
A noite de vinte de Janeiro estava fria, não havia luar, um nevoeiro denso cobria toda a cidade de Valparaíso. As poucas lâmpadas não tinham claridade suficiente para iluminar as ruas, indício de madrugada cinzenta e lúgubre. Rajadas de vento não conseguiam dissipar o nevoeiro, quem se encontrava nas ruas só conseguia enxergar a um palmo de distância. O relógio da Igreja marcava vinte horas. Barulhos irritantes de janelas batendo nos batentes, provocados pela ventania, obrigaram os habitantes de Valparaíso a trancá-las. Valparaíso é uma cidade tranquila, onde dormir com janelas e portas abertas é normal. Nunca uma noite foi tão escura como aquela. Uma orquestra de latido cortava a noite, ouviam-se os donos ordenando aos seus respectivos cães que parassem de latir, passava das vinte e duas horas, não havia uma alma viva nas ruas. A ventania arrancava toldos, levava galhos de árvores, era assustador. Os cães haviam parado de latir, ouviam-se bem baixinho somente gemidos, mas não dava para determinar de que animais eram. Todas as luzes de todas as casas estavam apagadas, exceto uma, a do médico da cidade. Todos os habitantes de Valparaíso tinham como hábito deixar uma luz acesa na entrada de suas casas. Algo de estranho deve ter ocorrido, percebia que todas as lâmpadas estavam quebradas, menos a da casa do médico. Eram vinte três horas e vinte minutos quando um vulto passou em disparada pelo nevoeiro em direção a única luz acesa da cidade.
Ouvem-se três batidas bem fracas, passam alguns segundos e as batidas tornam-se mais fortes. Dr. Fernando põe a touca na cabeça, veste um roupão, calça suas pantufas e vai atender. Uma criança de aspecto assustador veio pedir ajuda para um homem que estava gravemente ferido na cabana no lado norte da mata e explica-lhe como chegar lá. Lídice, sua esposa, pede para ele não ir, pois era tarde e a carroça tinha quebrado o eixo ontem e ele teria de ir a pé. Não adiantava, Dr. Fernando sabia que era seu dever como médico salvar qualquer pessoa, Lídice também sabia disso e não fez nenhum esforço para demovê-lo da idéia, apesar de saber que se insistisse conseguiria. Após se arrumar e equipado com sua maleta, lanterna e foice, na eventualidade de ser atacado por algum animal, ele se despede de sua esposa. Ao chegar à porta a criança havia desaparecido. Ele vai até o quintal e com a lanterna acessa observa que o eixo da carroça estava cerrado e não quebrado como sua esposa falara. Mesmo assim Dr. Fernando ruma em direção a mata. Ao adentrá-la ele ouve uivos, grunhidos e gemidos. Aqueles sons e o tempo fechado amedrontava-o. Repentinamente uma árvore caiu a sua frente, desesperadamente empregou uma força descomunal, provocada pelo medo, até então desconhecida. Ele destroçou toda a árvore e seguiu em frente. Entrou na primeira picada a direita que o levou a cabana. Vultos o cercaram, não distinguiu se eram fruto de sua imaginação ou real. Fechou os olhos e ficou assim por segundos, quando os abriram um alívio o invadiu e ele seguiu. Por hora os vultos sumiram. Ao chegar a cabana um homem estava deitado na cabana com feridas nas costas, provavelmente feitas por punhal. Ele estava deitado de lado. Quando o examinou havia um rasgo na barriga. Ele o apertava com um pano tentando parar o sangramento. Ele relatou para Dr. Fernando que fora atacado por um bicho que ele não saberia descrever, pois estava escuro. Só sabia que não era desse mundo. Após costurar o corte da barriga, fazer curativos nas suas costas, medicá-lo com antiinflamatório e analgésico para as dores, Dr. Fernando o tranquilizou indicando-lhe repouso que no outro dia viria buscá-lo, pois àquela hora da madrugada nada poderia fazer.
Dr. Fernando chegou em casa, o dia não queria amanhecer. Parecia que o tempo andara dois dias. Ele estranhou, mas mesmo assim não quis ver as horas, deitou e dormiu. Quando amanheceu ainda estava escuro, o nevoeiro persistia. Lídice não estava na cama. Ouve barulho e vai até a janela, vê vultos. Aproxima sem se deixar perceber. O imponderável acontece. Sua esposa e o estranho que ele acabara de atender estavam conversando. Ele se aproxima mais, esconde atrás da carroça, percebe que o eixo não está quebrado. Olha no relógio e o dia marcava vinte de Janeiro, às vinte horas. Estranhou e percebeu que o relógio estava parado. Ouve o estranho falar para sua esposa que teria que matá-lo, se assim não fizesse eles não seriam felizes. Ela concorda. Os dois se beijam.
Os olhos dilatam, o nariz inflama, os lábios são mordidos incessantemente, as primeiras lágrimas escorrem pelo rosto. Dr. Fernando fervia de ciúmes. A foice se debatia em suas mãos. Controlou-se. O estranho diz para a sua esposa que o mataria agora. Dr. Fernando apressa-se, pega a foice e sem fazer barulho entra em casa. Deita com a foice do lado e se cobre. Passos são escutados adentrando na casa. Abrem a porta do quarto, a passos lentos o estranho aproxima da cama enquanto Lídice tranca a porta. Ele vê duas mãos enormes erguerem-se, ao levantá-las o estranho deixa a mostra metade da barriga. Dr. Fernando percebe que não há ferimentos nem cicratriz em sua barriga. Quando olha para cima ele nota as mãos do estranho descendo com uma faca. Não teve medo, pegou a foice e num golpe só partiu a metade da barriga do estranho. Este caiu estrebuchando. Lídice se desespera. Dr. Fernando só ouve-a pedir para que não a matasse. Ele estava surdo, em um movimento desesperado a acerta no pescoço, a cabeça cai rolando em direção ao corpo morto do estranho. Após sentar na cama, suavemente a foice desliza da sua mão e cai no chão. Deita, chora e grita o nome de Lídice.
Uma voz desesperada lhe chega aos ouvidos, sente ser tocado freneticamente. Assustado ele abre os olhos e fica mais assustado ainda quando percebe quem estava chamando-o e tocando-o. Ele dá um pulo para fora da cama, olha em volta e não ver nenhum corpo no chão. Olha para cama, lá está sua esposa que há pouco lhe chamava, viva. Olha no relógio, datava o dia vinte de Janeiro às vinte horas. Pela janela ele vê um céu azul carregado de estrelas, a lua dava o ar de sua graça, brilhante e cheia. Neste momento ele percebe que tudo fora um pesadelo. Dirige-se para o banheiro, passa água no rosto, vai até a cozinha preparar um leite quente quando ele ouve três batidas bem fracas na porta, passam alguns segundos e as batidas se tornam fortes. Ele abre a porta, estranhamente a noite estava fria e o nevoeiro era denso, ele olha no relógio e vê que estava funcionando. Abaixa o olhar e uma criança de aspecto assustador pede-lhe ajuda para um homem que estava ferido na cabana no meio da mata. Ele bruscamente fecha a porta, dirige-se até a janela e admira a beleza do luar e do céu estrelado. Deita-se, esta noite não irá a socorro de ninguém. Dormiu o sono dos justos