Os pensamentos, as experiências de vidas relatadas das minhas personagens não são reflexos dos meus pensamentos e experiências, mas sim, peças do mosaico que forma o ser humano. Os meus textos não intentam a polêmica, mas nos chamar à reflexão. Deixo o meu email para quem quiser trocar ideias, compartilhar textos e interagir: gotasdeprosias@gmail.com

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Uma breve história

“Se, apesar de tudo, os homens não conseguem fazer com que a história tenha significado, eles podem sempre agir de uma maneira que faça suas vidas terem um – Albert Camus”.

Que dor infernal é esta queimando os meus miolos como se houvesse um vulcão na minha cabeça a entrar em erupção; que vozes são essas, uma balburdia incompreensível, diálogos inaudíveis, traços de sons ininteligíveis; de quem é aquele corpo estranho deitado na minha cama como se sua fosse, vestindo as minhas roupas e lhas cabendo como se o corpo meu fosse.
Não sei, nunca soube, como começar a história, a minha história, pois seja pelo início, meio ou fim a minha vida sempre transitou pela desesperança silente, pela tristeza permanente. Despossuído de qualquer bem material, aos olhos da sociedade, eu era, também, despossuído do ser, um zé ninguém, mais um número para o aumento das estatísticas de miserabilidade, de criminalidade, da população carcerária, dos que usufruem os programas sociais do governo, de desempregados, e etc.
O prefixo “des” somente me cabe em um único significado, a falta de, e quando falta tudo, quando a carência é gritante, ser é apenas um detalhe descartável, um sussurro, inaudível, da vontade divina. Por isso nada acrescentará a história se eu contar a minha história pelo princípio ou meio, pois ela é semelhante às histórias de zés ninguéns lidas nos jornais ou vistas na televisão. Não que o fim seja diferente. Então, para encurtar, a começamos pelo fim, por ser, para mim, a melhor maneira de se contar uma história.
É de difícil compreensão você se vê estirado na cama, inerte, sua cabeça com um buraco no meio esguichando lavas incandescentes e sobre as mesmas massas brancas borbulhando. Menos compreensível são seres alados e luminosos lhe ofuscar a vista a ponto de quase lhe cegar e não lhe permitir voltar para o seu próprio corpo. Foi aí que me dei conta que eu estava morto.
Era o fim da minha história, mas não propriamente da história. Fora de mim, ou seja, do meu corpo, eu tive uma compreensão, não direi que completa, do que é a vida, isto é, de tudo que é humano. Eu vi o baixo e o alto escalão do governo; vereadores, deputados e senadores; patrícinhas, mauricinhos e toda e qualquer tribo; assalariados, jornalistas e escritores; líderes empresariais e religiosos; advogados, médicos e artistas subirem o morro em busca do pó branco da alegria. Mas quando eles descem trazem consigo o sangue necessário usado para dar brancura ao pó, na maioria das vezes sangue de inocentes. Eles fingiam não saber que a mesma alegria, momentânea, proporcionado pelo pó cobra, em pesos e medidas desproporcionais ao prazer obtido, o seu valor correspondente, a desalegria imutável e permanente. E por fim é a própria vida que cobra o seu preço, o maior de todos - se do pó sobreviveste, pó serás. -, a morte, indubitavelmente, muito cedo.
Eu vi o traficante descer o morro e ser considerado Deus, chegar até ao asfalto e ter permanecido. A história esta aí para não me desmentir – do Sol ao bode, de Zeus a Deus. -, o homem sempre teve a necessidade de acreditar em um Deus, e para lhe dar serventia houve a necessidade de criar o seu oponente, o Diabo. Nos dias atuais quem é Deus, o que é Deus? Para a maioria dos humanos é tudo aquilo que possa lhe proporcionar prazer, carnal. E tudo aquilo que for de encontro ao prazer, por definição, é o Diabo. Portanto o dinheiro, o mercado, as drogas e etc são considerados deuses; por isso tê-los é se sentir o próprio Deus. O traficante tinha este poder, ele tinha as drogas, o mercado, o dinheiro e para permanecer nele transitava em todos os níveis da sociedade, a corrompendo as custas das almas dos desesperançados, como a minha.
Eu vi o traficante desenvolto entre senadores, deputados, prefeitos, governadores, juízes e etc. Eles riam, riam soltos, despreocupados. Destituídos de qualquer sentimento pelos outros, a não ser menosprezo, eles falavam sobre amenidades; entrementes balas zuniam perdidas em busca de algum corpo que lhe dessem sentido. Minutos atrás, as significando, eu as senti na cabeça.
Um outro traficante, no alto do morro, com sua metralhadora rasgava o céu para que pudesse ser ouvido. Eu sou Deus, dizia ele. Porém quem o escutava estava mais embaixo, a poucos metros, como os olhos hirtos, avermelhados e apavorantes; com as narinas intumescidas roubando todo o ar ao seu redor; babando pelos cantos da boca; com as mãos tensas sobre a metralhadora, prontas a disparar, se não fosse humano diria que era o próprio Diabo. Com ele havia mais quatro. O policial beijou o cabo da metralhadora, a abençoou e com o alvo na mira disparou. Enquanto as balas atravessavam o ar para alcançar a cabeça do traficante, no asfalto os políticos dormiam tranqüilamente; o morro por mais barulhos que fizesse não os despertariam do seu sono letárgico e permanente. Enfim toda a sociedade permaneceria adormecida; o morro não, ali ninguém tinha sossego, não tinham como ser indiferentes, todos são afetados.
Ao cair no chão o traficante não se surpreendeu ao ver cinco metralhadoras postas em círculos sobre a sua cabeça. Agonizante, entre risos de escárnio, ele balbuciou com esforço, pois as palavras estavam sendo retidas pela morte, mas antes que o fio da vida fosse expirado, ele disse, “não se mata um Deus”. O barulho ensurdecedor das balas sendo cuspidas das cinco metralhadoras ecoaram por todo o morro. Restos de cabelos esvoaçavam pelo ar, pedaços de crânio espatifavam nas pedras esfarelando-se, a massa encefálica liquidificava misturada ao sangue. Como os povos antigos que arrancavam a cabeça de sua vítima em sacrifício aos seus deuses, estava o traficante.
Havia um prazer transparente nos rostos dos cinco policiais, a morte os levava a um clímax como o sexo aos amantes. Ainda consigo ouvir o policial dizer que há muito tempo Deus foi morto e que somente os traficantes idiotas não percebiam. A entonação e a articulação das palavras dava uma certeza amedrontadora e a seriedade com que eram ditas assustavam mais do que as armas.
Colocando a arma no ombro os policiais saem do cenário do crime em gargalhadas, mas sem antes de um deles voltar e dar um chute no traseiro do traficante e sussurrar, “adeus, Deus”.

