
A vida nada mais é do que reflexo de nossos atos. Acreditar que
haveria salvação após a morte é que fazia Eduardo, conhecido como Palodú, a
praticar seus crimes. Purgatório, depois céu ou inferno. Culpa porquê? Sabia
que o pior lhe esperava. Todos os seus espelhos imprimiam a imagem da
condenação. Abraçara o crime por falta de opção. Sempre lhe faltou tudo,
materialmente a miséria era presença constante. Seu pai imprimiu em seu
espírito mais dor do que amor. Sua estrada era curta e cheia de desvio, rumo
incerto o levava para o caminho errado.
Com seus quase dois metros de altura, pele branca como a
neve, olhos esbugalhados, pés e mãos enormes e uma cabeça exageradamente grande
dava a Palodú uma aparência assustadora.
Para o criminoso todo dia era sempre o último, mas para
Palodú hoje era diferente. Sentia que seria seu último dia. Nu e descalço com
uma sensação de que tudo lhe fugia, alguém lhe perseguia, entrou em casa
apressado. Sua mãe cochilava no sofá com a televisão ligada. No quarto, em ato
de desespero como quem implorando salvação, Palodú tentou o mais rápido que
pôde desembaraçar os espelhos da sua vida. Era tarde demais, não havia reflexo.
Turbilhão de imagens passadas fervia em sua mente. Tinha
oito anos. A cólera frenética do pai ao saber que ele ferira um colega no
calcanhar com uma pedrada. Naquele dia conheceu o peso da sua mão, o atingiu na
cabeça levando-o ao chão. Caiu de boca e em conseqüência perdeu quatro dentes.
Assim o seu ódio pelo pai germinou. Nunca soube como era o amor de pai. A
indiferença da mãe, por medo, não chegou a imprimir em seu coração ódio, mas
nem tão pouco imprimiu amor. Como ela foi indiferente ao seu sofrimento ele
também o foi a ela, até a morte de seu pai.
Tinha doze anos. O amigo morto ao assaltar um posto de
gasolina para poder financiar a sua fuga da Febem. Era dura a perda. De poucos
amigos, Palodú os perdiam. O crime mostrava a sua face: vida curta.
Tinha dezesseis anos. Um momento de alegria. A imagem
que mais claramente o marcou. Presenciou a morte mais esperada, e após ela
conheceu o amor. A morte do pai e no enterro o alívio estampado no rosto de sua
mãe e a alegria no seu. Neste dia aprendeu a amar sua mãe e ser amado por ela.
Tinha dezessete anos. Conheceu o sexo da forma mais
bizarra. Neguinho, um dos poucos amigos que sobreviveram ao crime, o
incentivou. O local, uma fazenda. O sexo oposto, uma vaca. Primeiro ir à
fazenda todos os dias para o animal acostumar com ele. Depois acariciá-lo para
amansá-lo. Após meses, subir no barranco... Foi a única forma de sexo que
conheceu até o dia fatídico.
Tinha dezoito anos. A estuprou e a matou. O sangue
dela impregnado em seus tênis. O desespero por saber que após este crime estava
imprimindo o seu próprio inferno. Mas era ela linda. Porque não o aceitou, não
o amou. Ele não teria tempo nem paciência para amansá-la. Não, não seria
condenado ao inferno. Ela era uma vaca, sim, uma vaca. Sua minissaia, a blusa
decotada era para provocá-lo. Vaca, ela mereceu. Perturbado, Palodú anda de um
lado para outro, batendo com as duas mãos em sua cabeça. O quarto diminuía de
tamanho o sufocando.
Palodú entrou na sua casa apressado, nu e
descalço. Sua mãe cochilava no sofá com a televisão ligada. Tomou um banho
tentando limpar do corpo a sujeira e da mente a imagem da condenação. Esqueceu
o chuveiro aberto. Deitou na esperança que quando acordasse noutro dia teria
apagado da mente a pior imagem que ele imprimiu: o estupro e a morte.
O outro dia chega, Palodú acorda. A sua vista
arde, tudo em sua volta é vermelho. Do chão sai uma fumaça em tons vermelhos
escarlate. O aroma de enxofre está em todos os lugares. Todos têm sua
aparência. Surge um ser disforme, ora tem seu rosto, ora tem o do seu pai. Com
uma voz cavernosa lhe sussurra: “Bem vindo ao teu inferno alma penada”. Palodú
não entendia. Há pouco estava no seu quarto. Como? Zombando o diabo lhe diz: “A
morte lhe trouxe”. Morreu sem saber. Quem o matou? Daria sua vida para saber
quem lhe tirou a vida. “Você não a tem mais”. - disse-lhe o diabo – “Mas pode
tê-la de volta se fazer um pacto que lhe custará uma perda maior”. Palodú já
perdera muito, sempre perdeu. O que seria mais uma perda para quem nada teve.
