperar…
    E nada ter…

    E com força…
    Arranco…
    As amarras…

    E mesmo doendo…
    É dor de momento…

    E não voltarei…
    A deixar pôr amarras…
    Porque quero…
    Ser eu novamente!...

    Lili Laranjo

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  5. Oi, amigo Eder;

    Antes de mais, mil desculpas pela ausência temporária neste seu maravilhoso blog, mas tem sido um corre-corre e embora atualizando o blog, pouco tempo me tem restado para visitar os amigos, entre os quais o Eder de quem eu faço questão de manter esta amizade.

    Três viagens em trabalho pela Europa (Portugal, 2 semanas - Bélgica, 1 semana e Dinamarca, 1 semana) depois complemento dos relatórios, têm me deixado um pouco a leste da blogosfera.

    Agora, até Setembro tudo será mais calmo e aproveitarei para visitar os blogs amigos. Em Outubro e Dezembro voltam algumas viagens (preparação de exposições) e é assim que por vezes tenho menos tempo.

    Como entrei para me justificar da minha ausência, não comento para já o post do Eder que deverá ser como sempre uma bela obra literária, porque ainda não o li, o que vou fazer de seguida.

    Depois de o ler, deixarei, como sempre o meu comentário...

    Caro Eder, mais uma vez as minhas desculpas e receba um grande abraço.

    Osvaldo

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  6. A leitura aqui faz a alma inundar de emoções!

    É sempre muito bom estar aqui!

    Deixo um abraço com o meu sincero carinho

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  7. Oi Éder, meu irmão escreve contos assim, caramba, imaginação a toda prova...Esse teu estilo de escrever agrada bastante e por isso rende o leitor...parabéns amigo...Um abraço na alma...

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