“Não há morte, de alguma forma a vida continua, como a história, ela não tem fim...”

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*O autor alerta que a história não é fato, e tão pouco autobiógrafo, as personagens pertencem ao mundo da ficção, qualquer semelhança com fatos reais pertencem ao campo da coincidência*

6 comentários:

  1. Eder
    Agradeço a visita.
    E digo que o Amor é a mola que move o mundo...
    Um beijo

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  2. O nome disso tudo talvez seja impunidade, e o fim continuará mesmo sem fim e assistiremos outros capítulos, pois outros "deuses" como o da sua estória assumirão a vaga...
    E nós sim, pobres mortais iremos nos acostumando a ver se repetir esta estória...muito...muito bom amigo...um abraço na alma

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  3. só vc para ter tanta sensibilidade para tão bem ser atingindo pelo que dói nos outros e transpor para o papel. Um beijo imenso meu nego. Mari.

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  4. Retrato humano?
    Nacional?
    Cognitivo?
    Tradição?
    Cultura?
    Limo?

    Brejo?


    Blog de cara nova, mesma qualidade textual inquiridora.

    Abraço forte, Eder.
    Continuemos...

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  5. O que sinto é eles são capazes de qualquer coisa. Qualquer um deles. E a história pode fazer com que qualquer um que venha!
    Menino! Vc escrveve com muita propriedade, já lhe disse isso? :-D Genial! Boa semana! :-) Beijocas.

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  6. Olá Éder...

    A realidade está aí...
    E na história deixa as suas marcas!

    Obrigada por sua visita e palavras...
    Um beijo com o meu carinho

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