O investigador Miranda está tranqüilamente
comendo seu misto quente com um pingado quando é chamado para investigar um
estuprou seguido de morte. No caminho para o local do crime Miranda tem a
sensação de que algo estranho lhe ocorreu. Palodú desceu do inferno. Encarnou
nele. Palodú via agora por outros olhos e disputava aquele corpo com outra alma
tão impregnada de crimes como a sua. A única diferença era que enquanto as
imagens dos crimes impressas na tua alma são a marca da pobreza, a da outra
alma são protegidas pela lei por usufruir as vantagens de ter nascido em um bom
berço.
Miranda ao encontrar o corpo estendido no chão com uma
poça de sangue coagulado ao redor da cabeça até a altura da coxa, percebe a
brutalidade do crime. Uma das pernas está quebrada, provavelmente o estuprador
abriu a perna com tanta violência que a quebrou.
Palodú passeava tranqüilo pela rua próxima de sua casa
quando vê aquele corpo sensual em uma minissaia, cadenciando o balançar do
bumbum em forma de pêra. Dois seios bem hirtos em uma blusa decotada como quem
querendo sair. Palodú com uma das mãos abafou sua boca para evitar que ela
gritasse. Sentiu os seus dentes penetrarem na palma de sua mão. A dor o
excitava. Com a outra mão ele ia deslizando pela virilha da vítima até atingir
a batata da perna. Apertou-a e com violência desvencilhou uma perna da outra. O
estalido de osso quebrado. A dor dela. Os dentes encravados ate o fim fez ele
sentir a gengiva dela. A dor dele. Tirou a mão sangrando da boca dela, abriu o
seu zíper. Fato consumado. Ela gritou. Luzes acessas em uma casa ele viu. O
medo de ser descoberto. Cravou-lhe a faca no rosto, depois no coração, por
último no pescoço. Saiu desesperado, todo ensangüentado. Tirou os sapatos.
Tentou retirar o sangue com a camisa. Não conseguiu, jogou ela fora e a calça
também. Olha para trás e vê o investigador examinando a vítima, e se viu nele,
sorrindo-lhe.
Miranda colhe provas e tem a sensação de que ele já
tinha presenciado aquele crime como se fosse ele próprio que o tivesse
cometido.
Um crime cheio de pistas, para Miranda será fácil
desvendá-lo. Mas o improvável acontece. Há uma testemunha. Ela descreve o
criminoso. Olha o álbum de fotografia de procurados e aponta o suspeito:
Palodú.
A polícia sempre que chega em um lugar suspeito ou em
busca de algum fugitivo, primeiro chega atirando e só depois pergunta.
Miranda não seria diferente. Aponta a arma para porta
da casa de Palodú. Descarrega sua arma na altura da fechadura.
A mãe de Palodú cochilava no sofá assistindo televisão.
O barulho dos disparos a desperta. As pontas escuras num corpo prateado
pareciam batons, mas eram balas, vindos em sua direção cortando o ar. Acertam-a
no coração. O sangue espirra. Ela tomba a cabeça no braço do sofá, morta.
Miranda com um chute derruba a porta. Carrega a arma.
Palodú não acredita que acabara de matar a mãe. Este era o preço a ser pago.
Mais uma imagem de culpa impressa em sua alma. Tenta o suicídio. Não consegue,
a alma do Miranda é mais forte e domina o corpo que a pertence.
Palodú está em seu quarto
nu e descalço, desesperado implora salvação. Tenta desembaraçar os espelhos da
tua vida. Era tarde, não há reflexo. Uma imagem aparece no espelho: ele no
inferno. Descobrira o teu assassino antes de morrer: Miranda. O preço a ser
pago: co-autor da morte daquela que aprendera a amar após a morte do pai. A
vingança: tua determinação.
Miranda ouve barulho de água vindo do banheiro. Pegadas de
pés molhados o leva para outro cômodo. Ele entra apontando a arma. Palodú está
deitado. Não reage. Espera a sua morte e após ela, vingá-la. Quantas vezes ele
viu a bala pelo lado prateado indo em direção ao alvo. O alvo agora é ele. A
via pelo lado pontiagudo o atingir. É o seu fim. Começo da vingança.
Miranda não compreende porque sua mão não obedece ao comando
do seu cérebro e permanece com a arma apontada para a sua cabeça. Imagens de
seus crimes surgem nos espelhos de sua vida o acusando apesar de ter sido
absolvido pela justiça, cega quando o criminoso é um protegido. A bala penetra
no seu cérebro quebrando os seus espelhos. As imagens de seus vários crimes como
policial aos poucos emergem rumo ao inferno. Sua alma também. Palodú
desencarna. Volta ao inferno. Sentado mira o horizonte avermelhado em busca de
uma estrada que o levasse em direção ao céu. Palodú ainda acredita na sua
salvação.
Imagem: GETTY IMAGES